Práticas de um sistema de internação socioeducativa superlotado, falho e violento violam os direitos de crianças e adolescentes de maioria negra e pobre
Num país com uma forte cultura punitivista, defensores públicos e educadores lutam pela dignidade de crianças e adolescentes dentro do sistema socioeducativo. A adoção do teto de 100% de ocupação das unidades é uma das vitórias para meninos e meninas brasileiras.
“A bênção, minha mãe”. É assim que Luciana Pereira Lopes gosta de se lembrar do primogênito, pedindo sua bênção ao acordar, antes de dormir e ao sair de casa. De sorriso fácil, Lucas, 16, era extrovertido, comunicativo, gostava de desenhar, dançar e adorava música, descreve a mãe. A vida familiar mudou no dia 30 de novembro de 2017, quando Lopes recebeu uma ligação do delegado local intimando seu menino. “Ele tomou banho, comeu o cuscuz que tinha acabado de ficar pronto e fomos para a delegacia”, conta. Lá, descobriram que outro preso acusava seu filho de ter participado de um latrocínio. A mãe se lembra das palavras do delegado: “Sei que não foi você, Lucas, fulano está acobertando o outro e te colocando na latada”.
“Ficamos na delegacia por cerca de três horas, até o delegado me dizer que Lucas seria transferido para a Depai (Delegacia de Polícia de Apuração de Atos Infracionais), pois teria assumido a culpa”, relata. No dia 5 de dezembro do mesmo ano, Lucas foi para a audiência, negou que estivesse envolvido, mas não deu o nome do segundo autor. Foi, então, considerado culpado e enviado para cumprir medida socioeducativa do Centro Interno Provisório (CIP) em Goiânia (GO).
Seis meses após sua detenção, na manhã de 25 de maio de 2018, o Alojamento 1, onde 11 adolescentes dormiam em camas e colchões no chão, foi incendiado. Nove adolescentes morreram na hora, incinerados. A décima vítima morreu 20 dias depois, no hospital. Segundo a versão oficial, o incêndio começou com um pedaço de colchão em chamas que foi jogado no corredor, como protesto pela transferência de dois adolescentes para outra unidade de atendimento socioeducativo. Tentando evitar que a fumaça invadisse o alojamento, os adolescentes taparam a grade com colchões e, assim, o fogo invadiu o local.
“Ainda não consigo falar dele sem chorar, mas aprendi a disfarçar. Minha casa ficou um silêncio total, só choro e lágrimas. Estamos nos reconstruindo, é um dia de cada vez”, desabafa Lopes.
Em agosto de 2018, 13 servidores públicos foram denunciados ao Ministério Público (MP) por negligência e indiciados por homicídio culposo. A ação, no entanto, foi arquivada, pois a juíza acompanhou o entendimento do órgão de que o local não era próprio para internação de adolescentes, tampouco para o trabalho dos agentes. No ano seguinte, em maio de 2019, o estado de Goiás reconheceu a responsabilidade e assinou um acordo para indenizar as dez famílias.
Com capacidade para 52 internos, o CIP abrigava, à época, 80 adolescentes. E essa situação de superlotação da unidade não era exceção. Enquanto o país dispunha de 16.161 vagas para internação no sistema socioeducativo, em 2019, mais de 18 mil adolescentes estavam em privação de liberdade, como apontam dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
“Um ambiente superlotado é um ambiente tensionado”, alerta o defensor público Hugo Fernandes Matias. “O adolescente não tem cama para dormir, o aspecto pedagógico da medida é esvaziado. Eles ficam 23 horas trancados, tudo intensifica a tensão, dos adolescentes e dos agentes também”, explica. Matias foi um dos responsáveis pelo pedido de habeas corpus coletivo – liberdade diante de prisão ilegal – que determinou o fim da superlotação em unidades socioeducativas brasileiras. Apresentado em maio de 2017 pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES), o habeas corpus contestava a superlotação da Unidade de Internação Regional Norte em Linhares (ES), com 250 internos para 90 vagas.
