Trabalho infantil: um crime exposto em todo o mundo

Com o aumento do trabalho infantil pela primeira vez em 20 anos no mundo todo, autora de livro-reportagem comenta o direito roubado a uma infância plena

Laís Barros Martins Publicado em 11.06.2021
Trabalho infantil: Foto de uma menina com vestido colorido que carrega produtos acima da cabeça
OUVIR

Resumo

De 160 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho no mundo, 2,7 milhões são meninas e meninos brasileiros. Sobre essa realidade, a autora do livro-reportagem “Meninos malabares” comenta o roubo ao direito a uma infância plena em nosso país.

Crianças e adolescentes são prioridade absoluta perante a lei. Contudo, as violações aos seus direitos são reveladas ou desvendadas, sem qualquer véu ou venda, nos faróis, nos cemitérios, nas plantações, nas praias…

No mundo, são 160 milhões de crianças em situação de trabalho. Com o aumento de 8,4 milhões nos últimos quatro anos, é a primeira vez em 20 anos que a tendência de queda foi interrompida, mostra o relatório “Trabalho infantil: estimativas globais 2020, tendências e o caminho a seguir”, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas pra a Infância (Unicef), divulgado nesta quinta-feira (10). Há ainda o alerta sobre o risco de 9 milhões voltarem a trabalhar até o fim de 2022, podendo chegar a 46 milhões, caso não tenham acesso a uma cobertura de proteção social crítica.

Ainda que 94 milhões de crianças tenham saído dessa condição, entre 2000 e 2016, o relatório destaca que 6,5 milhões de crianças entre 5 e 11 anos entraram em situação de trabalho infantil desde 2016, atingindo 79 milhões nessa faixa etária.

Apesar das obstinadas tentativas de invisibilizar essas promessas de vida fadadas ao fracasso desde o berço, Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano registraram, em texto e imagem, as histórias de meninas e meninos alienados ao trabalho infantil em nosso país.

Trabalho infantil é toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida pela legislação de cada país. No Brasil, é proibido para menores de 16 anos; se for noturno, perigoso ou insalubre, a proibição se estende até os 18 anos. Na condição de aprendiz, a lei permite o trabalho protegido a partir de 14 anos. A Organização das Nações Unidas (ONU) declara 2021 o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. Neste 12 de junho, é celebrado o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil.

O livro “Meninos malabares – Retratos do trabalho infantil no Brasil”, a partir da denúncia a dez diferentes formas de exploração, busca “desconstruir os mitos de que é ‘melhor trabalhar do que ficar na rua’ ou ‘é melhor trabalhar do que roubar’, condenando injustamente as crianças a essas duas únicas opções”, opina Bruna.

Esse retrato humanizado do trabalho infantil por meio de histórias reais, mostrando quais são as causas e consequências da violação, tem a intenção de construir pontes. “Muitas vezes a história de alguém sensibiliza mais do que somente anunciar estatísticas”, acredita a autora.

Image

Tiago Queiroz Luciano

Fotos do livro “Meninos malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil”, de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano

Image

Tiago Queiroz

Fotos do livro “Meninos malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil”, de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano

Image

Tiago Queiroz/Rede Peteca

Fotos do livro “Meninos malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil”, de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano

Image

Tiago Queiroz

Fotos do livro “Meninos malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil”, de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano

Assim, a história dos meninos malabares que equilibram cones e tochas de fogo em um desenho nas alturas enquanto você espera o sinal verde se junta à história dos adolescentes que limpam túmulos nos cemitérios de São Paulo, de um menino de oito anos que trabalha em uma plantação de palmitos, de uma família de bolivianos que conseguiu romper o ciclo da exploração em uma oficina de costura. A obra traz também relatos sobre a mendicância durante a crise causada pela pandemia de covid-19, seguida do aumento da fome em nosso país, submetendo as infâncias a vulnerabilidades ainda maiores.

Durante esse período, crianças que já se encontram em situação de trabalho infantil podem estar trabalhando mais horas ou em condições mais precárias, enquanto muitas mais podem ser levadas às piores formas de trabalho devido à perda de emprego e renda de suas famílias.

Henrietta Fore, diretora executiva do Unicef, lembrou como este segundo ano de confinamentos, fechamento de escolas, crises econômicas e ajustes orçamentários em escala nacional forçaram decisões drásticas. “Incentivamos governos e bancos internacionais de desenvolvimento a priorizarem investimentos em programas que possibilitem tirar as crianças da força de trabalho e colocá-las de volta na escola, bem como em programas de proteção social que ajudem as famílias a evitar essa escolha em primeiro lugar”, escreveu em nota oficial.

Capa do livro “Meninos malabares - Retratos do trabalho infantil no Brasil”, de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano. Alguém vestido com roupas coloridas de palhaço segura uma tocha de fogo
“Meninos malabares – Retratos do trabalho infantil no Brasil”, de Bruna Ribeiro e Tiago Queiroz Luciano (Panda Books)

Este livro-reportagem conta a história real de meninas e meninos submetidos ao trabalho na infância por meio de texto e imagens, de forma a escancarar uma realidade que ainda perdura em nossa sociedade. Parte de uma cultura que tem raízes históricas, o trabalho infantil é denunciado, com um apelo para que o direito à infância e à juventude seja garantido e preservado.

Os perfis literários dessas crianças, na maioria meninos e meninas pobres e negros, retratam a vida daqueles que não tiveram outra opção além do trabalho na infância como forma de sobreviver e ganhar algum dinheiro, seja para garantir o alimento do dia ou para ajudar em casa. Para Bruna, os relatos revelam o trabalho infantil como consequência de um problema estrutural, apoiado no tripé desigualdade social, racismo e questões culturais, exigindo políticas públicas intersetoriais e mobilizações da sociedade civil que respondam às mazelas de um dos países mais desiguais do mundo.

A violação expõe as crianças a violências físicas, psicológicas e sexuais, além de impactar a educação, com baixo rendimento e déficits de aprendizagem, ou resultar em evasão escolar, perpetuando a reprodução do ciclo da pobreza no Brasil. Os números, dados e contextualizações em relação às perspectivas histórica, jurídica, cultural e social, “ajudam a entender a origem do problema, quem são as pessoas impactadas, quantas são e como podemos colaborar no enfrentamento”, indica a autora.

Em comunicado, Guy Ryder, diretor-geral da OIT, destacou a importância da proteção social inclusiva ao permitir que as famílias mantenham seus filhos na escola, mesmo diante das dificuldades econômicas. “É essencial aumentar os investimentos para facilitar o desenvolvimento rural e promover o trabalho decente no setor agrícola”, indicou.

Toda criança tem direito à proteção integral e ao desenvolvimento pleno, com acesso à educação, saúde, moradia digna, lazer e convívio familiar e comunitário saudável, como preconizam a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Um panorama histórico sobre o trabalho infantil

Sobre o trabalho infantil ser consequência de um problema estrutural em nosso país, Bruna recupera a Lei do Ventre Livre (1871) como exemplo que acabou o institucionalizando. “Em seu primeiro parágrafo, a lei diz que os filhos das escravas nasceriam livres. Mas, na linha pequena, se vê a perversidade: apesar de considerados livres, os senhores de escravos tinham direito a uma escolha quando as crianças completavam 8 anos: exigir trabalho forçado até 21 ou ser indenizado pelo Estado”, explica. “Na época, não existia o entendimento das crianças como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Elas eram tratadas como pequenos adultos”, pontua.

“Seguindo a linha do tempo, em 1891, o Brasil determinou que a idade mínima para o trabalho era de 12 anos. Depois, veio o Código de Menores, primeiro documento legal para pessoas com menos de 18 anos, promulgado em 1927 (houve uma atualização em 1979, mas foi mantida a mesma arbitrariedade, o assistencialismo e a repressão com a população infantojuvenil). Neste documento, a chamada ‘mentalidade menorista’ distinguia quem era criança e quem era menor, de acordo com suas condições sociais. A partir disso, o Código de Menores também passou a considerar irregular toda criança abandonada, em situação de rua, vulnerável ou em conflito com a lei”, expõe a autora.

“Mais recentemente, nos anos 1980 e 1990, começou um forte movimento pelos direitos de crianças e adolescentes. É então promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a primeira legislação que regulamentou em nosso país questões como adoção, acolhimento e medidas socioeducativas, amparada pela Constituição Federal de 1988”. Para Bruna, “a defesa dos direitos de crianças e adolescentes visa erradicar de uma vez por todas a diferenciação entre ‘menor’ e ‘criança’, de acordo com a cor da pele e a classe social”.

Segundo relatório do Observatório da Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT) em parceria com a OIT, entre 1992 e 2015, 5,7 milhões crianças e adolescentes deixaram de trabalhar no Brasil, uma redução de 68%. De acordo com dados de 2017, no entanto, ainda há 2,7 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no país – 59% meninos e 41% meninas. Mais da metade dessa população está nas regiões Nordeste (852 mil) e Sudeste (854 mil). A região Norte é a única na qual a maior incidência de trabalho infantil está em atividades agrícolas. A faixa etária de 14 a 17 anos concentra 83,7% dos casos, mas o trabalho infantil entre crianças de 5 a 9 anos aumentou 12,3% entre 2014 e 2015, de 70 mil para 79 mil.

Saiba como ajudar a enfrentar o trabalho infantil

  • Não dê esmolas e não compre nada de crianças
    Campanhas em todo o mundo pedem que as pessoas não deem esmolas nem comprem produtos de crianças, para não perpetuar o ciclo do trabalho infantil. Só o rompimento tirará a criança da situação de vulnerabilidade.
  • Apoie causas e organizações
    Uma forma de colaborar é apoiar organizações que atuam na proteção da infância e da juventude por meio de doações.
  • Mobilize sua rede
    Em tempos nos quais muitas das principais discussões globais vão parar nas redes sociais, disseminar conteúdos de qualidade é uma potente ferramenta de sensibilização.
  • Denuncie
    Ao suspeitar que uma criança esteja trabalhando, denuncie. Nem sempre o trabalho infantil é facilmente detectado pelas autoridades. Para esse tipo de denúncia, há o Disque 100, canal que encaminha as notificações para a rede de proteção, visando atender a família por meio de políticas públicas sociais. Há ainda aplicativos como o Direitos Humanos Brasil e o MPT Pardal.
  • Seja um empresário e um consumidor conscientes
    Muitos escândalos envolvendo empresas que exploram mão de obra infantil evidenciam uma realidade que os empresários não podem ignorar: eles são responsáveis pelos seus funcionários e também pelos das empresas que fazem parte de sua cadeia produtiva. Os consumidores também podem colaborar nessa luta, optando pelo chamado “consumo consciente”.

* Fonte: Projeto Criança Livre de Trabalho Infantil.

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS