Proteger as crianças é prioridade para os moradores da Maré

Plano pela primeira infância vai cobrar mais políticas públicas de proteção às crianças das favelas da Maré (RJ), expostas às violências das operações policiais

Camilla Hoshino Carolina Pelegrin Publicado em 07.10.2024
Imagem mostra duas crianças das favelas da Maré brincando. Um menina negra de cabelos crespos e roupa scoloridas segura a mãe de uma menina bebê.
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Resumo

Após um estudo inédito e a realização de conferências locais com moradores, a Redes da Maré irá lançar o 1º Plano pela Primeira Infância da Maré, com as principais demandas e os desafios para a proteção de crianças de zero a seis anos.

O fim da violência armada é uma das principais demandas de moradores e ex-moradores do conjunto de favelas da Maré (RJ). O estudo “Primeira infância nas favelas da Maré: acesso a direitos e práticas de cuidado” mostra que, entre as mais de 2 mil famílias entrevistadas, 40% dizem que os filhos já presenciaram algum tipo de violência.

Além disso, a organização Redes da Maré estima que, em 10 anos, uma criança da comunidade perderá, em média, um ano e meio de aula, em virtude de operações policiais. É o que mostram dados de boletins anuais de segurança pública produzidos pela organização. Em dias de operação, as famílias também são impedidas de acessar serviços básicos, como postos de saúde, creches, escolas e até mesmo suas redes de apoio.

A carta de compromisso produzida por representantes das 16 favelas da Maré foi entregue aos candidatos às eleições do Rio de Janeiro. O documento é resultado de uma pesquisa inédita realizada pela Redes da Maré, entre 2020 e 2022, para analisar as condições de vida e o perfil das crianças de zero a seis anos da região.

Para Tainá Alvarenga, coordenadora do Eixo Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, políticas estruturais para melhorar a vida dos moradores precisam começar pelos primeiros anos de vida. Isso porque, nessa etapa, “o acesso à educação, ao lazer e à cultura ajudam a formar a subjetividade na vida adulta”, diz.

Na zona norte do Rio de Janeiro, a Maré é um conjunto de 16 favelas com características socioterritoriais distintas. Com aproximadamente 122 mil habitantes, segundo o Censo 2022, o  território é maior do que 96% dos municípios brasileiros. Entre a população, há 15 mil crianças de até seis anos de idade.

Pelo fim da violência armada

Mãe de Marcos, 23, Paulo, 16, e Davi, 6, Vanessa Sant’Anna fala sobre o “terror psicológico” de viver em um território com violência armada. Além de temer que “uma hora a bala perdida encontre alguém”, ela conta que presenciou um tiroteio na última vez que foi visitar a mãe.

Até a primeira semana de outubro de 2024 ocorreram 38 operações policiais nas favelas da Maré, conforme dados apurados pela organização Redes da Maré. Em 2023, segundo o 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, foram 34 operações policiais, resultando em oito mortes e nove ferimentos por arma de fogo. Essas ações deixaram 8.099 crianças sem aula por 25 dias – uma média de 20 escolas fechadas por operação -, e interromperam, em média, 279 atendimentos nos postos de saúde por operação.

Vanessa nasceu em Nova Holanda, uma das favelas mais violentas da Maré, mas se mudou para a Praia de Ramos para criar seus filhos “longe da violência”. Ela foi uma das mães que participaram da mobilização por propostas para a primeira infância na comunidade.

Para ela, as crianças precisam de muito mais que segurança, mas acesso à cultura e incentivos para se desenvolver. “Hoje, uma das principais preocupações das mães daqui é que seus filhos tenham o tráfico de drogas como referência para a vida”, lamenta.

1º Plano pela Primeira Infância da Maré

O diagnóstico sobre a primeira infância na Maré foi o ponto de partida para a mobilização comunitária em defesa das crianças. Depois, a Redes da Maré organizou três pré-conferências com representantes de todas as favelas. Eles discutiram e construíram propostas nas áreas de exposição à violência, práticas de cuidado, saúde, educação, assistência social e acesso à cultura e lazer.

Também houve um longo trabalho de escuta em que as crianças disseram o que querem e o que desejam para suas vidas”, diz Tainá Alvarenga. Segundo a coordenadora do Eixo Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, essa experiência é importante para a construção de políticas públicas participativas, que inclui, além das famílias, profissionais de assistência social, educação e saúde.

“Não conheço no Brasil uma pesquisa com uma amostra tão representativa no contexto de favelas como essa”, afirma a professora da Escola de Serviço Social da UFRJ e coordenadora do Observatório dos Conselhos Tutelares, Miriam Krenzinger. No total, 2.144 questionários permitiram conhecer melhor a realidade de 3.837 crianças, das quais mais de 70% estão na primeira infância.

As propostas foram aprovadas na 1º Conferência Primeira Infância na Maré, que aconteceu em junho, na favela Nova Holanda. O documento dará origem ao 1º Plano para a Primeira Infância da Maré.

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Camila Hoshino

Parede de azulejos traz desenhos, sonhos e um manifesto de mães e crianças da Redes da Maré.

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Camila Hoshino

O mural está exposto ao lado da Areninha Herbert Vianna, na favela Nova Holanda, da Maré.

Mulheres e crianças primeiro

A pesquisa Primeira Infância na Maré evidencia que mulheres e crianças, especialmente em algumas comunidades mais vulnerabilizadas, são frequentemente as mais afetadas pela pobreza e pela desigualdade.

A maioria dos cuidadores são mulheres (94%), pretas e pardas (74%), entre 20 e 39 anos. Em 24% das famílias, a figura paterna não está presente. Quanto à composição financeira, 51% das famílias são sustentadas por mulheres e 32% vivem com até um salário mínimo.

Nesse contexto, o acesso a serviços básicos também é um desafio: em torno de 60% das famílias relatam não ter acesso à saúde e lazer. Na saúde, o problema se agrava quando a procura é por serviços como ginecologista e pediatra, duas especialidades que afetam diretamente a rotina feminina.

Isso confirma que as mulheres são “as que mais enfrentam barreiras como violência de gênero, falta de acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, e discriminação econômica”, pontua Miriam Krenzinger.

Então, segundo a professora, colocar as necessidades dessas mulheres em primeiro plano pode gerar uma sucessão de resultados positivos para toda a cadeia familiar. Além disso, “quebra o ciclo de pobreza intergeracional”.

Mobilização e valorização territorial

Além de apresentar demandas fundamentais ao poder público, a construção do Plano pela Primeira Infância da Maré serviu para evidenciar a mobilização dos moradores. O processo exaltou também “as potencialidades desse território”. É o que diz Andrezza Hubeane Nóbrega Dias, professora no Espaço de Desenvolvimento Infantil Maria Amélia Castro e Silva Belfort, na Maré. Para ela, a educação é o meio para incentivar que “as nossas crianças sonhem alto”.

Assim, embora a violência nas comunidades seja tema recorrente nos noticiários, uma série de iniciativas que propõe uma educação antirracista e valorização ancestral alcança aproximadamente 290 crianças por meio de projetos desenvolvidos na escola.

São apresentações de dança e música, confecção de livros, contação de histórias, desfiles e rodas de conversa. Os temas reconhecem a pluralidade cultural e potência intelectual presente em um território tão diverso quanto o da Maré.

“A nossa comunidade é conhecida pela violência, porém muitos desconhecem suas potencialidades”, afirma Andreza.

Para ela, compartilhar narrativas inspiradoras sobre o território é fundamental para que as crianças tenham autoestima e se sintam protagonistas da transformação local. Assim, além da mobilização comunitária, a resposta imediata para o cenário de violência seria a educação. “Queremos entregar uma educação pública de qualidade, uma educação transformadora, do chão da escola para o palco da vida.”

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