Educação sexual na infância: ‘informação protege’, diz pedagoga

“Enquanto as meninas forem ensinadas a serem passivas, e os meninos autorizados a serem agressivos, será propício para a violência", diz Caroline Arcari

Camilla Hoshino Publicado em 11.12.2017

Resumo

Autora do livro "Pipo e Fifi" e outras obras infantis, a pedagoga e educadora sexual Caroline Arcari fala sobre infância, pedagogia e educação para enfrentar a violência sexual. Por que refletir sobre corpo e sexualidade ainda é um tabu, em casa e nas escolas?

Viver e se desenvolver em um espaço que dê asas à criatividade. Educar sem punição e entender que é possível construir diálogos horizontais. Valorizar os saberes e as experiências de cada um. O universo da pluralidade no âmbito do ensino é realmente um conteúdo que interessa à pedagoga e educadora sexual Caroline Arcari, autora do livro “Pipo e Fifi”, que vem ganhando repercussão nacional e internacional desde 2014 falando sobre violência sexual na infância.

Ela é fundadora da Escola de Ser, um projeto pedagógico que se insere dentro de uma perspectiva emancipatória. Localizada em Rio Verde, Goiás, a escola é focada em promover autonomia dos alunos no processo de aprendizagem, atendendo cerca de 40 crianças e adolescentes entre seis e 12 anos, desde 2007.

“A ideia é que o espaço proporcione vivência e reflexões que gerem transformações também para a própria comunidade”, explica a escritora.

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Divulgação/Nine

Caroline Arcari é especialista em Educação Sexual pelo Centro de Sexologia de Brasília (Cesex) e mestre em Educação Sexual pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É presidente do Intituto Cores, uma ONG que há doze anos atua na defesa dos direitos da criança e do adolescente, com ênfase na Educação Sexual e na prevenção de violência sexual.

Corpo e sexualidade

Foi no espaço da educação “fora da caixa”, distante do modelo tradicional de ensino, e a partir da realidade de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, que apareceram os conteúdos que incentivaram a produção inovadora da pedagoga. Seu trabalho inclui metodologias, livros e materiais didáticos de baixo custo, voltados para a educação sexual, prevenção de violência sexual, igualdade de gênero e direitos humanos.

Ela conta que, nas aulas sobre educação sexual, ao tratar de corpo, higiene, sentimentos e trocas afetivas, meninas começaram a falar sobre o assédio que sofriam no caminho para a escola, ou de “brincadeiras” praticadas dentro de casa por parte de parentes próximos, sem saber que estavam denunciando um abuso.

“Foi aí que percebemos que não havia jogos, livros ou materiais didáticos que conseguissem explicar de forma lúdica, clara e honesta o que é a violência sexual”, relembra Arcari.

Da necessidade de criar ferramentas para esse diálogo, então, surgiu o livro “Pipo e Fifi”, que apresenta conceitos sobre o corpo e sobre situações de interação com os adultos no cotidiano, diferenciando carinhos de abusos. Tudo isso de forma muito colorida e quase musical, convidando as crianças a interagirem com a obra por meio de desenhos.

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Reprodução/Instituto Cores

Pipo e Fifi foi criado para ajudar pais, professores, amigos e contadores a abordarem o problema da violência sexual contra crianças com uma narrativa ilustrada.

A pedagoga conta que o livro também foi uma possibilidade de retomar sentimentos e lembranças relacionadas à violência que ela mesma viveu quando criança. “Eu me lembro como me sentia submissa, com vergonha de buscar ajuda. Até tinha vontade de contar, mas é difícil adultos falarem sobre sexualidade.”   

De acordo com ela, refletir sobre corpo e sexualidade ainda é um processo que sofre muita resistência, pois pessoas associam a temática à erotização da criança ou ao incentivo à relação sexual precoce.

“Quem estuda desenvolvimento de crianças e adolescentes e convive com quem sofreu violência sexual, sabe que a informação e o conhecimento protegem”

Apesar disso, a pedagoga encontrou na abordagem que utiliza a prevenção contra o abuso sexual uma chave para a aceitação do assunto. Atualmente, o material é distribuído em escolas e órgãos públicos, sendo também utilizado tranquilamente por instituições como igrejas evangélicas e católicas.

“Eu sei o que eu passei e hoje entendo quais condições poderiam ter me livrado da violência sexual. Nesse sentido, minha vontade é contribuir para que as crianças, orientadas por adultos responsáveis, tenham alternativas para identificar a violência, pedirem ajuda e serem atendidas a tempo, pois esse tipo de violência é  progressiva”, diz Caroline.

Confira a versão de “Pipo e Fifi” para bebês:

Todos perdem com o machismo

Trabalhar em um ambiente democrático, com base no respeito mútuo, tanto nas relações entre alunos e professores, quanto no diálogo entre meninos e meninas, acaba proporcionando liberdade para questionar privilégios e incentivar mudanças de comportamento. “Criamos um projeto para pensar o empoderamento de meninas e fazer uma análise sobre as masculinidades”, explica Arcari.

“Apesar de serem atingidos de formas diferentes, todos saem perdendo com o machismo”

E, se é verdade que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, como escreveu Paulo Freire, também é verdade que a leitura da palavra ajuda a compreender e lidar de forma crítica com a realidade. Por isso, nada mais natural do que utilizar as próprias experiências do dia a dia de crianças e adolescentes para refletir sobre atitudes  e transformá-las.  

No projeto”Princesas de capa, heróis de avental”, Arcari estimula o pensamento crítico e o combate às desigualdades e violências reforçadas por estereótipos.

“A violência sexual está ligada de forma estreita às questões de gênero”, afirma a escritora, que conseguiu aproximar a reflexão sobre os comportamentos incentivados socialmente para meninos e meninas e a prevenção da violência sexual, seu tema de estudo.

“Enquanto as meninas continuarem sendo ensinadas a serem mais submissas e passivas, e os meninos autorizados a serem agressivos e com comportamento predatório, criamos um ambiente propício para a violência”, defende a escritora.

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iStock

Pais, mães e cuidadores não devem ter vergonha de conversar com os filhos sobre sexualidade. Conhecer os limites do próprio corpo é fundamental para se defender contra o abuso sexual, principalmente de pessoas próximas do convívio da criança.

Papéis de gênero: uma construção social

Ela explica que a relação assimétrica e de poder entre homens e mulheres é uma construção social de gênero que se concretiza nos índices de denúncias de violência sexual: a maioria das vítimas de estupro são meninas e mulheres, enquanto a maioria esmagadora dos autores da violência sexual são homens.

Essas questões também definem como as crianças reagem à violência: meninas tendem a não denunciar o abuso quando aceitam o papel de submissão empregado às mulheres. Por outro lado, meninos também têm vergonha de relatar, pois ou sofrerão acusações homofóbicas de que “permitiram” ou serão incentivados a acreditar que ter relações sexuais com mulheres mais velhas -mesmo não consensuais- é uma vantagem e não um crime.

“Se não falarmos sobre essas questões de gênero que vulnerabilizam as crianças, se não ensinarmos que podem reagir, que o corpo é delas e deles, que podem denunciar, que um adulto, mesmo que conhecido ou parente, não pode ser abusivo, não conseguimos enfrentar a violência sexual”, ressalta a autora.

“A realidade é alarmante: um em cada oito meninos que sofrem violência sexual têm mais chances de abusar de crianças mais novas”

Segundo Caroline Arcari, isso também é reforçado pelo fato de serem ensinados a se relacionar com a violência de forma reativa, no estilo mais clássico do “apanhou, tem que revidar”, o que faz parte dos modelos socialmente construídos de como os homens devem se portar.

“Políticos que constroem uma legislação que impede discussão de gênero em sala de aula estão sendo coniventes com a violência sexual e deixando crianças vulneráveis. Ambos os temas convergem. Quando refletimos sobre os estereótipos de gênero que colocam meninos e meninas em situação de vulnerabilidade e, a partir disso, construímos com eles ferramentas para identificarem a violência, estamos de fato fazendo a prevenção.”

Portanto, nem a princesa que espera seu final feliz ao lado do príncipe, nem o herói que domina o mundo com a sua força: ambos deixam a desejar no quesito realidade.

“A ideia é que meninos e meninas exercitem a reflexão e tenham autonomia para julgar e desconstruir discursos e aquilo que consomem culturalmente”

Igualdade: um projeto pedagógico

Assim como as crianças, projetos brilhantes e que funcionam com o coração também têm potencial para crescer e se desenvolver. E chega a hora que querem caminhar e conquistar outros espaços. É o destino da Escola de Ser, que a partir de 2018, vai se tornar um projeto itinerante, sendo aplicado dentro de outras escolas pelo Brasil.

“É uma maneira que encontramos de comunicação com o ensino formal, em instituições cadastradas, que utilizam nosso material e que querem fazer essas discussões na prática pedagógica”, diz Caroline Arcari.  

Em sintonia com esse crescimento, a pedagoga conta que o sucesso da abordagem de “Pipo e Fifi” vai proporcionar uma coleção. Já foram três publicações e mais duas estão no forno. Entre elas, uma edição que ensina o que é o consentimento e privacidade, relacionados ao tema da prevenção do abuso sexual.

“Também está para nascer aquilo que a escritora considera um de seus maiores desafios: uma edição que resgata a famosa e inevitável pergunta: ‘de onde vêm os bebês?'”

Segundo ela, um tema mais ousado e que também gera grande empolgação sobre a possibilidade de impactos positivos. “Espero quebrar mais um tabu”, afirma, confiante.

Aos 36 anos, a escritora acaba de se mudar para Petrópolis, no Rio de Janeiro. “Porque fica mais perto do aeroporto”, brinca. E enquanto ela ganha maior acesso para pegar o avião e tocar seus projetos por aqui e mundo afora, suas produções ganham asas, elas mesmas. “Pipo e Fifi” já aterrizou em cinco países. No Brasil, o livro ultrapassou as 100 mil cópias distribuídas.

Observando esses voos e conquistas, nossa imaginação acaba viajando também ao encontro daquilo que inspirou a própria profissão da pedagoga: a educação democrática. Talvez, caiba à nova geração de leitores desenhar os passos desse mundo mais plural, sem violência e com mais igualdade entre homens e mulheres que tanto sonhamos. 

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