A cientista e biomédica que liderou o sequenciamento do genoma do novo coronavírus no Brasil é referência para todas as crianças que amam a ciência
Jaqueline Goes, cientista e biomédica premiada e reconhecida internacionalmente, conversa sobre a sua infância, vida acadêmica, como ela enxerga o atual momento da ciência, a representatividade feminina ali dentro, saúde mental e planos futuros.
O exercício de voltar no tempo e conectar com o nosso “eu” criança é algo que deveríamos fazer com mais frequência. A gente cresce e esquece, por vezes, todo colorido que ainda nos habita; talvez, logo abaixo da camada de “demandas e preocupações da vida adulta”. Para o poeta Manoel de Barros, é no potencial questionador e criativo das nossas raízes crianceiras que se encontra a força para imaginar, criar e transgredir. Na infância, nos dias que antecedem eventos escolares como a “Feira de Ciências”, é comum perceber os olhares inquietos dos pequenos pesquisadores, meninos e meninas que anseiam apresentar ao mundo suas descobertas e, quem sabe, começarem a ambicionar um futuro dentro de laboratórios e centros de pesquisa.
Há muitos anos na ciência, a biomédica e cientista Jaqueline Goes ganhou reconhecimento internacional em 2020 por liderar a equipe que mapeou os primeiros genomas do novo coronavírus (SARS-CoV-2) no Brasil, em apenas 48 horas após a confirmação do primeiro caso de covid-19 no país. Tal estudo possibilitou descobrir as características do vírus, acompanhar como ele está se desenvolvendo, o que causa na população, e formular testes e vacinas.
Se Jaqueline pudesse encontrar a Jaqueline de 10 anos de idade hoje, diria para ela não desistir dos estudos, porque a educação é transformadora. Filha de pai engenheiro civil e mãe auxiliar de enfermagem e pedagoga, a baiana aprendeu desde cedo a valorizar o conhecimento. Foi na cidade de Salvador, ainda na década de 1990, que ela e o irmão despertaram para o mundo ainda crianças, com brinquedos educativos, música e muita leitura.
“Meu pai trazia muitos livros de presente para a gente. Eu tenho eles guardados até hoje com muito carinho: de contos de fadas à arquitetura na África”, relembra a cientista.
Nesta entrevista ao Lunetas, ela fala sobre a sua infância, vida acadêmica, o atual momento da ciência e a representatividade feminina ali dentro, saúde mental e planos futuros. Homenageada como personagem de histórias em quadrinho e na nova coleção “Mulheres inspiradoras”, da marca Barbie, a pesquisadora aposta na diversidade dentro dos grupos de pesquisa científica para combater desigualdades.
Lunetas – Como foi a sua infância e qual o papel que a educação teve em sua formação, desde pequena?
Jaqueline Goes – A educação tem papel central na minha formação, principalmente porque meus pais vieram de famílias humildes. Por meio da educação, eles conseguiram melhorar a nossa vida, investindo para proporcionar uma educação de qualidade para mim e para o meu irmão. Desde a infância nós frequentamos escolas boas, particulares (as escolas públicas não eram escolas de qualidade como na época deles), e sempre nos incentivaram não só através da educação formal, mas também através da educação dentro de casa. Minha mãe, pedagoga, acompanhava os nossos estudos de perto. Meu pai, engenheiro civil, apesar de não ter essa veia didática, entende que a educação é realmente o que transforma e por isso nos ofereceu a possibilidade de fazermos cursos, como o de inglês, financiou nossa educação no ensino médio e, na graduação, arcou com os custos de uma instituição particular, permitindo que eu tivesse acesso aos melhores meios para me formar. A educação é nossa prioridade desde a infância.
Como veio a decisão de se tornar cientista? Você conseguia se visualizar desde nova num espaço ocupado majoritariamente pelo público masculino?
JG – A decisão de me tornar cientista veio na fase adulta, durante a graduação. Conheci a profissão de cientista dentro do ambiente acadêmico. Eu entrei no curso de biomedicina na expectativa de ser analista clínica, mas comecei a ver possibilidades de me tornar cientista, porque os professores falavam sobre isso e traziam vivências do trabalho que estavam desenvolvendo nas instituições de pesquisa (Fiocruz e UFBA). Com isso, eu fui despertando para esse outro lado que eu não conhecia, não sabia ser possível, nem imaginava como alguém se tornava cientista. Quando eu comecei a pensar em atuar na área da pesquisa, não me veio a ideia de que eu entraria numa área cujo público era majoritariamente masculino. Eu só tomei consciência disso quando entrei num grupo de pesquisa e comecei a perceber ao redor como as coisas se desenvolviam, a partir de uma visão masculina, pois, naquela época, a maioria dos pesquisadores renomados dentro dos seus campos de estudo e dos professores considerados cientistas eram homens.
Quais são as suas referências femininas na ciência?
JG – Minhas referências femininas durante a formação praticamente inexistiam. Eu não as tinha como referências femininas, mas como referências de pesquisa. Elas eram Dra. Aline Cristina Andrade Mota Miranda Mascarenhas e Dra. Giselle Calasans de Souza Costa, minhas professoras mais próximas, que me incluíram no grupo de pesquisa. Já a professora Marilda Gonçalves me acolheu quando eu tive dificuldades para conduzir a pesquisa e me disse que daria tudo certo. Das muitas vezes que pensei em desistir, ela foi uma das pessoas que me ajudou a não abrir mão dessa carreira que demanda muito da gente e, em contrapartida, não dá muito retorno. Depois, a pesquisadora Valéria Borges me conduziu para vários processos de premiações e projetos em que eu obtive êxito. Já a Dra. Ester Sabino é hoje a minha maior referência feminina em ciência. Ter tido a oportunidade de trabalhar e conviver com ela foi muito marcante, pois, quando atingimos objetivos importantes para a saúde pública no Brasil, e por consequência para a humanidade, a gente, aluna e mulher, nunca é colocada em posição de destaque.
Durante a sua jornada como pesquisadora, desde a época da graduação até o atual pós-doutorado no exterior, conte um fato marcante que te trouxe muita alegria e também alguns dos desafios enfrentados.
JG – Um fato marcante foi a sabedoria e a integridade da Dra. Ester no sentido de dizer “Você fez o trabalho [do sequenciamento do SARS-CoV-2], é você quem vai responder por ele”. Ela realmente me colocou no holofote. Já os desafios enfrentados estão principalmente relacionados ao quanto a pesquisa demanda de nós, alunas, na fase do mestrado e do doutorado, isso obviamente impacta nossa vida pessoal, a gente acaba tendo alguns conflitos internos e refletindo se vale a pena estar na área acadêmica. Quanto realmente eu vou ter de retorno? É uma dedicação que parece que nunca vai acabar e é pouco reconhecida no Brasil, sem apoio financeiro e dos governos. O negacionismo nos faz ter de lutar ainda mais para conseguir colocar os nossos trabalhos, resultados e conselhos de forma mais clara para a população. Hoje, lutamos contra a desinformação.
Mulheres são maioria nas universidades brasileiras, todavia poucas finalizam os estudos ou embarcam numa carreira acadêmica. Sobre a invisibilidade feminina, como você avalia essa desigualdade dentro da ciência e o que pode mudar para que as nossas meninas vislumbrem exemplos positivos ali dentro?
JG – No Brasil, muitas mulheres vão para as áreas de graduação, mestrado e doutorado, mas, quando olhamos gradativamente, a gente não observa esse número avançando em posições acadêmicas. Ou seja, quando chega a fase de pesquisadores ocuparem as cadeiras de coordenação dos grupos de pesquisa ou mesmo de institutos, não vemos uma representatividade feminina grande. Acho que é justamente aí que reside a questão da desigualdade dentro da ciência – a forma como a sociedade brasileira está estruturada reproduz não só o machismo, a misoginia, mas também reproduz essa desigualdade. A gente tem uma sociedade que cobra muito do masculino, o papel social de provedor, o que é incompatível com a carreira científica e acadêmica no Brasil. Só fica nesta área quem tem condições financeiras de se dedicar à ciência, porque a maioria dos editais e a forma como as pós-graduações funcionam exigem que o(a) pesquisador(a) tenha uma dedicação exclusiva, com uma fonte de renda única da bolsa de pesquisa. A remuneração financeira não é compatível com o custo de vida necessário para que um indivíduo (independente do gênero) consiga abarcar as responsabilidades sociais de construção de família, de prover uma casa, de se sustentar. A academia no Brasil ainda é uma área de pessoas privilegiadas, e eu fui uma delas porque eu tive o suporte financeiro dos meus pais praticamente até o final do mestrado.
Ser uma mulher negra, nordestina e em ascensão num Brasil que ainda possui limitações para abordar o passado colonial, te coloca como farol para muitas crianças negras. Ao mesmo tempo em que isso pode influenciar outras pessoas, você se sente pressionada ou se autoexige? Como fica a saúde mental?
