Nos acampamentos e assentamentos do MST, a infância é conectada com a terra e com as lutas pelo direito à educação e à subsistência
Sem Terrinha é como se identificam as crianças que vivem em comunidades do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As escolas presentes nas áreas de assentamento e acampamento são os principais espaços de resistência para esse aprendizado.
Ana Gabriela e Carlos Gabriel têm uma vida ligada à terra e à colheita. Os irmãos, de 9 e 6 anos, aprenderam cedo a valorizar o lugar onde vivem, em contato diário com a natureza e com a rotina de uma vida no campo. É com os dedinhos enfiados na terra preta e o cheiro do mato que eles começam a entender a missão de estarem ali, brincando de plantar e de colher, no acampamento Terra Cabana, em Benevides (PA), região metropolitana de Belém. O local é uma das ocupações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Lá, 56 famílias vivem da agricultura, plantando, colhendo e resistindo na luta pelo direito a um espaço para o trabalho e subsistência.
As crianças que moram nos acampamentos e assentamentos do MST são chamadas pela própria comunidade de Sem Terrinha. Elas aprendem, no dia a dia, a importância de lutar pelo lugar onde vivem, fazendo da terra sustento e casa. Tudo com carinho e cuidado pela natureza. “Aqui lidamos com a terra todos os dias, então eles sabem muito, às vezes, até melhor do que a gente. Eles se interessam e sempre têm o momento de plantar, tocar na terra, de conhecer as sementes. Esse é o nosso principal papel: repassar o conhecimento”, explica Brenda Balieiro, educadora do Terra Cabana e mãe de Ana e Carlos.
A rotina dos Sem Terrinha é no campo. Longe da correria da vida urbana, elas brincam com a terra e na terra. Plantam, trocam mudas, falam dos frutos, das flores e convivem com os animais domésticos ou com aqueles que fazem parte da criação da família, como galinhas, patos e porcos. Vivenciam, em casa e na escola, as questões que atravessam a luta camponesa de suas famílias. Por isso, compreendem a importância de garantir seus espaços de moradia e educação. Toda vez que se reúnem em algum evento oficial cantam:
“Por terra, por escola, saúde e educação. Desse meu direito eu não abro mão!”
Antes da pandemia, eventos regionais e nacionais eram organizados pelas crianças com o apoio de seus educadores. Em 2018, mais de 1,2 mil Sem Terrinha de todo o país se reuniram em Brasília no Primeiro Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha. Eles participaram de atividades pedagógicas, brincadeiras e conversas sobre direitos, educação e alimentação saudável.
As famílias do MST ocupam terras que não cumprem o papel social de serem produtivas. Fazem das ocupações locais de cultivo e de moradia legal. Nesses espaços, reivindicam – e muitas vezes constroem por conta própria – os caminhos para manter a educação das crianças.
A escola é um dos primeiros espaços construídos nos acampamentos, geralmente funcionando como escolas itinerantes, com educadores da própria comunidade. É uma forma de garantir que o ciclo educacional das crianças que acabam se deslocando para esses locais não seja rompido. Com o tempo e as lutas, algumas escolas conseguem autorização e apoio do poder público.
De acordo com o MST, há aproximadamente 160 mil crianças e adolescentes nas 2 mil escolas públicas presentes nos assentamentos e acampamentos do movimento pelo país. Nessas escolas, a questão pedagógica ligada ao campo é fator central. “No acampamento ainda temos uma escola itinerante, onde há espaço para estudo que funciona à tarde. Tem o momento do lanche, do aprendizado, da contação de histórias e do cuidado com as plantas. Quase não trabalhamos com livros didáticos: são livros de literatura, contação de história… Prezamos pela diversidade”, conta Brenda, que dá aulas com mais uma professora acampada no Terra Cabana.
“O valor principal que queremos passar para os nossos Sem Terrinha é a importância da luta pela terra”
Os Sem Terrinha compreendem o mundo e os espaços sociais a partir de atividades específicas desenvolvidas pelos educadores do movimento, de maneira simples, mexendo com a terra, com as plantas e com os animais. “Cuidar da terra é especial porque ela alimenta e cultiva a gente e a gente cultiva ela. Minha planta preferida é o mangostão”, diz Ana Gabriela. “A terra nos dá vida e fruto. Meus preferidos são mangostão, macaxeira, rambutã, limão e banana”, diz Carlos Gabriel.
Na área rural do município de Marabá, sudeste do Pará, quase 200 alunos estudam em um espaço de referência na região: a Escola Municipal Carlos Marighella, no Assentamento 26 de Março. Fundada em 1999, a escola é uma das pioneiras do modelo de educação do campo defendido pelo MST.
Nos primeiros anos, as atividades da escola funcionavam em um barracão construído pelos próprios assentados. A área da ocupação foi fundada na antiga fazenda Cabaceiras, propriedade que se transformou em cenário de graves desrespeitos às leis ambientais, trabalho escravo e conflitos armados. A presença do MST foi fundamental para as denúncias e para o fim das atividades da fazenda, desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2008.
