A criação das crianças indígenas é compartilhada entre família e toda a comunidade, garantindo a continuidade da tradição dos povos originários
A educação das crianças Xukuru-Kariri (AL), compartilhada entre famílias e toda a comunidade, compreende o ensinamento de suas histórias e lendas, dos costumes e tradições e dos rituais sagrados como forma de garantir a preservação dos saberes do seu povo.
O Êklay que hoje tem doze anos tinha menos de dois meses quando chegou aos braços de sua mãe, Meire Xukuru-Kariri. Após muitas tentativas de engravidar sem sucesso, ela viu na adoção a oportunidade de vivenciar a maternidade. “Foi emocionante e acredito que não só pra mim e para o Rogério, meu esposo, mas para toda a minha família que se apaixonou por ele.”
O filho foi acolhido pela comunidade e educado como indígena. Desde muito cedo passou a acompanhar a mãe a Ouricuri (local onde são realizados os rituais religiosos). Meire conta que a educação indígena acontece naturalmente. Conforme o menino crescia, ela foi mostrando ao filho os costumes, a tradição, as danças e os rituais religiosos do povo Xukuru-Kariri. “Quando ele chegou para nós, pensamos em mantê-lo dentro da nossa educação, para que ele pudesse passar nossos conhecimentos às futuras gerações”, relata.
“É encantador acompanhar os filhos crescendo, vendo e aprendendo as nossas práticas”
A família é o princípio de organização social mais importante para os Xukuru-Kariri, pois é ela que orienta ações, interações e projetos do grupo. A organização do povo se dá por meio do que a antropologia vai denominar de “família extensa”, que agrega geralmente três ou quatro gerações e são responsáveis por proporcionar os aprendizados e a perpetuação dos ritos sagrados.
A educação familiar indígena que Êklay vem recebendo até então faz com que ele tenha consciência da necessidade de preservar a cultura, os saberes e os ritos religiosos do seu povo.
“Ser índio é ser fiel à nossa história, que é de muitas perdas, e resistir ao sistema que nos impuseram. Eu aprendo com meus pais a não ter vergonha do que sou e darei continuidade aos costumes do povo Xukuru-Kariri aos meus filhos, ensinando a cultura, as tradições, o Toré [símbolo de resistência, é uma dança tradicional indígena realizada principalmente pelos povos localizados na bacia do Rio São Francisco]”, defende.
“A educação que vem dos meus pais é importante para que eu possa resistir aos preconceitos e assumir minha identidade indígena”
Os aprendizados começam em casa: ainda bebê, os pequenos têm contato com o Toré. “O primeiro brinquedo das nossas crianças é o cocar e um maracá [instrumento musical percussivo]. Eles já começam a ouvir o som, a gente canta junto, dançamos o Toré com eles, ensinamos a mudar as passadinhas e fazer o manejo com o corpo. Por meio de nossos cantos vamos repassando a nossa cultura”, explica Meire.
À medida que os anos avançam, os pequenos vão conhecendo a sua história e seu legado de luta e resistência por meio dos relatos dos mais velhos. Meire argumenta que o seu povo é o verdadeiro protagonista de uma história que foi contada por outros intérpretes, autores que ela chama de “maliciosos” por afirmarem que o Brasil foi descoberto pelo homem branco.
“Ver o mato crescendo, as águas dos rios sem poluição, sem a extração de minérios… tudo isso faz parte da nossa cultura. Nós ensinamos a plantar o suficiente para viver, não passar fome, mas também não ser escravizado pelo trabalho”, complementa.
“A gente repassa o pouco que nos resta para que a nossa cultura dure mais cinco séculos, mais mil anos. Enquanto o mundo for mundo”
Yrakanã Xukuru-Kariri tem dois filhos: Dewere, 22, e Silvanio, 10. Ela afirma que a educação indígena difere da convencional porque são ensinamentos que levam em consideração o respeito à infância, o brincar e a liberdade das crianças.
Conectar-se com a natureza nos afazeres do dia a dia, aprender a lidar com a terra e conhecer o cultivo dos alimentos orgânicos e nativos também são ensinamentos que as crianças aprendem independente da idade. “Ensinamos nossos filhos à medida que brincamos e contamos histórias para eles”, explica.
“Nosso material didático é a própria natureza”
O respeito à infância e a liberdade mencionado por Yrakanã é fruto do investimento nas possibilidades de descoberta. De acordo com o doutorando em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Wemerson Ferreira da Silva, às crianças é permitido explorar a vida cotidiana a partir das redes de parentesco, dentro do próprio território.
“Não é o mesmo ambiente de uma família não indígena: eu tenho um pai, uma mãe, moro dentro de uma casa e eles são responsáveis pelo cuidado nesse espaço. Já as crianças indígenas, desde cedo, são ensinadas a transitar tanto pelas redes de relações de parentesco quanto pelo território. Essa liberdade vivida nos limites do território da comunidade não é irrestrita e atua como parte do controle social e educacional das crianças”, explica.
Os povos Xukuru-Kariri colocam como prioridade o cuidado das crianças, além da manutenção dos ritos, das tradições e da sua cultura. É nessa interação cotidiana com outros membros do grupo familiar que elas aprendem a importância do respeito aos mais velhos, a transitar pelo território e a valorizar os rituais étnicos do grupo.
Assim como diz o provérbio africano “é preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”, eles também acreditam que todos os membros da comunidade são responsáveis pela infância.
Um cuidado que vem muito antes da Constituição Federal de 1988, que no seu artigo 227 determina como prioridade absoluta a proteção da infância e a garantia dos seus direitos por parte do Estado, da família e da sociedade.
Na primeira infância, as crianças também aprendem que os rituais étnico-religiosos são sagrados e precisam ser mantidos em segredo para que possa ser resguardada a liturgia, restringindo-o apenas entre os moradores da comunidade.
A manutenção do segredo acontece dentro do lar da criança, no espaço familiar. “Ensinamos as crianças a não fazerem comentários lá fora, com pessoas não indígenas, que não participam do nosso Ouricuri”, conta Meire.
O antropólogo explica que entre os povos indígenas do Nordeste não se fala concretamente sobre os rituais étnicos tampouco há a permissão da participação de não indígenas. O especialista elucida que todo o cuidado em não revelar os rituais religiosos é importante para a própria organização política da comunidade.
“Esse ritual é mantido em segredo e isso se torna fundamental para a constituição da identidade do grupo. Além disso, há o próprio fato de que esse segredo contribui para construir uma diferença entre eles e nós, como parte de uma estratégia política, inclusive, para que seja legitimada a identidade indígena”, acrescenta Wemerson.
O povo Xukuru-Kariri está distribuído em nove aldeias, em um território de 7 mil hectares (cerca de sete campos de futebol): Amaro, Boqueirão, Cafurna de Baixo, Capela, Coité, Fazenda Canto, Jarra, Mata da Cafurna e Riacho Fundo, além de também estar presente na cidade de Taquarana, região agreste de Alagoas.
Mas a briga pela demarcação do território ainda não terminou. Em 2017, a justiça decidiu a favor do povo e determinou, no prazo de cinco anos, a demarcação definitiva, não cabendo a aplicação de recurso. Mesmo com a decisão favorável, a Fundação Nacional do Índio (Funai) ainda não deu início ao processo regulatório e nem começou a retirar os 500 posseiros que usam a terra em mini latifúndios.
Cássio Júnior, indígena Xukuru-Kariri, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e atual secretário de Cultura da cidade de Palmeira dos Índios, explica que uma das ameaças ao seu povo justamente é a retirada de direitos que prejudicam a transmissão de conhecimento. “Uma comunidade indígena pode ter, em seu território, um recurso natural usado como medicamento ou em rituais, por exemplo. Essa planta é encontrada em determinado bioma: se não há a proteção das terras indígenas, ela pode desaparecer e prejudicar os saberes indígenas.”
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O povo Xukuru-Karairi está localizado a 130 quilômetros de Maceió (AL), em Palmeira dos Índios, quarta maior cidade do Estado. De acordo com dados de 2015, do Distrito Sanitário Especial Indígena (Alagoas e Sergipe), a população da comunidade soma quase 3 mil pessoas.