Nestes tempos de incerteza, precisamos dar espaço para que as crianças possam expressar suas emoções, partilhar seus medos e fantasias e viver o tempo presente
A pandemia do coronavírus nos faz questionar as relações produtivistas que temos com as crianças e mostra a necessidade de parar para ouvir o que elas estão sentindo, acolher suas emoções, viver o que a vida de agora permite e pensar no que queremos mudar.
Yom Hashoá é um dia dedicado à lembrança do Holocausto. Desde pequena, escuto que é preciso falar às gerações vindouras sobre o assassinato cruel de seis milhões de judeus, e também de ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência, empreendido pelo regime nazista, para que a história não se repita. Ao contar essa história, nos aproximamos das histórias das pessoas que viveram a guerra, e conhecemos as invenções e as saídas, sempre mais ou menos provisórias, que cada um pode criar para tentar sobreviver. Aprendi também que é preciso contar essa história terrível a todos, não só às crianças judias, porque o genocídio cometido contra os judeus é um crime contra a humanidade.
Neste ano de 2020, Yom Hashoá aconteceu no último dia 21 de abril, no curso de outro acontecimento que não deixa ninguém de fora: a pandemia de coronavírus. Todos atravessamos esse momento: os que respeitam o distanciamento físico, para cuidar de si e dos outros, e os que estão vulnerabilizando a si e a todos os outros, ao desrespeitarem a ciência e as recomendações das autoridades sanitárias internacionais.
O que cada um decide sobre a forma de administrar a sua vida, hoje, tem um efeito muito direto sobre as outras pessoas, as próximas, as distantes, as que não contamos a existência
É verdade também que as medidas restritivas impostas pela quarentena não são sem consequência em toda e qualquer situação de vida: temos todos o mesmo problema, ainda que sem compartilhar o acesso às mesmas soluções. Muitos de nós já discutimos a pandemia de exclusão que o novo coronavírus foi capaz de incrementar em organizações sociais construídas sobre a desigualdade. Sobre esse aspecto, vale citar a coluna de Mariana Rosa para o Lunetas; o Diário de Quarentena, de Eliana Sousa Silva; e também a coluna de Eliane Brum, que conta a história de Simon e Kerry.
As medidas sanitárias visam o cuidado com as pessoas, e o necessário respeito a este cuidado nos coloca diante de uma situação nova, para a qual não fomos preparados. É nesse contexto que enfrentamos a pergunta insistente sobre o cuidado com as crianças, durante esse período que ainda não tem data marcada para acabar.
Passamos de um mês de quarentena e alguma reflexão sobre os nossos primeiros gestos já é possível. No primeiro instante, a maioria de nós insistiu no modo habitual de gestão da experiência da infância. Rápida e apressadamente, entendemos que se as crianças estivessem bem cuidadas, alimentadas, descansadas e, ainda, se a família fosse capaz de lhes oferecer um espaço adequado e o material para o acesso estável à internet, elas poderiam seguir sua rotina escolar e alcançar suas metas, mergulhadas em seus processos de aprendizagem, de aquisição de habilidades e competências. Nesta mesma direção, ficou entendido que as escolas deveriam correr um pouco mais com sua resposta para os desafios impostos, com o objetivo de garantir que o processo não fosse interrompido, e que nenhum conteúdo importante se perdesse.
Esse primeiro movimento nos conta que trouxemos conosco, para a experiência de quarentena, os imperativos de produtividade e de felicidade que já estavam articulados em nossa relação com as crianças
Se fosse possível não perder garantias e resultados mantendo nosso funcionamento habitual em modo indoor, talvez pudéssemos atualizar nossa fantasia de que, em tempos de catástrofe e de desastre, a vida pode ser como o filme “A Vida é Bela”.
Mas não dá pra fazer de conta que a vida é bela, porque não é possível contornar uma pandemia. As crianças estão dizendo isso para quem quiser e puder escutar
Denunciam, em suas experiências de sofrimento e com suas alterações de comportamento, que não tem cabimento a demanda que está sendo feita na vida em quarentena. Precisamos de agora para transformar nossas práticas de cuidado. E podemos também aprender com outras práticas de cuidado que, tendo ocorrido em situações absolutamente diferentes da que vivemos, podem conduzir nosso olhar e nosso gesto em direções que hoje são tão pouco frequentes quanto urgentes.
No curso de sua guerra contra a humanidade, o nazismo construiu Terezin (Theresienstadt), um campo de concentração nas proximidades de Praga, que tinha características muito diferentes de todos as outras versões do horror praticado. Era um campo de abrigo e de transferência para os campos de extermínio e serviu aos nazistas como “campo modelo”, para exibir para a Cruz Vermelha as “boas” condições de assentamento dos judeus que ali viviam. Terezin recebeu muitos intelectuais e artistas judeus, que viviam naquela região da Europa. Uma dessas pessoas foi Alice, que conta sua história no filme “The lady in number 6”.
Em Terezin, viveram 15 mil crianças antes de serem enviadas para Auschwitz. Apenas 100 sobreviveram. A escola era proibida pela ordem nazista, mas, mesmo assim, em alguns blocos, os judeus organizaram uma escola escondida; em outro, um garoto de 15 anos editou um jornal secreto. Conseguiram montar uma ópera com as crianças que, pela condição de “modelo” do campo, foi exibida 15 vezes. As 450 meninas do bloco L410, enquanto viveram, tiveram aulas de pintura com Friel Dicker-Brandeis. Seus desenhos sobreviveram às autoras e estão expostos no Museu Judaico de Praga. Eles testemunham a vida dessas meninas e nos trazem notícia de seus pensamentos e fantasias.
Em 1941, quando chegou em Terezin, a artista checa Helga Weissová – à época com 14 anos – não foi para o bloco L410, mas trouxe seus lápis de cor na pouca bagagem permitida. Logo nos primeiros dias, escondeu-se dos nazistas e desenhou para seu pai uma cena típica do inverno de Praga: crianças brincando com um boneco de neve. Ao receber o presente, o pai, provavelmente incomodado, disse para a filha que desenhasse o que ela via. No livro que leva a palavra do pai como título “Desenhe o que você vê” (Draw what you see), Helga escreve: “Através dessa fala do meu pai, e da minha própria motivação, fui convocada para capturar em meus desenhos a vida cotidiana do gueto”. Ela conseguiu fazer 100 desenhos. Em 1944, logo antes de ser levada para Auschwitz, Helga entregou seu tesouro para um tio, que escondeu o material até o final da guerra. A expressão de cada um desses desenhos conta a história que não podemos esquecer, e também testemunham a história de uma menina que tentava sobreviver.
Lembro dessa história porque aprendo com o pai de Helga. Escuto em “desenhe o que você vê” um convite para que a filha fale sobre o que vive, para que encontre um espaço de expressão de sua experiência, e que possa partilhá-la com os outros. Os 100 desenhos que não podiam ser desenhados fizeram uma vida possível de ser vivida para Helga. Seguindo a palavra do pai, Helga desenhou o que via com os olhos e o que enxergava com o desejo.
Após a libertação, Helga tornou-se professora de artes em Praga. Mas isso foi muito depois, em um futuro construído em articulação decidida e delicada com o que antes era um presente sem tempo de conclusão imaginado.
A humanidade vive hoje em situação de desastre, mas não estamos em guerra, e a história de Helga não está aqui para buscar analogias. O que precisamos, nesse instante, é rever e reordenar nosso modo de quarentenar, e é nesse sentido que, no dia de hoje, volto para essa transmissão. Aprendemos com Helga e com seu pai que podemos ajudar as crianças a falarem da experiência que estão vivendo, sobre o que gostam e sobre o que sentem falta, sobre os medos e as fantasias, sobre o que é difícil de viver e que faz sofrer.
As crianças podem falar o que sentem de variadas maneiras: conversar, desenhar, gritar, chorar, sonhar e pesadelar. E a gente pode escutar, acolher, comentar e pode, também, não ter uma solução imediata para cada problema que a criança nos apresentar nessa conversa
Nesse segundo mês da quarentena, já podemos calcular que o jeito que vamos sair dessa experiência está profundamente articulado com o modo que podemos viver esse tempo. A prática nostálgica de defesa dos velhos hábitos na nova configuração da vida não funcionou – virou roupa que aperta, ficou sem cabimento. A certeza da incerteza do futuro produz muita ansiedade, dá medo, e isso tem efeito na relação com os filhos.
No ‘currículo de quarentena’ precisamos, portanto, ficar junto com as crianças no tempo presente, na condição que a vida de agora permite, e tentar produzir soluções locais e transitórias para as novas e para as velhas questões que se apresentam
A escola também precisa situar-se diante da tarefa de comunicar-se com a sua comunidade e se permitir acompanhar o desdobrar das novidades que a situação vai impondo.
Se a gente conseguir enfrentar a lógica da solução instantânea e da produtividade que tem sempre o objetivo, mais ou menos explícito, de “garantir felicidades”, teremos, em cada um dos nossos pequenos mundos, das nossas famílias, das nossas escolas, revisto um ideal de infância que corrompe qualquer prática de cuidado, porque as confunde com a falsa proposta de que permanecer muito ativo é o que nos salvará, garantindo que, apesar da pandemia, tudo continua como antes.
Temos o compromisso ético de avaliar a nossa posição no circuito de desigualdades que o imperativo de produtividade impõe a cada um e para todos.
A violência do mundo no qual o produtivismo comanda também é extrema, e interrompe as nossas invenções e desenhos
Talvez, para chegarmos a esse depois, nesse momento do antes em que estamos agora, todos nós, pais, crianças, jovens, professores, escolas, famílias, instituições, todos nós devamos nos engajar na palavra do pai de Helga: desenhe o que você vê. Fale do que você vive. Pense no que você quer mudar.
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