Parece brincadeira, mas não é. Expor as crianças na internet para “viralizar” nas redes sociais tem sido uma atitude cada vez mais frequente. Pais ensinam os filhos a falarem coisas engraçadas, fazem “pegadinhas” para vê-los chorar e até os incentivam a participar de vídeos falando palavrões à vontade. Por que os adultos embarcam nessa onda e quais são as consequências de transformar as crianças em “objeto de humor” no mundo on-line?
“Alguns pais podem adotar essa conduta como uma forma de se sentirem mais conectados com seus filhos, buscando uma relação de ‘amizade’, em vez de autoridade”, avalia a psicóloga Adriana Severine. Contudo, conforme ressalta a especialista, essa pressão por “viralizar” na internet tem impactado significativamente a forma de criação da geração atual.
“A busca por visibilidade e aprovação on-line pode levar a uma constante necessidade de validação externa, afetando a autoestima e autoimagem das crianças”, diz Severine.
Embora essas tendências possam gerar milhões de visualizações, sendo engraçadas para muitos, elas também são alvo de críticas. É o caso de Wanessa Teixeira de Oliveira, mãe do Matheus, 8, e da Antonella, de 2 anos e 8 meses. “Eu acho desnecessária a exposição das crianças na internet para virar um conteúdo ‘engraçado’, além de ser perigoso”, diz. “Essas ‘trends’ que aparecem dizem muito mais sobre os pais do que sobre as crianças, pois os filhos são espelhos daquilo que veem e ouvem em casa.”
‘Trend’ dos palavrões
Recentemente, entre os vídeos que fizeram mais sucesso na internet, estavam os conteúdos que filmavam crianças “liberadas” para falar palavrões. Após os pais explicarem aos filhos que eles podiam usar palavras “feias” e “proibidas”, fechavam a porta de um ambiente e pediam para a criança “se expressar”.
Como explica Severine, alguns defendem essa prática como forma de aliviar o estresse e a frustração acumulados, especialmente buscando liberar emoções reprimidas. Mas, segundo ela, “esse tipo de comportamento pode afetar a percepção da criança sobre linguagem apropriada e limites adequados”.
Ao mesmo tempo em que é importante oferecer um espaço seguro para as crianças expressarem suas emoções, deve-se ensiná-las a diferença entre o apropriado e o inapropriado, diz. “Permitir expressões intensas como falar palavrões ou bater em coisas pode normalizar comportamentos agressivos e prejudicar a capacidade da criança de lidar com suas emoções de forma saudável no futuro.”
As consequências da exposição de crianças na internet
Esse tipo de exposição das crianças na internet também levanta dúvidas sobre coerência na forma de educar.
“Rir ou incentivar o uso de palavrões em certos momentos – e reprimir em outros – pode transmitir mensagens contraditórias sobre limites e comportamentos aceitáveis”, esclarece Severine.
Incentivar dizer palavrões na hora da raiva, por exemplo, pode legitimar a agressão verbal como uma forma aceitável de expressão, de acordo com a especialista. Se os palavrões forem sexualizados, isso pode impactar futuramente a compreensão saudável da criança sobre sexualidade, alerta a psicóloga. “Ela pode vir a ser um adulto abusador, agressivo, que não controla os sentimentos e muito menos os entende.”
Um outro aspecto negativo é a quebra de confiança que pode ocorrer quando os pais expõem os filhos a situações vexatórias na internet, sem que as crianças sequer saibam que estão sendo gravadas. “Além disso, as crianças sentem medo da exposição novamente e isso as faz se fecharem cada vez mais para as pessoas”, detalha. A exposição pode ainda resultar em vulnerabilidade emocional, ansiedade, problemas de autoimagem e aceitação.
Na casa de Maria Carolina Kramer, mãe da Gabriela, 7, há um cuidado em não expor a filha no ambiente on-line. “Embora ela tenha celular, não tem redes sociais. E as conversas no WhatsApp com os colegas são monitoradas. Ela chegou a pedir para abrir um canal no YouTube, mas negamos por entender que ela não teria maturidade para lidar com comentários negativos”, diz.
Maria Carolina avalia que a dinâmica das redes é um motivo de alerta para os pais. “Entendo que essa crítica constante durante a infância e adolescência é prejudicial ao desenvolvimento. E, pela própria mecânica do mundo on-line, é muito difícil garantir que todas as imagens sejam retiradas das redes se e quando necessário.”
Direito à privacidade
Uma vez na internet, sempre na internet. Isso porque, dificilmente, será possível retirar um vídeo seu que viralizou quando era criança. Atualmente, não existe uma lei específica que proíba a exposição das crianças na internet. O mais próximo disso é um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados (PL 4776/2023), que busca garantir o direito à privacidade de crianças e adolescentes.
“As crianças e os adolescentes têm direito à imagem, honra, dignidade, privacidade e inviolabilidade da sua intimidade. Essas regras contidas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são perfeitamente aplicáveis ao caso de exposição excessiva dos filhos na internet, na minha opinião”, explica a advogada Sandra Villela.
“Os pais, a sociedade como um todo e as plataformas têm o dever legal e moral de preservar a criança e o adolescente no universo digital”, diz Villela.
A especialista explica que, se o conteúdo for publicado por terceiros, os pais podem ajuizar uma ação proibindo a prática. No entanto, se forem os próprios pais os responsáveis por essa postagem, cabe ao Ministério Público averiguar e, eventualmente, processá-los. “O que vemos bastante são casos em que um dos genitores entra com ação contra o outro pedindo para que pare aquela exposição.”
Já Severine ressalta o risco de cyberbullying que a exposição excessiva pode trazer. “Elas podem se tornar alvos de indivíduos mal-intencionados e terem sua privacidade invadida, o que pode impactar negativamente sua saúde mental e emocional”, diz.
“Eu já fiz, mas hoje não exponho mais meus filhos”, conta Wanessa. “Após buscar entender melhor sobre exposição na internet, eu descobri um ‘universo paralelo’ de coisas terríveis. Agora, fotos e vídeos são somente para guardarmos de lembrança.”