Violência obstétrica: entenda o que é e como denunciar

Protagonismo feminino, transdisciplinaridade e evidências científicas são o tripé da assistência humanizada ao parto

Camilla Hoshino Publicado em 12.05.2022
Uma mulher está deitada em uma cama de hospital, recebendo soro na veia. Ela está com uma das mãos na cabeça e com os olhos fechados.
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Resumo

Uma em cada quatro gestantes no Brasil já sofreu violência obstétrica. Para enfrentar esse quadro, é preciso que a assistência ao parto se torne humanizada e sustentada pelo protagonismo feminino, pela transdisciplinaridade e por evidências científicas.

Evelin da Silva, 33, entrou em trabalho de parto na 41º semana de gravidez, em um hospital da região metropolitana de Curitiba, Paraná. Eva nasceria nas horas seguintes da manhã do dia 3 de fevereiro, conforme o roteiro de gestação de risco habitual, avaliada em pré-natal. Sozinha em uma sala de espera, com a presença da doula negada até então, ela começou a perceber os maus-tratos conforme suas dores se intensificavam. 

“Se aparecerem as contrações, segura, pois a doutora não vai conseguir te atender agora.” A afirmação da enfermeira respondia aos 9 cm de dilatação. O constrangimento havia se instalado: com 10 cm, Evelin caminhou, sem ajuda de maca, até a sala de parto, onde a médica plantonista cochichava sobre os problemas de uma cesárea anterior que estava a ponto de deixar a parturiente sem o útero. “Ela foi muito grosseira. Quando pedi analgesia, ela disse que teria que nascer sem”, conta. 

Ainda em recuperação, a mãe de primeira viagem recorda com tristeza o evento recente, que não atingiu as expectativas de assistência humanizada. Afinal, “dar certo” não se trata apenas de ultrapassar uma camada de músculos quando o assunto é nascer. Tampouco “dar errado” é apenas sinônimo de morte. Eva atravessou o corpo da mãe deixando uma laceração perineal de grau evitável, anunciando um novo caso de violência obstétrica no Brasil.

Violência obstétrica no Brasil

No Brasil, uma em cada quatro gestantes já foi vítima de violência obstétrica, como aponta o levantamento “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos”, de 2010, conduzido pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc. No sistema público, a porcentagem de vítimas de maus-tratos no parto chega a 45%, enquanto 36% das mulheres relatam terem passado por tratamento inapropriado, segundo dados do projeto “Nascer no Brasil: Inquérito nacional sobre parto e nascimento”, coordenado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz.

“Qualquer violência que reflita em um ser humano grávido será violência obstétrica, seja no pré-natal, no parto ou pós-parto”, afirma o ginecologista e obstetra Braulio Zorzella. No entanto, é muito comum que mulheres não denunciem ou sequer saibam que tiveram direitos violados em diversas situações. Como informação é um fator fundamental, o Lunetas lista a seguir algumas situações que se encaixam no rol da violência obstétrica: 

  • Se a autonomia da mulher não for respeitada;
  • Gritar, xingar ou agredi-la verbalmente;
  • Se informações forem ocultadas;
  • Cesáreas sem justificativas;
  • Afastar os bebês das mães logo após o nascimento, sem necessidade; 
  • Se a privacidade não for respeitada ou houver quebra de sigilo médico;
  • Cortar pelos pubianos sem consentimento;
  • Se a presença da doula ou acompanhante não for permitida;
  • Se profissionais não estiverem nos locais adequados;
  • Obrigá-la a ter o bebê em posição indesejada;
  • Se faltar estrutura para atendimento;
  • Realizar manobra de Kristeller ;
  • Uso de episiotomia quando não necessário.

A doula e presidente do Humaniza Coletivo Feminista, Gabriela Repolho de Andrade, 28, só se deu conta do que havia acontecido alguns meses após o nascimento de sua filha, Paula, em 2012. Gabriela estava com 37 semanas de gestação quando foi ao hospital com uma dor de cabeça muito forte. Uma discussão entre a médica e a administração do hospital sobre a carência do plano de saúde levou ao atraso no atendimento, fazendo com que a pré-eclâmpsia evoluísse para síndrome de HELLP As lembranças de ter tido os braços amarrados durante a cesárea são permanentes como a cegueira do olho esquerdo – os nervos ópticos haviam sido atrofiados por causa do aumento da pressão.  

Em 2013, o caso se tornou o primeiro no Amazonas a ser denunciado ao Ministério Público Federal como violência obstétrica. Apesar de ter sido arquivado, a mobilização de instituições estaduais e federais abriu espaço para a instauração de um inquérito nas maternidades do Estado, além de formar redes de informação e apoio às mulheres. Em 2015, foi organizada em Manaus a primeira audiência pública sobre o tema. “Essa mobilização provou que meu caso não era isolado, mas uma questão de saúde pública”, afirma Gabriela.

Assistência humanizada ao parto

Nascer e parir não são eventos tão naturais e fisiológicos quanto se supõe. Do modelo tecnocrático ao humanizado, a construção da assistência ao parto envolve disputas entre organizações, políticas públicas e ethos profissional, que partem de representações específicas sobre a mulher, o corpo e seus direitos. 

Mundialmente, nos últimos 100 anos, como explica Braulio Zorzella, a mulher tem sido conduzida ao parto hospitalar, uma das raízes da violência obstétrica. “Ainda estamos engatinhando para organizar um hospital que humanize a todos, quem dirá a uma gestante que não é doente”, diz.  

Se buscarmos como modelo países com os mais baixos índices de morte materna, como Inglaterra e Holanda, veremos que as gestações são divididas entre as de risco habitual ou fisiológico, conduzidas por obstetrizes ou enfermeiras obstétricas; e as gestações identificadas como de alto risco ou patológicas durante o pré-natal, ou que se tornam de alto risco no próprio parto, conduzidas por médicos obstetras. “No Brasil, as enfermeiras não têm esse tipo de autonomia na formação, então o centro das decisões em relação ao parto fica nas mãos dos médicos obstetras, que são treinados para fazer mais intervenções”, afirma Braulio. A separação entre especialidades que definem o treinamento no atendimento às parturientes também pode refletir em violência obstétrica. 

Segundo Braulio, para garantir o melhor tipo de assistência ao parto, é preciso que a mulher participe integralmente das decisões, que devem ser baseadas em evidências científicas sobre o que é mais seguro, e distribuídas de forma organizada para cada tipo de atendimento, isto é, de risco habitual e alto risco.

O tripé da assistência humanizada ao parto é o protagonismo feminino, a transdisciplinaridade e as evidências científicas

Plano de parto
O plano de parto é um instrumento pontual e objetivo, a partir do qual a mulher elenca onde, com quem e que tipo de atendimento ela gostaria de ter. Neste documento, ela pode sinalizar as intervenções maternas e para o bebê autorizadas por ela, além de quais métodos para alívio de dor gostaria de receber. “Norteado por evidências científicas, o plano de parto ajuda a alinhar as expectativas da mulher com os protocolos profissionais que serão seguidos”, afirma Braulio Zorzella.

Como denunciar uma violência obstétrica?

Caso as mulheres identifiquem algum tipo de violência obstétrica, é possível realizar denúncias no Ministério Público Federal, no Conselho Estadual ou Municipal de Saúde, no Ministério da Saúde (136), pelo Disque Denúncia de Violência contra a Mulher (180), na ouvidoria do hospital, e nos conselhos profissionais, como o Conselho de Classe dos Médicos (CRM) e o Conselho Regional de Enfermagem (Coren). Em estados que definem esse tipo de violação, os ministérios públicos estaduais também podem ser acionados.

No entanto, a advogada especialista em violência obstétrica Ruth Rodrigues recomenda que as denúncias judiciais (em busca de indenizações) precedam as administrativas (nos conselhos), já que é muito difícil que haja responsabilização rápida dos profissionais. “A tendência é que essas denúncias sejam arquivadas ou, se houver processo ético-profissional, que os profissionais sejam absolvidos”, explica. No entanto, o cenário pode mudar se muitas mulheres denunciarem um mesmo médico. 

Já no âmbito judicial, é possível trabalhar com prova reversa, danos presumidos e outros caminhos que levam à constatação de violação da lei. Isso significa que, se houve uma episiotomia e não há justificativas no prontuário, esse documento será utilizado como uma prova em favor da mulher, junto com seu relato de parto. “As denúncias nos órgãos públicos também criam dados e estatísticas que subsidiam novas políticas públicas e novos protocolos a serem aplicados”, defende Ruth. 

Cesáreas podem ser humanizadas?
Cesárea e humanização são palavras que não combinam muito bem. A recomendação da OMS é para que elas não excedam 15% do total de partos, já que apresentam maiores riscos de morte materna e de doenças respiratórias aos bebês. Apesar disso e da maioria das mulheres buscarem um parto normal, a proporção de cesarianas no setor privado chega a 88% dos nascimentos, de acordo com o inquérito “Nascer no Brasil”. No setor público, que inclui o SUS e os contratados do setor privado, a taxa é de 46%. 

“É preciso informação, acolhimento e privacidade. Forçar uma cesárea ou um parto normal constitui violência”, explica Braulio Zorzella. O ideal é que os profissionais forneçam informações sobre por que o parto normal é mais seguro e benéfico à saúde, na maior parte dos cenários, além de condições melhores para que ele aconteça. 

“De 10 a 15% dos casos terminam em cesarianas como resultado de um processo humanizado de assistência”, observa. Nestes casos, a cesárea ocorre por um motivo técnico de salvamento ou melhoramento das condições para a mãe e o bebê, com consentimento da mulher, e não por falta de estrutura, assistência ou profissionais qualificados.

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