Aquarelas de Fernando Zenshô

Para os povos originários todos somos parte da natureza, pois estamos conectados a ela.

Aquarelas de Fernando Zenshô

Para Txai Suruí, é na alegria e no amor que a luta pela floresta se fortalece.

Aquarelas de Fernando Zenshô

Em volta da fogueira, a tradição de contar histórias mantém viva a cultura e os saberes dos povos originários.

Aquarelas de Fernando Zenshô

As palavras-floresta dos ativistas indígenas se espalham pelos quatro cantos do mundo como as “ideias para adiar o fim do mundo”, como ensina Ailton Krenak.

lang="pt-BR">Txai Suruí mostra às crianças que amar é revolucionar
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Txai Suruí mostra às crianças que amar é revolucionar

Capa de matéria sobre o livro Canção de amor, de Txai Suruí, mostra uma ilustração com uma paisagem da floresta e dois indígenas correndo

“Nós somos a continuação da luta dos que vieram antes: os nossos ancestrais” afirma a ativista indígena Txai Suruí. Essa luta, travada há séculos, é constituída de resistência, mas ancorada no amor. A partir desse discurso, Txai lança seu primeiro livro, ‘Canção do amor’, um poema ilustrado, destinado aos jovens leitores.

A primeira camada da leitura conta, em versos, a paixão pelo “moço mais bonito da aldeia”. Juntos, o casal conversa sobre a natureza, as tradições e contam histórias ancestrais de resistência e revolução. “Quando fiz esse poema, estava pensando no meu namorado, [Karai Djekupe] que é do povo Guarani e, assim como eu, é uma liderança indígena. Pensei também nas lutas que todos os povos indígenas travam há muito tempo”, explica.

O mergulho nas palavras-poema da jovem escritora faz florescer as sentenças de um povo que transmite sua cultura pela oralidade. O mesmo povo que conhece a força das palavras para a luta por seus direitos.

“Canção do amor”, de Txai Suruí e Fernando Zenshô (Elo)

Originalmente publicado em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo, este poema segue a tradição do povo Suruí, de entoar cantos. A versão do livro vem acompanhada de uma narrativa visual, com aquarelas de Fernando Zenshô. A primeira publicação de Txai Suruí vai além do amor romântico porque evoca a palavra da floresta e convida o leitor a imaginar um tempo e um lugar de autonomia. Este tempo que também pede liberdade, algo que faz parte da luta indígena.

“Sou aquilo que vivi, por onde passei e de onde venho”

Filha do labway e sagah (líder maior) Almir Suruí e da ativista Neidinha Bandeira, Txai se apresenta como “mulher-território da Amazônia, indígena, guerreira, comunicadora, artista, escritora e ativista”.

Vinda do clã guerreiro do povo Paiter Suruí – os Gãmeb –, desde a infância acompanha os movimentos indígenas na luta pela proteção da floresta amazônica e pela Terra Indígena Sete de Setembro, onde nasceu e cresceu. Na geografia dos colonizadores, este território faz parte do município de Cacoal, em Rondônia.

O povo Suruí de Rondônia se autodenomina Paiter, que significa “gente de verdade, nós mesmos”. Segundo os dados mais recentes do Instituto Socioambiental (ISA) são 1490 indígenas desta etnia no Território Indígena Sete de Setembro. A língua oficial é do grupo Tupi, da família linguística mondé.

Ela é a terceira geração a ter contato com a cultura ocidental. “Os primeiros contatos do meu povo com os não indígenas foram quando meu pai era criança, na década de 1960. Meu avô não falava português e expulsou os invasores com arco e flecha”, relembra.

“Canções de amor” é o primeiro livro da jovem ativista indígena Txai Suruí, que conta, em versos, como o amor está presente nas lutas dos povos originários.

Entre os Suruí, as decisões importantes são tomadas de forma coletiva. Portanto, todos da aldeia participam, inclusive os anciãos e as crianças. “Foi assim, observando meu pai e minha mãe, que aprendi como lutar pelos nossos direitos.”

Por isso, ela defende que a luta dos povos indígenas é de todos, já que todos sentem os impactos da destruição da floresta. “É muito assustador ver o que estamos vivendo. A fumaça chegou na aldeia e deixou a gente doente. Meu sobrinho, por exemplo, nasceu faz três meses, e ainda não respirou ar puro”, comentou durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP).

Disseminar a palavra da floresta

Nas palavras de Ailton Krenak, escritor e ativista indígena, que assina o prefácio do livro, Txai é também “poesia em primeira pessoa e traz na garganta pássaros, peixes e ninho de palavras, que leva aos quatro cantos do mundo”.

Foi em 2021, durante a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP 26, em Glasgow, na Escócia, que a ativista ficou conhecida mundialmente. Única brasileira a discursar, defendeu a necessidade de ações urgentes, chamou à responsabilidade os países ricos e pediu que os povos originários estivessem nas discussões.

“Hoje, o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando! Ela nos diz que não temos mais tempo. Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais”, disse em seu discurso.

Ano passado, Txai entrou para a lista das 100 personalidades femininas mais influentes do mundo, da revista Time. Além disso, é produtora executiva do premiado documentário ‘O Território’, que mostra a luta do povo indígena Uru-eu-wau-wau pelo território e contra o desmatamento na Amazônia.

Falar de amor para transformar o mundo

“Escrevi o poema em um dia na aldeia, pensando em tudo o que os povos indígenas viveram, sem perder a força para resistir e sempre ancorados no amor”, explica sobre o livro. “Quando falamos de amor, não é só o romântico porque, na perspectiva indígena, é muito mais que isso”, diz.

Txai aponta que falar de amor diante de um mundo ocidental, que cultua e monetiza o ódio, é, de fato, provocar revoluções. Então, compartilhar alegria, gentileza, empatia e amor é o que precisamos. “Falar de tudo isso é também uma forma de resistência. A tristeza paralisa e nos faz acreditar que não tem como mudar, pois o mundo vai acabar”, argumenta. “Mas, é no coletivo que resistimos e nos alegramos!”

Essa alegria está nos versos sobre o dançar e o cantar de seu povo, mas também na força de resistir, sempre ancorada no amor. “E morreremos / nas florestas amazônicas, / reflorestando e cultivando / o amor e a cultura / nos corações de todos aqueles / que ouvirem nossas canções.”

Conversamos
sobre o tempo em que
ainda não tínhamos nascido,
sobre resistência e revolução.

Falamos sobre um tempo
e um lugar que ainda não existem,
de autonomia e libertação.

Ele toca a flauta
e eu bato meu pé com chocalho no chão.

Nos pintamos
para nossa proteção.

Ele me lembra,
ao me questionar,
que nunca podemos permitir
que nos convençam de que não existe outra opção.

[trechos de ´Canção do amor´]

Do amor às palavras para a contemplação das paisagens

A narrativa visual foi criada pelo artista Fernando Zenshô, que tem fascínio pelos traços e cores das florestas. Ele conta que muitos anos antes de receber o convite para ilustrar “Canções de amor”, costumava pintar dentro da Mata Atlântica.

“Depois de duas, três horas na mata pintando troncos, galhos e aves, começava a acontecer um fenômeno de esvaziamento de mim. Era como uma coexistência com aquele lugar”, explica. A essa sensação, Zenshô atribui seus anos de prática de meditação. “Dentro da tradição zen budista há a percepção da coexistência, o que eu relaciono com a cosmovisão dos povos originários sobre o coexistir na natureza”, reflete.

Foi dessas experiências na Mata Atlântica, bioma de onde vem Karai Djekupe, namorado de Txai e líder indígena a quem é dedicado o livro, que Zenshô trouxe o repertório para criar a narrativa visual. As aquarelas trazem representações de indígenas sem uma etnia definida porque são muitos os povos originários que habitam esse território. Os corpos fortes, como os troncos das árvores, simbolizam prosperidade e fertilidade.

Além disso, as cores saltam aos olhos do leitor, que podem contemplar as paisagens das manhãs e das noites, em uma floresta rica em fauna e flora. Desse modo, o livro é também um caminho para sentir a imensidão da natureza.

“As infâncias indígenas são as mais felizes” 

Como no ditado, é preciso uma aldeia para criar uma criança, a responsabilidade de cuidar dos mais novos é de todos entre os Suruí. Desde pequenos, os costumes e tradições são ensinados pela oralidade. “Cada povo é um mundo, com sua própria cosmologia”, explica Txai.

Portanto, nadar nos rios, correr no mato e se pintar com elementos da floresta fazem as crianças indígenas se conectarem a um aprendizado maior, de que todos são natureza.

“A infância de uma criança indígena é a infância mais feliz que se deve ter porque a gente cresce livre! Quando brincamos, não estamos nos sujando com terra, mas nos cobrindo de vida. A vida vem da terra”.

No caso de Txai Suruí, crescer em um território afetado por invasões constantes, trouxe também um outro aprendizado: o de lutar desde criança. Por isso, tudo o que aprendeu e viveu na infância a sustenta em seu ativismo.

“A mensagem que levo para as pessoas é sobre nossa conexão com a natureza. O ser-natureza que aprendi com meu povo é de todos nós. Fazemos parte do planeta e somos conectados a ele”.

*Esta reportagem foi produzida com o apoio da Imaginable Futures.

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