Há quem não ligue muito para os jogos, mas a época ativa a possibilidade de celebrar e viver momentos de união
Entre figurinhas e partidas de futebol, a época inspira dias festivos para as crianças que estão construindo suas memórias da Copa do Mundo.
Quem ama futebol e vive intensamente essa relação com o esporte ganha dias de celebração durante a Copa do Mundo. Schirlei Machado, que costuma assistir aos jogos com a filha Elise, 10, vê entrevistas e faz até bolão de placar. Encantado com o clima, Bernardo, 5, em sua primeira Copa, está completando o álbum de figurinhas, e Cris Vasconcelos, sua mãe, que não é tão fã do esporte, pensa em como abordar o assunto com o filho caso o Brasil não seja campeão. Júlia, 8, também coleciona as figurinhas e traz um pouco da alegria futebolística para dentro de casa, contagiando Ely Lopes, o pai palmeirense, e Mara Caetano, a mãe corinthiana, desencantada com a seleção desde o 7×1 contra a Alemanha, lá em 2014.
Num Brasil de desigualdades sociais acentuadas, que acaba de passar por eleições conturbadas, observamos as cores da bandeira nacional reconquistando seu lugar. O que a Copa do Mundo representa para as crianças que têm a chance de viver o evento? Elas podem criar suas próprias tradições e memórias independente das experiências de seus cuidadores? O Lunetas conversou com crianças, pais e pesquisadores para entender como a Copa do Mundo bate no coração de cada um – e se, após o período, o amor pelo futebol continua ou fica em modo de espera pelos próximos quatro anos.
No bairro Caiçara, zona noroeste de Belo Horizonte (MG), a Rua Francisco Bicalho ganha verde e amarelo ao longo de seu comprimento desde 1994. Há quem participe da brincadeira há décadas, como o senhor Zelino Freitas, morador da região, e Maurício Marçal que, junto de sua filha Lara, 8, participam desses festejos futebolísticos pela primeira vez.
“As crianças do bairro adoram esse período de Copa, é motivo de festa! Elas ficam felizes de se reunir para ver os jogos e torcer. Se encantam com a rua enfeitada e adoram participar ativamente, pintando e ajudando a fazer os enfeites. Elas se sentem úteis com isso”, conta Maurício. Neste ano, Lara pintou a rua pela primeira vez, deixando sua marca na Francisco Bicalho.
Elise, 10, diz que a Copa é especial por parecer época de “festa com esporte”. Suas atividades preferidas são assistir aos jogos e tocar vuvuzela. “Eu lembro da última Copa, o que me marcou foram as comidas diferentes, ouvir a música dos outros países e a derrota do Brasil, porque todo mundo ficou triste. Os adultos mais que as crianças”, pondera.
Na casa de Schirlei, mãe de Elise, comer pratos típicos do Brasil, vestir as cores da bandeira e torcer junto é tradição básica. Professora da rede municipal em Diadema (SP), Schirlei relata que o futebol chegou na sua vida através de seu pai: “ele nunca foi muito de conversar sobre coisas da vida por ser da roça, então futebol sempre foi nosso assunto”, diz. Agora, ela quer que Elise também viva esse amor, ainda que vestindo branco em vez das cores da bandeira, por motivações políticas.
Aline Assis se apartou das tradições da família quando deixou sua cidade natal, Curitiba (PR), mas quer resgatá-las para os filhos Hítalo, 1, Holiver, 4, e Hector, 7. “Meu pai sempre foi fascinado por jogos. Na Copa, não era diferente: torcia, ficava bravo, feliz… Eu e minhas irmãs assistíamos aos jogos juntas e torcíamos muito, sem nos importar se ganhava ou perdia”, conta. Apesar de torcer pelo Brasil, Hector acredita que a Coreia do Sul será campeã este ano. Já Holiver gosta do período para comprar figurinhas. “É um momento de ‘alegria’”, diz, entusiasmado.
“Quando meu filho mais velho pegou a figurinha do Vinicius Malvadeza ou o do meio pegou um pedaço do troféu, eles pulavam de alegria. É essa alegria que eu quero que eles tenham ao assistir os jogos e que passem isso para os filhos deles”
“Muito se fala que o futebol é o ópio do povo, mas considero mais como o respiro do povo, o ar fresco pro povo brasileiro, que pode naquelas duas horas se desligar de uma vida muitas vezes sofrida e se divertir”, afirma Natália Silva, jornalista e jovem pesquisadora no Museu do Futebol. Apesar do esporte mais popular do país ser jogado e apreciado por crianças e adultos de todas as idades – e essa relação se intensificar em tempo de Copa, ela explica que o futebol é um fenômeno que não se encerra no jogo, dentro de campo, mas é uma oportunidade de “entender como funciona o país em vários aspectos”.
“A Copa une idosos e crianças em prol de uma coisa só, mas é um fenômeno datado. O Brasil em sua essência é desigual”
Ainda sobre a relação entre futebol e política, Silva comenta que “apesar da Copa trazer essa sensação de que conseguimos resolver nossas diferenças porque estamos unidos, “não há como uma sociedade construída em cima de escravidão e genocídio negro e indígena promover uma união de fato”. Esse país segue desigual no acesso a direitos básicos, como saúde e educação, lembra, o que leva muita criança brasileira a sonhar com o futebol como um ideal de vida e a possibilidade de ascensão social.
A pesquisadora também se aproximou do esporte na infância, quando um campo de futebol era uma das únicas atividades de lazer na região de Malhada de Pedras (BA), onde ainda mora. Naquela época, só conseguia assistir “futebol de estádios” pela televisão, devido aos valores altos e aos mais de 500 km de distância de sua cidade para a capital Salvador.
“Quem são as crianças que têm acesso aos jogos de todos os clubes? O acesso à experiência não é igual”
Entre vuvuzelas barulhentas, ruas pintadas e bandeirolas no ar em diversos cantos do país, a Copa do Mundo “é capaz de agregar torcedores que não acompanham futebol no dia a dia, mas que, neste mês, fazem festa”, diz Natália Silva, trazendo uma chance de sorrir de novo e de nos unirmos como nação.
“O que mais me marca é que, independente se a gente é próximo das pessoas, nessa época a gente conversa, torce junto, comemora as vitórias e se consola nas derrotas.” – Schirlei Machado
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