O luto pós-parto e os múltiplos nascimentos simultâneos

É comum que mães e pais sintam saudade da vida anterior à chegada do bebê. Saiba como lidar com tantos sentimentos no luto pós-parto

Alice de Souza Publicado em 29.03.2022
Foto em preto e branco de uma mãe segurando um bebê que chora.
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Resumo

A maternidade e a paternidade não param a vida e a esse evento é comum se sobreporem sentimentos de saudade da vida que se tinha antes da chegada do bebê. Entenda mais sobre o luto pós-parto com os comentários de um especialista e relatos de mães e pais.

O nascimento de um filho é também o nascimento de uma mãe, um pai, um cuidador, um responsável. Desde a notícia da gravidez, começam várias transformações. No corpo, na casa e na mente. Devido a fatores como a pressão social, a romantização da maternidade, as opressões de gênero, essa mudanças podem atropelar os múltiplos nascimentos que se vivenciam ao mesmo tempo. Aí, quando o bebê nasce, vem junto um sentimento de saudade, quase um luto da vida que se tinha antes.

“Se eu tivesse a foto do que eu estaria vivendo hoje, eu poderia escolher com mais racionalidade”, confessa a empresária Mayara Ribeiro, 33. Mãe de gêmeos, ela engravidou em 2018. Na época, foi pega de surpresa com a gravidez gemelar, o que bagunçou os sentimentos. “Veio a responsabilidade e, ao mesmo tempo, a culpa. Eu não podia comer um chocolate, pois tinha que pensar na amamentação. Não podia beber uma cerveja, por estar gerando o bebê. Tudo isso foi se modificando ao longo dos sete meses. A partir do primeiro dia, já muda tudo na sua vida”, explica.

De fato, são muitas mudanças simultâneas ao longo da gestação e no pós-parto. “Envolve mudanças que vão desde a gravidez biológica à dinâmica social: com quem essa mulher vai estar convivendo mais, como ela vai pensar os seus planos de vida. A convivência familiar, a convivência conjugal”, explica o psiquiatra colaborador do Programa Saúde Mental da Mulher do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Alexandre Okanobo. 

O delegado Túlio Leno Goés, 36, tem duas filhas, de 3 e de quase 1 ano. Mesmo planejando a chegada da primeira criança e desejando muito ser pai há anos, ele se surpreendeu com a paternidade. “Essa perda da liberdade é uma coisa que mexeu muito comigo. Eu sou um paizão e as minhas meninas são a melhor coisa da minha vida, mas até hoje eu sofro com a perda de tempo para fazer minhas coisas. Hoje, eu passei a entender que a opção de não ter filho é superviável. Às vezes, a pessoa não quer perder isso”, diz.

Sentir saudade da vida antes da chegada do bebê é natural, o especialista explica. A intensidade desse sentimento e a consequente dificuldade de adaptação podem variar de acordo com o contexto da maternidade: se foi desejada e planejada; se foi inesperada, mas desejada; se foi inesperada e não desejada. Também varia de acordo com a estrutura e rede de apoio que sustenta essa família, isto é, se há a presença e participação de um parceiro ou parceira; como se dá o envolvimento e cobrança de outros familiares, como tios e avós; se há estrutura financeira para custear o impacto econômico da chegada de mais um membro no núcleo familiar. “O processo de parentagem não é só de um casal, é de uma família. Quanto menos apoio, mais sobrecarga em todas as adaptações de vida que serão feitas”, acrescenta Alexandre.

Todos os sentimentos do mundo no luto pós-parto

Três questões pesaram para a forma como Mayara recebeu e vê até hoje a gestação: a cobrança de outras pessoas, a opinião externa sobre o que deveria ou não ser feito, e as próprias mudanças na relação com o marido e pai das crianças impostas pela gestação. “No primeiro ano, eu pensava: ‘é muito injusto eu ficar totalmente a duas crianças, enquanto a vida do pai não muda tanto”, relata. A história dela é a de muitas mulheres que, ao contrário de Mayara, evitam expor a situação, com medo de mais julgamentos sobre a maternidade.

Mayara tem uma rotina regrada, em função das crianças, e passa pelo que chama de “ônus muito alto”: a divisão entre o trabalho doméstico e a vida profissional fora de casa. Ela acorda, organiza os filhos para a escola e vai trabalhar. Às 11h40, vai buscá-los na escola, almoça e à tarde regressa para o trabalho. Às 17h, volta para casa. Nesse momento, larga o celular de lado para dedicar um tempo aos filhos. Cuida do jantar e depois os põe para dormir. De tudo que sente falta de antes, a principal é o silêncio da casa. “Se eu tranco a porta do meu quarto, mas ouço meu filho chorar me chamando, como eu vou descansar?” Há ainda outras saudades. De poder escolher o que vai beber e comer, sem questionamentos. De chegar em uma loja e não ser questionada sobre onde estão os filhos.

Diferente de Mayara, a servidora pública Sarah Lemos, 36, teve uma gravidez planejada. Mesmo assim, não se furtou de viver o luto da vida pregressa. “Nos primeiros meses, minha força foi toda para aprender a ser mãe. Mas aconteceu uma sensação de saudade do tempo que eu tinha, das coisas que fazia, das oportunidades, da despreocupação. Muita saudade. Para mim foi e é ainda hoje assim”, conta. Para Sarah, a saudade não é de grandes momentos, mas de coisas simples, como “dormir, e efetivamente descansar”, diz.

A esse sentimento de nostalgia somam-se questões práticas. De não se preocupar em fazer uma feira e se virar com o que tem na geladeira. De chegar em casa e poder ler. De marcar um encontro com amigos sem a preocupação de pensar em com quem deixar a criança. A maternidade, diz, não para a vida. O primeiro ano da filha de Sarah convergiu com o tempo da mãe para escrever a dissertação de mestrado. Uma forma de lembrar da Sarah de antes foi lutar para concluir essa etapa educacional, lembrar de ser uma mulher que gosta de estudar, de escrever, de pesquisar.

Parte do sentimento de Sarah vem das frustrações com as expectativas de parceria criadas, na mente dela, com a paternidade. Como os planos de apoio não se concretizaram e houve um acúmulo de trabalho, a situação ficou mais grave. Sarah chegou a confundir os sentimentos com uma depressão perinatal, mas foi se entendendo ao conversar com outras mulheres, amigas e mães. “Até hoje eu sinto saudade, acho que é ainda maior agora. Mas foi difícil entender que eu não precisava me sentir culpada por isso”, lembra.

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Sarah Lemos diz que a maior saudade da vida antes da filha é de poder fazer coisas simples, como dormir e descansar

As transformações ocorrem em mães e pais, mas, segundo Alexandre Okanobo, a mulher acaba sendo mais impactada por elas em função da estrutura social, que lhes impõe mais o trabalho do cuidado. Túlio sabe disso e, por isso, tenta sempre refletir sobre o impacto da parentalidade na vida do casal. “Depois que a primeira nasceu, eu mudei completamente a minha concepção. O trabalho é gigante. A gente abdica de tudo mesmo. Se eu vou fazer algo fora, fico com consciência pesada de que deveria estar em casa”, conta. 

Luto da vida anterior é diferente de depressão perinatal

Os sentimentos compartilhados por Mayara e Sarah são comuns, explica Alexandre Okanobo. Não falar sobre o tema, por outro lado, pode encobrir essa sensação mais corriqueira do que se imagina e confundir esse “luto” com questões de saúde mental, como uma depressão perinatal. Esta está correlacionada a uma patologia, ou seja, a uma doença identificada mediante diagnóstico que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), acomete 1 em cada 10 mulheres em países de alta renda e 1 em cada cinco mulheres em países em desenvolvimento.

A depressão perinatal é quando a mulher apresenta um humor deprimido, perda de interesse em dedicar-se às atividades relacionadas ao bebê e energia reduzida para as tarefas do dia a dia, inclusive podendo comprometer a adesão das mulheres ao pré-natal e aos cuidados obstétricos. Para que seja feito o diagnóstico, os sintomas devem persistir por mais de duas semanas, sendo presentes na maior parte desse tempo de forma constante. A depressão perinatal está associada a aumento do risco de prematuridade, sonolência ou insônia, compulsão alimentar, perda de libido, crises de pânico, apatia e crises de choro.

Um estudo realizado pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) com 184 mulheres que deram à luz durante a pandemia mostrou que 38,8% delas tiveram depressão após o parto. O índice é quase o dobro do registrado antes da crise sanitária no país, quando a depressão nesse contexto acometia 20% das mulheres.

Ter saudade da vida pré-gestação, porém, é diferente. Nessa situação, a pessoa ainda consegue ter bons sentimentos em relação às questões que envolvem a gravidez. “O limite começa a ser passado quando a pessoa entra em contato com a saudade e mergulha nisso, não consegue sair, tornando a experiência no dia a dia ruim. A depressão não é tristeza, é a incapacidade de se sentir bem”, descreve o médico. 

Saudade não é falta de amor

Apesar de todas as saudades, Mayara faz questão de ressaltar o amor que sente pelos filhos. “Eu amo meus filhos. Eles são tudo para mim, mas se eu tivesse um botão de volta, com a visão de hoje, eu não os teria. E isso não diminuiu o amor que eu tenho por eles”, conta. O sentimento pode parecer contraditório, mas é uma compreensão que Mayara só adquiriu após pedir ajuda profissional para lidar com a saúde mental pós-maternidade. O acompanhamento da psicoterapia ajuda a entender os limites entre um “luto” da vida anterior e uma situação mais grave, como uma depressão perinatal.

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Mayara Ribeiro diz que, se pudesse saber o que estaria passando hoje, teria escolhido a maternidade com mais racionalidade

O acolhimento de amigos e parentes também é uma forma de mitigar os impactos da mudança provocada pela gestação. “A diferença não é no meu sentimento, é na forma como as pessoas veem a minha tristeza. Muitas mães têm medo de dizer que estão cansadas, tristes, pois temem não ser aceitas. Muita gente cobra que a mãe não tem que ser mais mulher”, lamenta Mayara. Sempre que encontra uma amiga passando pela situação, Mayara recomenda que a pessoa tire um tempo pra si, para lembrar de quem era antes da maternidade.

“Um dia, eu estava com tanto problema que cheguei em casa, liguei o computador, procurei uma hospedagem numa praia, convidei duas amigas e fui passar o fim de semana. Metade do caminho, fui chorando, me sentindo culpada. Quando voltei, a sensação era que eu existia.” Lembrar de si também é uma estratégia usada por Sarah para vencer a saudade, que ela faz questão de dizer que em nada tem a ver com falta de amor pela filha. “Se eu pudesse ter a oportunidade de viver algumas coisas de novo, eu viveria, mas isso não anula a minha maternidade, o meu amor pela minha filha e pela minha vida atual”, conta.

Para ultrapassar a saudade e evitar que se agrave, Alexandre recomenda que as famílias cuidem de si. “Um bom cuidado com a criança precisa de um bom cuidado com o adulto. Não dá para cuidar do outro negligenciando a si próprio, lembra. Esse cuidado, lista o profissional, pode vir por meio de ajuda psicoterápica, mas também de outras formas. Uma delas é rompendo o plano da idealização sobre a maternidade, se informando de todas as transformações físicas, hormonais e biológicas associadas a esse momento, e entendendo que a parentalidade também traz dificuldades. Para isso, o melhor caminho é trocar experiências. “Não é egoísmo, não é culpa. Não tem que ter medo de dizer”, aconselha Sarah Lemos.

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