Nesse tempo, a escola Carlos Marighella foi crescendo e necessitava expandir seu espaço. Em 2001, foi reconhecida pelo MEC como a primeira escola no Brasil em área de acampamento. Em 2016, recebeu recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e o barracão deu lugar a um prédio de alvenaria, oferecendo mais conforto para os estudantes.
A diretora da escola, professora Rosângela Reis, explica que o espaço é sinônimo de refúgio e resistência. É lá que as crianças ficam quando ocorre alguma tensão no assentamento e onde as lideranças se reúnem com a comunidade. “O assentamento gira em torno da escola. As festividades, assembleias e reuniões são feitas todas aqui. As melhorias que chegam nessa área também são em função da escola, como o asfalto e a sinalização nas vias que os ônibus escolares trafegam”, conta.
Atualmente, a Carlos Marighella faz parte do sistema municipal de ensino de Marabá, como escola do campo. Atende alunos do Assentamento 26 de Março e de comunidades vizinhas que somam seis agrovilas. Os alunos cursam a Educação Infantil e o Ensino Fundamental I e II. No espaço, além das salas de aula regulares, há um laboratório de informática, biblioteca, pátio amplo, oferta de merenda e uma área de plantio onde os estudantes desenvolvem as atividades da disciplina de agricultura familiar. “Todas as crianças têm contato com a natureza, com o plantio e a criação de animais. A disciplina de agricultura familiar veio para contribuir com essa vivência”, ressalta Rosângela.
Tudo o que é cultivado nas aulas abastece a cozinha da escola e vai para o prato dos estudantes. O que sobra é dividido entre as crianças. Couve, cebolinha, coentro, quiabo, rúcula, pimenta, alface, pepino, abóbora e maxixe são alguns dos alimentos plantados e colhidos pelas mãos dos Sem Terrinha.
Ana Lilia é aluna da escola desde pequena e moradora do Assentamento 26 de Março. Aos 11 anos, ela já compreende bem a importância de defender e cuidar da terra. “Na escola aprendemos que temos que plantar muitas árvores”, diz.
“Não podemos derrubar [as árvores] porque se a gente não cuidar, não vai ter nada na natureza. Daí não tem como sobreviver”
A família planta macaxeira para venda e cria galinhas para consumo próprio. A mãe, Aurinete Silva, lembra com orgulho de como a escola melhorou a vida das crianças. “A educação é ótima. Eu fico sem preocupação quando meus meninos estão na escola. Se estiverem ‘ruim’ em alguma matéria, eu corro lá e os professores ajudam. Eles aprenderam muito sobre como mexer na terra. É tão bonito quando a Ana chega em casa toda sujinha mas toda alegrinha, dizendo que a melhor hora é quando vai para a horta!”, diz Aurinete.
A menina sente falta da rotina da escola, afetada por causa da pandemia. Os alunos ainda não retomaram as aulas presenciais e precisam acompanhar as atividades disponibilizadas na escola toda semana. “Sinto falta dos meus colegas, da hora de brincar, da educação física. A atividade que eu mais gostava era a horta. A gente plantava todo o tipo de coisa lá. Couve e berinjela era o que eu mais gostava porque é bom comer também”, conta Ana Lilia.
A educação na área dos acampamentos e assentamentos do MST se propõe a garantir o direito das crianças de estudarem dentro de suas comunidades, aprendendo o que faz parte de suas vivências. Escolas como a de Marabá e a de Benevides apontam a importância de um projeto pedagógico social e ambiental para as crianças de hoje.
Brenda Balieiro, mãe, professora e militante do MST, resume a forma natural como os Sem Terrinha se entendem por agentes de lutas e também como crianças livres e cuidadoras de suas terras. “Eu posso dizer que os meus filhos têm outros olhares para a vida e para a natureza. Quando se identificam por aí, não falam só os nomes, mas dizem que são Sem Terrinha. Isso é muito importante para a gente”, finaliza.
Uma das principais bandeiras do MST é o Programa de Reforma Agrária Popular. O objetivo é a democratização da terra, a distribuição de riquezas e a defesa dos direitos de quem vive no campo e na floresta. O movimento reivindica também a educação pública de qualidade e gratuita para as crianças, bem como a formação continuada técnica e científica.
O MST defende o compartilhamento de um projeto de poder soberano e popular, eliminando a grande concentração de terras privadas e latifundiárias que devastam a floresta, contaminam o meio ambiente e desrespeitam os direitos básicos dos povos que vivem da terra. Segundo o próprio movimento, para que isso aconteça, é necessária uma transformação social que começa dentro das comunidades do campo a partir da educação ambiental e política de suas crianças.
Leia mais
Comunicar erro
Assista ao minidocumentário sobre a Escola Carlos Marighella, produzido para a série Narrativas Amazônicas, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa).