Quando crianças acessam a escola na primeira infância, aumentam-se as chances de desenvolvimento integral, além de ser um caminho para combater desigualdades
Garantir a educação infantil de qualidade é um dever do Estado e um direito constitucional da criança. Investir na educação na primeira infância, além de ser fundamental para o pleno desenvolvimento infantil, é também uma das melhores formas de diminuir desigualdades.
Quando decidiu colocar a filha em uma creche no bairro de Nova Descoberta, no Recife (PE), a dona de casa Cláudia Brito, 36, ouviu comentários negativos. Familiares e amigos temiam que a criança fosse “sofrer”. Convicta da decisão, ela buscou informações na internet, descobriu como fazer a matrícula. Assim, conseguiu vaga em uma unidade municipal. Colocar a filha na rede de ensino infantil permitiu a Cláudia continuar trabalhando. Mas a escolha teve outro papel ainda mais importante: ampliou as possibilidades dela e da menina. Hoje, Cláudia é uma ferrenha defensora da educação infantil, pois viu na prática como ela foi determinante no desenvolvimento da filha e do filho mais novo.
“A creche não é só um lugar onde a gente deixa os filhos para poder trabalhar, é uma escola de fato, porque eles fazem atividades pedagógicas e convivem com outras crianças”
É consenso entre os especialistas que o acesso à escola desde a primeira infância (0 a 6 anos), período de intensa formação cerebral, é fundamental para o desenvolvimento integral das crianças, aumentando a sua capacidade cognitiva de aprendizagem e de socialização. Mas, como mostra a história de Cláudia, ainda falta informação sobre a importância da educação infantil, além da dificuldade de acesso e de garantia de qualidade dessa política pública.
É dever do Estado assegurar a educação infantil de qualidade a todas as crianças, um direito previsto pela Constituição de 1988, consolidado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e organizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
De acordo com a legislação brasileira, a educação infantil é dividida em duas etapas. A creche é para crianças de até três anos de idade. Embora seja opcional, é uma obrigação do município ofertar a vaga, com a colaboração do Estado e da União. A outra modalidade da educação infantil é a pré-escola, obrigatória para crianças de 4 e 5 anos.
Um estudo da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) mostra que cinco milhões de crianças brasileiras de 0 a 3 anos de idade ainda precisam de atendimento em creches – apenas 37% das crianças nessa faixa etária estão matriculadas, segundo o Anuário da Educação Brasileira 2021, produzido pela ONG Todos pela Educação. Já na pré-escola, o Anuário aponta 94,1% das crianças matriculadas. Esse dado pode parecer bom, mas a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) previa a universalização da pré-escola em 2016. Já para as creches, o objetivo é ter pelo menos 50% das crianças matriculadas até 2024, entretanto, o número de matrículas em creches caiu durante a pandemia, principalmente em unidades privadas. Hoje, há uma pressão por vagas na rede pública e também diversos obstáculos para cumprir as metas da educação infantil.
Em contrapartida, há muitas famílias interessadas em valorizar essa etapa da educação, como Cláudia, cuja filha, hoje com 8 anos, concluiu a pré-escola e está no segundo ano do fundamental, e o filho, com 3, frequenta a creche. “Para os meus filhos, a creche fez toda a diferença. Uma professora me disse que foi louvável a minha decisão de colocá-los na creche, pois eles já saíram de lá sabendo letras e números. Minha filha chegou mais preparada à pré-escola”, conta.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de 2020, mostra que, se o país investisse mais de 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação, em cinco décadas, o padrão médio de vida da população brasileira aumentaria em até 26%. Contudo, hoje apenas 0,7% do PIB brasileiro é destinado a creches e pré-escolas, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Pesquisas mostram, ao longo dos anos, que a eficácia do investimento público na primeira infância gera retorno não só para a criança, mas também para a sociedade. No campo educacional, existem estudos evidenciando que a oferta qualificada da educação infantil, além de acelerar o desenvolvimento infantil, também é uma forma de combater as desigualdades sociais.
“Uma pré-escola de qualidade impulsiona o desenvolvimento das crianças não só cognitivamente, mas em aptidão física, motora e habilidades socioemocionais”, explica Tiago Bartholo, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Laboratório de Pesquisas em Oportunidades Educacionais (LaPOpE/UFRJ). “A primeira infância é uma fase em que, pela maleabilidade do cérebro, grande parte do potencial humano é moldado pelas nossas experiências”, acrescenta Daniel dos Santos, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes).
No Recife, Cláudia consegue ver isso na prática. O filho mais novo tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e diz amar a creche. “Lá, ele convive com outras crianças, vê amiguinhos fazendo as atividades propostas, encontra outros aprendendo junto com ele. Sinto que ele começou a falar por causa disso”, afirma.
A educação infantil também tem o papel de reduzir as desigualdades educacionais e sociais, explica Bartholo:
“A criança passa a frequentar um ambiente com estímulos adequados, se sente mais segura, tem acesso à alimentação de qualidade”
No Brasil, a desigualdade no acesso à educação infantil, sobretudo a creches, tem relação direta com a situação econômica das famílias. De acordo com a Pnad Contínua – Educação, de 2019, produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os 25% mais pobres, apenas 27,8% das crianças estão em creches. Entre os mais ricos, o percentual saltou para 54,3%. As matrículas também são seis pontos percentuais menores na pré-escola, quando se compara os mais ricos e os mais pobres. Há ainda discrepâncias territoriais, com mais que o dobro de diferença de matrículas entre crianças do Sudeste (42,5%) e do Norte (19,2%).
A pesquisa Índice de Necessidade de Creche 2018-2020 mostra que, em 2019, 1,5 milhão de crianças de famílias pobres não frequentavam uma creche. Ao todo, eram 2,2 milhões de crianças precisando desse dispositivo educacional. Nesse sentido, a dona de casa Tamires de Almeida, 23, pode se considerar privilegiada. Moradora de Paraisópolis, em São Paulo, ela conseguiu rapidamente uma vaga na creche para a filha Ágatha, que hoje está com 11 meses, para tentar voltar a trabalhar e retomar os estudos pausados no terceiro ano do curso de Biologia.
Ágatha, que tem deficiência física, está na creche desde os seis meses. “Eu pretendia esperar que ela completasse um ano, mas como não tinha ajuda para cuidar dela, não estava aguentando psicologicamente”, lembra. Hoje, a menina fica das 7h às 16h na creche. Tamires tem aproveitado esse intervalo de tempo para buscar qualificação profissional. Desde então, ela fez um curso de corte e costura e está terminando outro de assistente administrativo.
“Como não tenho rede de apoio, a creche é como se fosse uma pessoa da família”
Por exemplos como esse, para o professor da USP Daniel dos Santos, a discussão não pode ser dissociada do debate sobre gênero.
“Políticas de gênero e políticas de infância andam sempre juntas, porque historicamente o papel da mulher é o de cuidar das crianças”
No Brasil, a história das creches acompanha a luta de mulheres e se constitui desde a segunda metade do século 20 a partir da conquista da cidadania delas e das crianças. Por isso, no início, essa era uma política atrelada ao mundo trabalhista e da assistência social, só depois foi deslocada para a educação.
Segundo Santos, a escola ganhou papel crescente quando se tornou um espaço de cuidado e de responsabilidade do Estado. O investimento tanto em termos absolutos como em percentual do orçamento educacional para educação infantil aumentou vertiginosamente nos últimos 20 anos – embora tenha ocorrido um corte quase 80% nos investimentos em construção de creche e pré-escola desde 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). A idade obrigatória de ingresso caiu duas vezes seguidas.
“Várias decisões mostram que a sociedade caminha para um acordo de que a educação infantil é a nossa aposta para a infância e que, ao mesmo tempo, permite o progresso da igualdade de gênero”, afirma Santos.
Contudo, não basta pensar no acesso, é preciso garantir qualidade nesse período de aprendizado, para que todos os ganhos já listados possam se concretizar. A discussão sobre qualidade, entretanto, chegou bem mais tarde no histórico das políticas públicas e é mais difícil de ser apropriada pela sociedade civil.
Em 2009, o Ministério da Educação estabeleceu que as unidades de Educação Infantil são espaços de educação e cuidado, e que o eixo curricular são as interações e as brincadeiras. Em 2017, com a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), estados e municípios passaram a revisar ou construir currículos e propostas pedagógicas para a educação infantil, a fim de buscar essa qualidade. Há outros documentos, como os Indicadores de Qualidade na Educação Infantil e os Parâmetros Nacionais de Qualidade para Educação Infantil, que estabelecem critérios para serem atendidos.
De acordo com o documento “Priorize as crianças no seu governo”, da FMCSV, a pré-escola de qualidade pode ter impacto significativo nas notas e nas chances de conclusão do ensino fundamental. Um estudo realizado pelo pesquisador Daniel dos Santos, em 2018, mostra que crianças que se mudaram da pré-escola de baixa qualidade para uma de alta, tiveram ganhos em linguagem oral e escrita, assim como em noções de matemática.
“Não basta as crianças estarem na pré-escola ou creche. A simples oferta não garante dimensões importantes de desenvolvimento e equidade”, complementa Bartholo.
“É preciso ampliar o acesso à creche, mas com qualidade”
Há seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento que devem ser garantidos para as crianças: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se. “Uma escola de qualidade oferece muito mais do que uma boa infraestrutura, com merenda, higiene e equipamentos. Isso é o básico! A qualidade depende de outros fatores, que vão além do cuidado e focam no desenvolvimento”, explica Santos.
Um primeiro aspecto é que a escola precisa ser um ambiente acolhedor e seguro, capaz inclusive de tornar-se refúgio para vítimas de violência doméstica e também apta a promover a segurança relacional, isto é, onde são respeitadas e valorizadas as diversidades.
Outro objetivo da escola de qualidade é oferecer oportunidades de desenvolvimento emocional, holístico, de raciocínio, curiosidade e linguagem. Essa estímulo precisa ainda ser significativo, ou seja, incluir atividades e brincadeiras baseadas na cultura e realidade das crianças, ampliando as chances de se envolverem e serem protagonistas da atividade. “O adulto precisa perceber a individualidade de cada criança e entender que elas aprendem em ritmo diferente, têm gostos diferentes. E olhar os momentos em que a criança está prestes a fazer uma descoberta para oferecer ajuda”, afirma o pesquisador.
O estudo Avaliação da Qualidade da Educação Infantil, realizado pelo Lepes e a FMCSV, em 12 municípios brasileiros, evidenciou que a qualidade da educação infantil hoje no Brasil pode ser considerada regular. Ou seja, “significa que as crianças possuem acesso a uma infraestrutura, no que compreende estrutura predial, equipamentos e presença de materiais pedagógicos, capaz de atendê-las, mas que não gera experiências que ampliem sua autonomia, que as colocam como protagonistas”.
Não há, por exemplo, materiais que facilitem o trabalho investigativo e a presença de livros de história diversificados. Do ponto de vista de gestão, foi constatado que os profissionais não pesquisam recursos adicionais ou possuem espaço para reuniões, estudos, formação e planejamento. No quesito currículo, interações e práticas pedagógicas, 11,6% das turmas foram classificadas como inaceitáveis.