Em 2020, a ação da DPES foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que concedeu o pedido e fixou, para todo o Brasil, parâmetros a serem observados em unidades socioeducativas. Em voto, o ministro relator Edson Fachin afirmou que “as políticas públicas direcionadas aos adolescentes, aqui incluídos os internados, devem contemplar medidas que garantam os direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nomeadamente o direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade, à convivência familiar e comunitária, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, à profissionalização e à proteção no trabalho”. A decisão também estabeleceu uma série de alternativas para diminuir a superlotação nas unidades, entre elas a adoção do teto de 100% de ocupação das unidades.
Thiago* estava há 12 meses internado no Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases), em Linhares, quando o STF decidiu pelo fim da superlotação. Em um alojamento com capacidade para seis pessoas, ele dividia o espaço com outras 19. Beneficiado pela decisão, o jovem relembra o dia que saiu: “eu estava dormindo quando meus colegas de quarto me acordaram dizendo ‘cantou! cantou!’ – uma expressão que usamos para dizer que alguém recebeu o alvará. Eu não acreditei, achei que era zoeira, mas aqui estou”. Hoje, com 16 anos, ele conta que aos 12 vendia picolé para ajudar as contas da casa. “O tempo foi passando e eu me deixei levar pelas más influências. Com 13 anos eu deixei minha casa, minha família e a escola. Passei a vender drogas e, com a guerra de tráfico intensa e sem dinheiro, roubei uma moto e fui apreendido em flagrante”, relembra.
“Quando forem contar a história dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, acho que essa decisão vai aparecer como um marco importante”, comemora Matias.
O defensor explica que uma das principais vitórias – não só para o socioeducativo, mas para a questão da privação de liberdade em geral – é a determinação para adoção de um sistema de central de vagas nos estados, que ordena a admissão de pessoas no sistema socioeducativo, de modo que se tenha uma pessoa por vaga, o chamado princípio numerus clausus, a partir do qual, para admitir uma nova internação, seria preciso liberar a vaga de um adolescente. Atualmente, dez estados já têm centrais de vagas funcionando, como apontam dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Meu pai é pernambucano, minha mãe é cearense, eu fui criado no Rio e moro no Espírito Santo. Liguei pra minha mãe e disse: ‘vai sair uma boa notícia sobre os adolescentes aí na televisão. E fala pro tio lá em Recife e pra tia lá na Bahia também’”, narra Matias, celebrando o impacto nacional da decisão.
Assim como aconteceu com Thiago, mais de 70% dos atos infracionais cometidos por adolescentes são contra o patrimônio, roubos e furtos, ou por tráfico de drogas. Em um país marcado por intensas desigualdades sociais e pelo racismo, o sistema socioeducativo não fica de fora. A partir de dados escassos e desatualizados, sabe-se que 59% são negros; 81% das famílias desses adolescentes têm renda salarial entre “sem renda” e “menos de um salário mínimo”, e 72% dessas famílias têm entre quatro a cinco membros, como aponta o último Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, de 2019.
“Quando eu cheguei no socioeducativo, foi um choque. Tive a sensação de estar em um navio negreiro”, diz Scudder.
“Aquele espaço úmido, mofado, mau cheiroso, sem ventilação, em que 99% dos adolescentes eram negros. Todos muito crianças, desde os 12 anos, ficavam trancados o dia todo, sem nenhuma atividade”, conta a professora no programa de pós-graduação em Educação e no departamento de História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Priscila Scudder.
Antes de ser professora universitária, Scudder foi agente socioeducativa no Centro Socioeducativo Pomeri Lar do Adolescente, em Cuiabá (MT). A partir das experiências ali vividas, estudou a privação de liberdade tanto no âmbito socioeducativo quanto no penal, em seu mestrado e doutorado, respectivamente.
Durante os quatro anos que vivenciou o cotidiano dos internos, Scudder relembra uma manhã muito quente em Cuiabá, que apesar de ter temperatura média mensal de 27ºC, alcança os 40 frequentemente.
Em um desses dias abafados, faltou água na unidade. Scudder estava andando quando ouviu um grito: “Professora!”. Um ex-aluno estava internado ali. Depois de uma conversa breve, ele pediu um pouco de água. “Como tínhamos água na área dos agentes, eu peguei uma garrafa pet e levei pra ele. Cuiabá é uma panela de pressão e as celas do Pomeri não tinham ventilação alguma”, explica Scudder.
Naquele dia, a agente passou 12 horas enchendo garrafas de água para dar de beber aos adolescentes, sendo bastante questionada pelos outros profissionais. Ao final de seu plantão, às 19h, a água ainda não havia sido restabelecida. O diretor da unidade, ao ir embora, deixou um bilhete autorizando uma empresa a encher a caixa-d’água. Contudo, sem pagamento, eles se recusaram a realizar a tarefa e foram embora.
Sem água para beber ou tomar banho em uma das capitais mais quentes do país, os meninos passaram a protestar, batendo os pés nas grades. A solução encontrada pelo chefe da disciplina foi chamar a polícia militar para conter os adolescentes. “Fizeram um corredor polonês, tiraram toda a roupa dos meninos, bateram em todos. Eu estava na enfermaria com um deles, me algemei a ele e disse: ‘Não corre, senão vão te matar. Fica comigo’. Ele foi o único que não apanhou naquela noite”, conta Scudder.
Ao abrir a porta do local em que estavam os adolescentes, Scudder, com a voz embargada, conta que os 278 estavam deitados lado a lado, como “sardinha em lata”. E acrescenta: “Policiais pisando neles com seus coturnos, colocando cassetete no ânus, dando tiro de bala de borracha. Teve menino que perdeu a visão. Tudo porque eles queriam água”.
Na época, 2005, havia 279 meninos internados ali; uma matéria do Diário de Cuiabá teve como chamada “Pomeri nunca esteve tão lotado” – um especial de 2016, do portal Olhar Jurídico, informava que a unidade dispunha de apenas 75 vagas.
“Eu vi coisas desse tipo e precisei escrever as memórias dessa violência para sobreviver. Nunca conheci, durante todo esse tempo, um menino que tivesse feito algo pior do que o Estado fazia com eles diariamente“, desabafa a professora. Por essas e outras, Scudder, ao se apresentar no início de nossa conversa, enfatiza ser uma abolicionista penal. “Como vamos falar em responsabilização quando o próprio Estado não se responsabiliza em cumprir seu papel de oferecer educação, saúde, moradia, alimentação, lazer e cultura?”, indaga.
Nascida em Santarém, no Pará, a assistente social Iasmim Baima passou dois anos e meio internada no sistema socioeducativo. “Entrei com 16 anos e saí faltando um mês para fazer 19”, conta. Ela relembra que, durante a internação, ela e suas colegas internas costumavam pensar sobre como eram vistas pela sociedade: “certamente como meninas que tinham poucas chances de mudanças, perigosas, pouco confiáveis. Mas, na verdade, com variadas camadas de fragilização na vida, com dúvidas, medos e inseguranças. Medo do futuro, principalmente. Boa parte de nós vive um abandono institucional e familiar, então dá medo de sair e voltar para essa situação também”.
Quando estava na unidade de Santa Maria, no Distrito Federal (DF), conheceu a pesquisadora Débora Diniz, que a inseriu em um projeto de bolsa de iniciação científica de ensino médio da Universidade de Brasília (UnB). Ao sair, Baima ganhou uma bolsa de ensino superior no Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB), em uma parceria da instituição com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), para oferecer bolsas a egressos do sistema socioeducativo. Começou, então, a cursar serviço social. “O acesso à educação é um fator importante para repensar seu projeto de vida, falo por experiência própria. Foi a partir do contato com uma educação emancipatória que eu entendi o que era violência e as violências que tinha sofrido até então”, diz.
A noção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos na legislação brasileira é nova, tem 32 anos. Reconhecendo o peculiar estágio de desenvolvimento dessa população, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no artigo 227, a doutrina da proteção integral, determinando que a responsabilidade de garantir os direitos das pessoas menores de 18 anos, com absoluta prioridade, deve ser compartilhada entre família, Estado e sociedade. Proteção essa regulamentada, em 1990, a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que rompeu com as legislações anteriores, sobretudo os Códigos de Menores de 1927 e 1979, marcados pelo punitivismo. O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) é regulamentado pela Lei nº 12.594, de 2012, que, entre outras coisas, estabelece que as medidas socioeducativas devem priorizar práticas restaurativas, com fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
Dez anos depois, contudo, ainda são muitos os desafios e estigmas a enfrentar. Para além de questões de ordem prática da implementação de políticas públicas, há um caldo cultural punitivista muito forte no país, especialmente em relação a adolescentes, desde o processo de aprovação do ECA. Os programas policialescos são um exemplo. Uma análise do conteúdo veiculado durante 30 dias, por 28 programas dessa natureza, em 2015, constatou mais de 4.500 violações de direitos, 8.232 infrações a leis brasileiras, 7.529 infrações a acordos internacionais e 1.962 desrespeitos a normas autorregulatórias. O estudo “Violações de direitos na mídia brasileira” apontou que boa parte dessas infrações foi praticada contra adolescentes, que cotidianamente têm sua imagem exposta pelos apresentadores.
“A mídia exibe nossos corpos sem nenhum pudor, nos transforma em inimigos naturais e naturaliza a nossa morte”, argumenta Scudder.
Nosso sistema prejudica pessoas que prejudicaram pessoas para mostrar que prejudicar é errado, em um ciclo interminável de dano, explica a advogada e ativista estadunidense Fania Davis em suas palestras sobre Justiça Restaurativa. “Estamos começando pelo fim, e isso não faz sentido. Não dá pra falar de punição enquanto o Estado não cumprir o seu papel. Cuide primeiro, alimente primeiro, ofereça o direito de bem viver. Toda forma de vida merece bem viver”, conclui a professora Scudder.
Para o defensor Matias, decisões como a do habeas corpus da superlotação têm a função de destravar e alavancar políticas públicas nos diferentes setores envolvidos. “É preciso comemorar cada vitória, porque temos muitas derrotas também. Comemorar fortalece ainda mais as vitórias”, acredita.
Todos concordam ao dizer que é preciso cessar o ciclo de violências, iniciado muito antes da chegada ao socioeducativo, atingindo especialmente as crianças pobres e negras do país. É comum que as demandas de ativistas por direitos humanos sejam percebidas como impraticáveis, utópicas e até mesmo ingênuas. Em um cenário de intensa dessensibilização e brutalização das relações, essas pessoas ousam escolher lutar pela fundação de novos mundos, que deixem para trás as bases violentas e predatórias que até aqui traçaram nossos rumos.
Em “Tudo sobre o amor”, a professora bell hooks diz que é nossa responsabilidade dar amor às crianças, porque assim reconhecemos com nossas ações que elas têm direitos e que nós os garantimos e respeitamos. E esse amor nada mais é que justiça. A justiça é o amor em público, disse o professor e filósofo estadunidense Cornel West. E é isso que preconiza o artigo 227 da nossa Constituição Federal.
* Nome trocado para preservar a identidade da pessoa.
** Esta reportagem faz parte da publicação “Pela dignidade: a história do habeas corpus coletivo pelo fim da superlotação no sistema socioeducativo”, disponível no site do Instituto Alana.
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