JG – Quando me colocam nessa posição da representatividade máxima da ciência, dentro do universo das pessoas pretas, eu me sinto pressionada a ser esse símbolo para as crianças, o que eu particularmente não me considero. Não sou a única cientista negra que existe no Brasil (Sônia Guimarães, Katemari Rosa e uma série de outras mulheres pretas são exemplos de cientistas renomadas). Ganhei uma posição de destaque por uma questão circunstancial, pois poderia ter sido qualquer outra pesquisadora que estivesse envolvida naquele momento com aquela questão. Por que não trazer à tona outras cientistas brasileiras que poderiam responder de forma tão boa quanto a que eu respondo? Também me sinto muito pressionada por conta da exigência comigo mesma, sou muito perfeccionista, gosto que tudo saia do jeito mais correto possível e, por isso, tento controlar todas as etapas dentro de cada processo em que estou envolvida. Em relação à saúde mental, acho que todo mundo sofreu nesta pandemia. Ano passado, sofri menos diante da correria de aulas, palestras e trabalhos que deixou a mente ocupada, sem tempo para raciocinar sobre questões da vida. Neste ano, o fato de sair do país e o ritmo de trabalho aqui em Londres ser diferente, além da redução dessa energia que estava em movimento, me deu uma certa deprimida, pois eu comecei sentir questões que eu precisava acessar e que foram mascaradas. Comecei a cuidar da saúde mental na fase adulta, faço terapia há bastante tempo e a motivação para isso foi, sem dúvida, o ambiente acadêmico. Sinto que a minha terapia iniciou um pouco tardia, se eu tivesse noção do quanto cuidar da saúde mental é importante e se tivesse tido orientação (meus pais não sabiam disso), teria começado mais cedo.
Depois de ser homenageada por diversas organizações e mídias, agora você é celebrada com uma boneca Barbie. Como você vê a sua representatividade para as meninas (e meninos, que precisam entender que mulheres podem ocupar todos os lugares)? Já recebeu mensagens de crianças ou dos pais?
JG – Recebo muitas mensagens de pais querendo comprar a boneca para as crianças e até para si, justamente por não terem tido essa referência quando eram mais novos, o que também foi a minha realidade. Na minha infância, apesar de eu ter brincado de Barbie, ela não me representava e era completamente diferente do que eu imaginava para mim. Agora, essa homenagem traz a boneca um pouco para perto de mim e de crianças como eu. Ainda não há interesse em comercializá-la, apesar de uma demanda grande no Brasil, mas acredito que abra portas para que outras empresas queiram comercializar bonecas representativas de cientistas brasileiras, principalmente mulheres negras.
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Crianças são cientistas natas e sua curiosidade pode ser estimulada a todo o momento. O que você pensa sobre a importância da educação nesse processo de estimular a potencialidade de cada criança? Tem alguma figura marcante (professor(a), personagem da literatura ou de algum desenho, familiar etc.) que você recorda com carinho?
JG – Fui criada em um ambiente onde a pedagogia era muito presente, então eu tive muitos estímulos que me guiaram por esse caminho da educação, por mais que não tenham sido diretamente para a ciência. Meu pai fazia muitos de seus trabalhos como engenheiro em casa, eu cresci vendo esses desenhos técnicos. Ele também trazia livros de presente para a gente, isso me deixava superempolgada e eu tenho eles guardados até hoje com muito carinho: de contos de fadas à arquitetura na África. A diferença entre eu e meu irmão é de apenas de quatro anos, nós crescemos juntos e fomos estimulados para despertar para o mundo, de maneira geral, com muita leitura, brinquedos educativos e músicas reflexivas.
O que a Jaqueline de hoje diria para a Jaqueline de 10 anos de idade?
JG – Para ela continuar nesse caminho dos estudos, porque a educação é transformadora. O que eu mais me orgulho é não ter desistido, embora tenha pensado em parar muitas vezes. Ter pessoas ao meu redor que me fizeram refletir, me ajudou a ter essa noção de “olha, não está legal nesse momento, mas isso não é motivo suficiente para você desistir, pois você tem um futuro brilhante lá na frente”. As pessoas enxergavam em mim o que eu não enxergava. Eu sou evangélica e, em muitos momentos, minha fé foi confrontada com a ciência. Hoje, eu entendo que elas podem caminhar juntas, em paralelo, sem que uma anule a outra.
Quais são os próximos planos?
JG – Meu plano é estabelecer um grupo de pesquisa e ser aprovada num concurso público. Poder desenvolver pesquisa no ambiente acadêmico e proporcionar oportunidades para outros como eu.
Estimular a diversidade e ir na contramão do que a gente costuma observar por aí
* Jaqueline Goes é doutora em Patologia Humana e Experimental, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, atualmente, desenvolve pesquisas em nível de pós-doutorado no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo da Universidade de São Paulo (IMT/USP). Vencedora no prêmio Capes de Teses 2020, ela também integra o Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus.
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