Cabo-de-guerra, peteca e esconde-esconde são brincadeiras que fazem parte da memória afetiva das crianças brasileiras. O que nem todos sabem é que elas representam mais que um resgate individual. Nem sempre conhecidas pelos mesmos nomes mais difundidos entre a população geral, essas brincadeiras fazem parte de um conjunto de práticas responsáveis pela formação cultural e reafirmação da identidade ancestral das crianças de comunidades tradicionais.
Muitas brincadeiras tradicionais têm origem ou são bastante difundidas em comunidades quilombolas, povos indígenas, grupos pesqueiros e terreiros de religiões de matriz africana. Ao conhecer suas origens, as crianças que não pertencem a esses grupos, têm a oportunidade de aprender sobre o contexto da formação do povo brasileiro, bem como romper com preconceitos.
“As brincadeiras ancestrais são um veículo de conectar a memórias que estão interrompidas, seja pelo processo de escravização, seja pelo processo de sofrimento ou genocídio causado aos povos indígenas”, explica João Paulo Diogo, membro da Assessoria Cirandas e idealizador da iniciativa Cirandas do Brincar, que realizou um mapeamento das brincadeiras ancestrais nos diversos territórios da Bahia.
A importância das brincadeiras tradicionais
As brincadeiras consideradas “ancestrais” trazem consigo a missão de repassar práticas e costumes dos povos tradicionais brasileiros, explica Luciene Kaxinawá, agente de formação do curso “Os saberes do brincar ancestral”, da Associação Brasileira pelo Direito de Brincar e à Cultura (IPA Brasil).
“É através das brincadeiras que a gente ensina os nossos costumes, as nossas tradições, os nosso cantos e rituais”, afirma Kaxinawá.
Ela explica que muitas das brincadeiras contam sobre os contextos locais, “então a criança pode entender de onde ela é e qual a cultura daquele lugar”. Essa é uma maneira importante de preservar a memória e a história das comunidades para o futuro.
É o que acontece, por exemplo, no jogo Petrolina x Juazeiro, praticado no terreiro de candomblé Banda Lê Congo, em que as crianças aprendem sobre as questões geográficas da região localizada entre a Bahia e Pernambuco enquanto se divertem brincando de pular entre um território e outro.
Além disso, as brincadeiras tradicionais estimulam as relações intergeracionais, pois geralmente são ensinadas ou mediadas por pessoas mais velhas da comunidades, responsáveis por ensinar os mais novos.
“Discutir brincadeiras tradicionais é discutir a cultura da infância. É acessar as memórias e experiências culturais de um povo”, explica João Paulo Diogo, que ressalta ainda o papel afetivo dessas trocas. “Essas brincadeiras são um lugar de afeto, seja pela transferência do adulto orientando a criança ou seja no lugar da criança brincando com outra criança, dizendo que foi o avô ou os pais dela que ensinaram aquilo”, completa.
Habilidades que podem ser adquiridas
As brincadeiras tradicionais podem ser espaços de aprendizados de várias habilidades sociocognitivas, ressaltam Kaxinawá e Diogo. Na corrida de maracá, por exemplo, comum entre povos indígenas, as crianças se reúnem em grupos para terminar um circuito e, com isso, trabalham o senso de coletividade e estratégia conjunta.
O mesmo acontece na brincadeira “Arrancar Mandioca”, típica do Amazonas, em que além da união, a força física é estimulada. Nela, o objetivo é tentar retirar os participantes de uma fila de pessoas que se agarram a um tronco. “São brincadeiras que preparam inclusive para competições no futuro”, afirma Kaxinawá.
Os adultos também podem usar as brincadeiras como forma de romper estereótipos e preconceitos contra os povos tradicionais. Isso pode ser feito ao compartilhar com as crianças a dinâmica de uma brincadeira, explicando por que aquela prática é utilizada e os termos corretos a serem utilizados para se referir a determinados povos e tradições.
“A partilha da memória, nas comunidades tradicionais é também um dispositivo de superação do racismo e contra o preconceito. São estratégias pedagógicas de mudança de consciência e promoção dos respeitos”, conclui Diogo.
Mais informações sobre brincadeiras tradicionais
Para aprender mais sobre brincadeiras tradicionais, pais, cuidadores, familiares e profissionais da educação podem realizar gratuitamente o curso Sementes do Brincar, ofertado pela IPA Brasil, que tem duração de cinco horas e possui certificação.
Como Brincar:
- Kudoda
De onde: Zimbábue
Regras: os jogadores se sentam em círculo ao redor de uma uma tigela de madeira ou metal onde estão 20 a 30 pedras ou bolinhas de gude. O primeiro jogador pega uma das pedras e joga para o alto. O objetivo do jogo é pegar a maior quantidade de pedras ou bolinhas que estiverem na tigela. Então, os demais jogadores repetem a rodada. O jogador que tiver coletado a maior quantidade de objetos é o vencedor.
Histórico: é uma brincadeira popular em várias partes do mundo. Em Gana, é conhecida como Pombo ou Matacuza. Também é jogada no Quênia e na Tanzânia. No Brasil, é uma prática comum no Quilombo Alto do Tororó, em Salvador, na Bahia.
- Bacundê-bacundê
De onde: Quilombo do Quingoma – Bahia
Regras: Nessa brincadeira, um grupo de crianças se esconde e uma delas fica de olho fechado aguardando. Em seguida, ela sai para procurar as demais. O objetivo é que cada criança se salve, tocando em algum objeto comum ou chegando a um local, antes de ser encontrada.
Histórico: É uma brincadeira ligada à época da escravidão, que tinha o objetivo de ensinar as crianças a se esconder na mata, uma habilidade necessárias às pessoas escravizadas para fugir e chegar aos quilombos.
- Petrolina x Juazeiro
De onde: Terreiro de candomblé Banda Lê Congo
Regras: As crianças formam uma fila em cima de uma linha divisória, que representa a divisão entre os dois territórios. O objetivo é pular para o território certo ao ouvir o comando dado por um outro participante, que não está na fila. Quem não se mover ou ir na direção errada, é eliminado. O jogo termina quando sobrar apenas uma pessoa.
Histórico: É uma brincadeira ligada às cidades de mesmo nome, entre a Bahia e Pernambuco, com o objetivo de difundir a identidade cultural e geográfica desses territórios.
- Peteca
De onde: Povo indígena Pataxó Hãhãhãe
Regras: Um dos jogadores arremessa a peteca e o objetivo dos demais é não deixá-la cair no chão. Se a peteca cair no chão, o time adversário marca um ponto.
Histórico: É uma brincadeira praticada por vários povos indígenas brasileiros e também na América do Norte. Representa os valores culturais e as habilidades físicas desses povos. Desde 1973, é um jogo oficialmente reconhecido no Brasil, onde se realizam campeonatos desde então.
- Corrida de Maracá
De onde: Povo indígena Pataxó Hãhãhãe
Regras: Este jogo consiste numa corrida de revezamento entre duas equipes. Os grupos são divididos em número igual de pessoas, que precisam correr em uma área previamente delimitada. As crianças devem correr com um maracá na mão até alcançar um ponto estipulado, fazer o retorno e entregar o objeto ao próximo participante. O jogo termina quando o último termina o percurso. Ganha quem o fizer em menos tempo.
Histórico: O maracá é um instrumento tradicional utilizado nos rituais de diversos povos indígenas, como os Pataxó. Sua confecção envolve o uso de diferentes objetos, como coco, cabaça ou coité, além de sementes e madeira. O maraká é batido para reverenciar a natureza e pedir licença a ela para realizar atividades.
- Cabo de Guerra
De onde: Povos indígenas
Regras: Divida as crianças em dois grupos com o mesmo número de participantes. O primeiro de cada lado segura uma corda e os demais o acompanham, segurando o objeto atrás. O objetivo do jogo é puxar a corda até um ponto marcado no chão com giz ou alguma pedra. Os limites também podem ser estabelecidos usando fitas presas à corda.
Histórico: É um jogo bastante popular entre os povos indígenas, sobretudo durante as festividades, que é usado para medir e treinar a força física. Entre os anos de 1900 e 1920, foi um esporte incluído nos Jogos Olímpicos.
- Brincadeira do Tucunaré
De onde: Comunidade indígena Panará – Paraná
Regras: Paus fincados no chão e amarrados por barbantes demarcam o espaço da brincadeira, separando a área “funda” da “rasa”. Eles formam dois quadrados, um dentro do outro, sendo o de dentro o que é chamado de “fundo”. Neste, ficam quatro tucunarés – ou participantes – que devem pegar os peixes menores. No de foram há seis portas, por onde os peixes menores – ou demais participantes – podem fugir. Quando capturados, os participantes entram no “fundo”. A brincadeira termina quando todos forem capturados.
Histórico: A brincadeira surgiu na Escola Indígena Matukre, quando um professor observou o vai e vem dos peixes e prestou atenção naqueles que perambulavam pelas águas rasas e no tucunaré, que não saía do fundo.
(Fonte: Livro Práticas pedagógicas da Ciranda do Brincar, Territórios do Brincar e Sementes do Brincar – IPA Brasil)