A crise climática aumenta os índices de casamento infantil, exploração e violência sexual; a chave para lutar por justiça climática e de gênero está na educação
Apesar das mulheres liderarem ações que melhoram a qualidade de vida e protegem o clima, elas ainda são as principais vítimas da emergência climática. Estudos apontam que 59% dos casos de violência de gênero estão ligados a questões ambientais e climáticas.
A emergência climática tem múltiplos retratos, evidências científicas e fatos que provam o quanto o tema é interseccional. Apesar do negacionismo que ainda persiste em algumas realidades políticas, é quase consenso reconhecer que a crise climática é a maior ameaça ao futuro global do nosso planeta. Entre os fenômenos e impactos que já sabemos de cor e as estatísticas cada vez mais assustadoras ao tempo presente, muito tem se falado sobre a conexão do tema com as questões de gênero. Porém, ainda existem nuances e invisibilidades. O que provavelmente pouquíssimas pessoas sabem é que as mudanças climáticas estão aumentando as taxas de casamento infantil ao redor do mundo.
Quem traz à tona essa realidade oculta é a série documental intitulada “Hidden Connections” (“Conexões escondidas”, em tradução livre). Fruto de uma parceria entre a Take Part e a Thomson Reuters Foundation, o tom dramático da produção audiovisual revela a história (real) de Brishti e Razia, duas amigas que foram obrigadas a se deslocar após uma enchente violenta destruir suas casas e suas cidades em Bangladesh. Enquanto meninas e refugiadas climáticas, suas vidas e futuros entram em jogo. E uma das formas de sobreviver – com suas famílias – é a rendição ao casamento infantil. Entre os argumentos, os pais-personagens destacam a esperança do acesso à educação, a possibilidade de ganhar um dote ao oferecer sua filha, proteger a honra das meninas, entre outros.
Segundo a rede mundial Girls not Brides, o aumento deste cenário é um dos resultados diretos das secas em Moçambique, Etiópia, Sudão do Sul e Guatemala, por exemplo, que continuam ameaçando o futuro de milhares de meninas. Vale lembrar que Bangladesh ocupa uma das primeiras posições do ranking de casamento infantil (52%) e que a crise climática é “apenas” mais um catalisador para a realidade que, infelizmente, estrutura a cultura do país.
Em julho deste ano, o Grupo de Trabalho de Gênero e Clima (Observatório de Clima) lançou um infográfico inédito que aborda três eixos principais: impacto, representação e combate à crise climática. Um dos objetivos principais é a provisão de dados e evidências para a comunidade climática em relação ao papel das meninas e mulheres frente à emergência que vivemos no Brasil. Por muito tempo, a população feminina era vista apenas como objeto de pesquisas, classificadas como “vulneráveis” e só. Hoje, há inúmeros recursos e estudos que comprovam como as mulheres “lideram e promovem ações concretas que melhoram qualidade de vida e protegem o clima”. Há um cenário crescente de protagonismo, que vai além do estereótipo de vulnerabilidade.
Desde a infância, a jornalista Isis Diniz, que é mãe, ambientalista e especialista em divulgação científica, foi sensibilizada pela questão ambiental. “O que mudou com o tempo é que validei minhas observações e aprendi mais detalhes sobre os reais impactos e outras realidades das mulheres. Tenho mais conhecimento, dados e validações para não achar que eu aferia o machismo, como as mulheres são atingidas. Mas que, realmente, há estudos comprovando isso”, afirma.
Por outro lado, a bióloga e mestre em Ciência Ambiental Gabriela Couto é uma das poucas pesquisadoras do Brasil que mergulhou na temática de desastres climáticos sob o recorte exclusivo da realidade das mulheres. Doutoranda do INPE-CCST, ela traz a perspectiva do gênero como categoria analítica para mostrar a diferenciação dos impactos climáticos na população feminina. Sua pesquisa de doutorado, que está em fase de conclusão, identifica e reconhece os fatores de idade, local e motivo das vítimas de desastres ambientais.
No Brasil, Gabriela compartilha alguns pontos de luz. Primeiro, ela menciona um grupo de pesquisadoras que fez um estudo na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, sobre educação, gênero e capacidade adaptativa a riscos e desastres. Um dos resultados da pesquisa foi a educação como elemento-chave para resposta a situações de vulnerabilidade feminina. Além disso, destaca a dificuldade de qualificar esse tema na dimensão nacional, pela falta de dados e pesquisas específicas na área. “Hoje, a mortalidade por desastres no Brasil é um número. Se você me perguntar ‘quem morreu no desastre da Região Serrana no Rio de Janeiro, em 2011? Qual o nível educacional, eram homens ou mulheres, qual a idade?’ Vão responder que eram 1.030 mortos. ‘E nas enchentes em Maceió em 2017? Quem foi o grupo mais afetado?’ Não se sabe”, critica, durante o webinário promovido pelo Observatório do Clima e pela Imaflora.
“Não existe hoje um instrumento que faça uma análise por idade, gênero e nível educacional para mortalidade por desastres no Brasil”
Em 2020, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) publicou um relatório descrevendo como a degradação ambiental afeta negativa e desproporcionalmente as mulheres. Baseado em mais de 80 estudos de casos globais e aproximadamente mil fontes, um dos dados mais reveladores que provocaram as autoridades foi a constatação de que casos de violência de gênero estão ligados a questões ambientais e climáticas.
São muitas situações. O fato de as mulheres terem menos acesso aos recursos naturais é uma ameaça quando, por exemplo, madeireiros, pescadores ou garimpeiros ilegais chegam aos seus territórios e comunidades. Na proteção de suas terras, os corpos femininos tornam-se escudos de autodefesa, resultando – muitas vezes – na perda de suas próprias vidas.
Além das defensoras ambientais, a violência é também bastante perceptível no grupo de refugiadas climáticas. Muitas vezes, mães e filhas enfrentam perigos inimagináveis pela sobrevivência e busca por um refúgio seguro. Porém, o desfecho pode ser trágico: são separadas, violentadas, violadas e exploradas sexualmente. Em contextos rurais, quando são os homens que migram em busca de trabalho a outras cidades – ou até países -, uma nova carga de responsabilidade recai sobre as mulheres que permanecem e precisam administrar diversas frentes do núcleo familiar. Do dia para a noite, elas se tornam responsáveis por garantir água, comida e combustível para cozinhar e aquecer seus lares.
Há uma vulnerabilidade particular quando olhamos, em especial, para as meninas adolescentes. De acordo com o position paper da Plan International, a combinação dos efeitos da discriminação de gênero com suas idades tem sérias implicações em seus direitos. Isso porque as mudanças climáticas ampliam as desigualdades que esse grupo já sofre, assim como o seu acesso desigual à saúde, saúde sexual reprodutiva, educação, participação e proteção. Diante disso, o documento destaca fortemente a importância da educação para construir conhecimento, habilidade, atitudes e comportamentos necessários para o engajamento e desenvolvimento de políticas climáticas. Nesse sentido, o papel da educação ambiental é capaz de empoderar as meninas mais afetadas pela emergência ambiental a liderarem movimentos por justiça climática.
Para Isis, a educação representa um caminho de esperança. “Sabendo que as mulheres são mais atingidas, tento dar a melhor educação que eu puder para que a minha filha seja menos atingida por esse problema e também ajude a mudar esse futuro com consciência desde cedo”, pontua.
Sem política pública, a crise climática não se resolve. Por isso, a cooperação entre governos nacionais e subnacionais são a chave para transformações mais sistêmicas no que tange à igualdade de gênero na pauta climática. Os espaços de tomada de decisão ainda são muito brancos, elitizados e masculinos, trazendo graves contradições ao caminho de desigualdade que desejamos combater.
Entre as iniciativas de gênero que, felizmente, têm florescido no campo de combate à emergência climática, destaca-se o Mulheres Unidas pelo Clima (MUC Brasil). A proposta visa informar mulheres e meninas brasileiras sobre a crise climática de forma didática e alinhada às suas respectivas realidades. Ao mesmo tempo, dedica esforços para promover ações de educação ambiental a fim de que, a partir da sensibilização e mobilização de diferentes públicos, nasçam novas proposições de políticas públicas baseadas em gênero e clima. Quanto mais recursos, coletivos, movimentos e grupos tivermos no Brasil, mais ações concretas poderemos articular rumo a um futuro climaticamente seguro, inclusivo e equitativo. Afinal, a mudança climática é um sujeito feminino.
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Existem instrumentos relevantes como o Plano de Ação sobre Gênero, da Organização das Nações Unidas, que foi um dos maiores – e melhores – resultados da última Conferência das Partes (COP25), realizada em Madrid, em 2019. Basicamente, o plano foca na implementação de soluções climáticas de longo prazo com ênfase em gênero. Um dos reflexos diretos dessa necessidade é o número de participações de mulheres em conferências globais do clima. Na COP19, as delegações nacionais foram compostas por 32% de mulheres. Dez anos depois, o percentual subiu para 39% de participação feminina, segundo a WEDO por meio dos dados da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (UNFCCC). Mas, diante desse ritmo lento de representatividade, ainda estamos distantes da paridade de gênero que precisamos e almejamos ter na comunidade climática global e local.