A promoção da qualidade na educação infantil torna-se, neste momento, ainda mais importante. “A educação infantil foi a etapa mais afetada pela evasão durante a pandemia”, explica Bartholo. “Nos nossos estudos, conseguimos explicar de 80 a 90% da queda nas matrículas da educação infantil por conta da diminuição do número de vagas da rede privada. A questão é se a rede pública tem condições de absorver essa demanda excedente.” A pré-escola, diz ele, foi a etapa que mais perdeu matrículas durante a pandemia, do ponto de vista proporcional. “A gente precisa retomar essa trajetória, trazer as crianças e avançar na agenda da qualidade”, defende.
“Se não fizermos nada, podemos ter um país desigual no sentido de desenvolvimento de crianças e jovens, gerando aumento das desigualdades sociais e outros fatores associados ao bem-estar e longevidade da população”
Nessa etapa da educação, é fundamental garantir o financiamento e o engajamento das gestões públicas – não somente as municipais, responsáveis pela gestão direta das unidades, como também as estaduais e Federal, no suporte e suprimento para redução das desigualdades. “Os estados são entes federativos que devem assumir aquilo que o município não consegue, com redistribuição de recursos e apoio técnico. A União, mais distante, também pode, por meio dos fundos constitucionais, corrigir as desigualdades”, afirma Santos.
“É preciso esforço para discutir e explicar aos gestores o que é qualidade na educação infantil”
Santos recomenda que sejam criados parâmetros não só para insumos, como também índices relacionados à infraestrutura e indicadores de qualidade. No Brasil, o estado do Ceará foi pioneiro na criação de um documento com parâmetros estaduais para avaliar a qualidade da educação infantil.
Sobral, no Ceará, por exemplo, é conhecida por medir os índices de educação a nível municipal. Lá, o esforço dos gestores públicos e educadores levou a cidade a reduzir drasticamente os índices de analfabetismo. Nos anos 2000, apenas 49% das crianças da cidade aprendiam a ler na idade adequada. Em 2004, esse percentual havia chegado a 92%.
A vendedora Rosalucia Martins, 34, mudou-se de Recife para Sobral quando o filho mais velho, hoje com 12 anos, iria começar o ensino infantil. Acabou encontrando, na cidade, uma escola conhecida pela excelência na educação.
“Eu queria que meus filhos aprendessem a ler e que pudessem interagir com amigos e com a sociedade”
O filho mais velho já concluiu o ensino infantil, agora é o mais novo, com seis anos, que faz parte dos 7.553 alunos dos centros de educação infantil da cidade. Rosalucia diz que o menino é apaixonado pela escola e até aos feriados coloca a mochila e pede para ir. “Eu fico encantada com o aprendizado dele. Quando vamos tomar café da manhã, ele diz: ‘Não precisa, mãe! Lá tem a hora do lanche’. O colégio é como se fosse a segunda casa dele”, conta. “Eu me sinto totalmente segura em saber que meu filho está na escola enquanto eu trabalho.”
Criar uma estrutura que permita a mais famílias sentirem o que Cláudia, Tamires e Rosalucia sentem, porém, requer organização, investimento e atenção para a educação infantil. É difícil, mas já se sabe por onde começar.
Além do investimento e esforço dos gestores públicos para garantir uma educação infantil de qualidade para todas as crianças, é preciso também formar professores. A educadora Rafaela Santana, 39, trabalha na Creche-escola Municipal Mércia Maria Bezerra Costa, no Recife. Ela atua no ensino infantil há seis anos, mas como educadora da rede pública há 18. Ela conta que a experiência com bebês e crianças na primeira infância abriu seu horizonte para a importância da educação infantil nessa fase da vida. “Eu me perguntava se era possível fazer uma construção pedagógica com os bebês. Foi como um divisor de águas, eu precisei ver na prática para acreditar”, lembra. Hoje, ela sabe a transformação causada na vida dos pequenos estudantes.
“Percebi que o aprendizado começa, sim, com o incentivo aos primeiros passinhos, com o estímulo ao desenvolvimento motor e cognitivo. O meu desafio foi só acreditar”
*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
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O estudo “Priorize as crianças no seu governo”, de 2022, publicado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, aponta alguns caminhos, como: