A importância de saber não fazer nada em uma sociedade que cada vez mais exige que façamos tudo. O tempo todo
Quem disse que precisamos sempre estar fazendo alguma coisa? Como transferimos essa ansiedade para os pequenos e qual o impacto disso? Vamos discutir a importância de proporcionar às crianças momentos de ócio, silêncio e tranquilidade?
“De uma perspectiva criativa, uma das coisas mais importantes que podemos dar a uma criança é o nada.”
Este depoimento pode parecer estranho à primeira vista, mas você não leu errado: o nada é o melhor presente. Ele aparece em “O Começo da Vida“, documentário de Estela Renner sobre as diferentes formas de cuidar do período que chamamos de primeira infância (da gestação até os seis anos completos). É o relato de um pai sobre o que costuma fazer com seus filhos: permitir que inventem algo com o que estiver ao redor. Mas afinal, o que isso quer dizer?
Por mais paradoxal que possa parecer, o nada é muita coisa. É o ócio, o tempo livre, o vazio, o silêncio.
E é sobre ele que vamos falar nesta matéria.
Guimarães Rosa diz isso no livro “Grande Sertão: Veredas”, e faz pensar sobre o valor do “nada” como elemento de contemplação e entendimento do mundo.
Assim como os adultos, as crianças também recebem cada vez mais estímulos e informações a todo momento; com isso, elas ficam expostas a situações em que devem desempenhar algum papel. Os momentos livres de qualquer aprendizado ou finalidade são cada vez mais raros.
Ao apresentar aos pequenos mais opções de atividades do que eles podem absorver, acabamos privando sua liberdade de ser
No filme de Estela, quando o entrevistado diz que “a melhor coisa que podemos dar a uma criança é o nada”, ele se refere especificamente aos momentos de brincadeira. Ele explica que quando uma criança recebe um brinquedo pronto, que anda, pula, canta e faz coisas impressionantes, ela automaticamente entende que seu papel ali é de espectadora passiva: o brinquedo faz tudo por ela. Porém, crianças têm necessidades cognitivas de descobrir, explorar e tatear com as próprias mãos aquilo que não conhecem.
Não por acaso, muitos pais relatam: “meu filho brinca mais com a caixa do que com o próprio presente”. Assim, chegamos à questão: o que é um presente?
Ao oferecer alguma coisa às crianças, é fácil desconsiderar suas necessidades mais básicas. Mais do que encher os pequenos de mais estímulos e informações além dos que eles já recebem do mundo, por que não oferecer momentos de silêncio, experiências afetivas e memórias?
Dissociar a brincadeira do consumo é mais difícil do que parece; em um sistema capitalista, o conceito de experiência está diretamente ligado ao ato de consumir.
Para Gabriela Romeu, jornalista, pesquisadora e idealizadora do projeto Infâncias, mais do que tentar ignorar essa realidade com a qual a criança terá contato mais cedo ou mais tarde, o importante é atribuir valores ao que consumimos para que aquilo se torne uma experiência. “Vivemos em uma sociedade de consumo, e consumir não é errado, desde que ele seja significado. A nossa sociedade acredita que a criança precisa do brinquedo pronto, e existe toda uma indústria em torno disso”, explica.
“Na verdade, o que a criança precisa é de tempo e espaço: o resto ela inventa”
Para Gabriela, o consumo tira a possibilidade de a criança vivenciar a infância, já que esvazia experiências de descobertas que ela só teria caso fosse exposta a momentos de brincadeira livre, espaço e tempo de explorar o mundo, seu corpo e suas sensações por si própria.
O acesso ao tempo é uma discussão fundamental nessa conversa. A realidade de muitas famílias, que trabalham o dia todo para garantir o sustento dos filhos, nem sempre permite que esse tempo e espaço possam ser colocado em prática.
Da mesma forma, nos ambientes de ensino, a lógica do desempenho e do aprender escolarizado não proporciona esses “espaços em branco” de que estamos falando, tão necessários para a criança ser em liberdade.
O caminho para isso é conquistar o tempo, mesmo que seja um pouco por dia: pode ser um olho no olho entre pai e filho antes de dormir, um passeio ao ar livre sem rumo certo, deitar na grama, aproveitar a companhia um do outro em silêncio.
O tempo com as crianças não precisa ser preenchido com atividades. ‘Fazer nada’ juntos também pode fortalecer os vínculos familiares.
Segundo a educadora Adriana Friedmann, diretora do Mapa da Infância Brasileira (MIB), quanto mais nos deixarmos levar pela dinâmica da produtividade a qualquer custo, mais o consumo ganha força.
“A questão do consumo, principalmente em grandes cidades, tem muito a ver com a ausência dos pais. O ‘querer ter’ está relacionado à falta que a criança sente”, diz.
“A criança pede um brinquedo, mas o que está querendo é presença”
O assunto é tão urgente que tem até livro ilustrado infantil sobre o assunto. Para fazer uma brincadeira com a própria palavra “nada”, o livro “Nada de Presente” (Editora Girafinha), conta a história de dois camaradas: o cachorro Earl e o gato Mooch, que quer dar um presente de aniversário para o seu melhor amigo.
Mas o que pode querer um cachorro além de uma cama confortável, carinho dos donos e um osso para roer? Pelo jeito, ele já tem tudo. Então, o gato resolve presentear o amigo com a única coisa que ele não tem: o nada.
“Em um mundo com tantas coisas, onde eu vou encontrar o nada?”, reflete o personagem.
E aí começa a confusão. Sem saber onde encontrar o seu presente ideal, o gato começa a observar o que as pessoas dizem sobre o tal “nada”. O dono sempre liga a TV e reclama “não tem nada passando na TV”, mas quando vai procurar, encontra muita coisa. Nada feito!
Decepcionado, ele continua procurando. Um certo dia, a dona chega em casa e diz: “nada no shopping”. Ele vai até lá e só encontra muitas e muitas coisas. E assim vai: uma jornada em busca do nada, mas que só esbarra em tudo.
A partir desse enredo aparentemente banal, o autor Patrick Macdonnel faz uma profunda reflexão filosófica sobre a carga de estímulos e informações que recebemos a todo instante, o que faz com que o nada seja um verdadeiro artigo de luxo. Pode ser um momento de silêncio, a tranquilidade, uma tarde livre de obrigações, uma noite estrelada, a calma de poder deixar o “tudo” para amanhã, a companhia do melhor amigo. Coisas difíceis de conseguir na sociedade que considera tempo sinônimo de dinheiro.
Para a professora italiana Chiara Spaggiari, o caminho é mais simples do que parece: o mínimo de interferência dos adultos para o máximo de liberdade se ser criança.
“A criança precisa ser deixada livre para observar, escolher, se aproximar e se afastar, e experimentar o mundo de diversos modos”
Em depoimento no filme “O Começo da Vida”, ela explica que um adulto, quando está diante de uma criança, tende a estabelecer uma hierarquia, levando a crer que ele é o responsável por ensinar tudo a ela.
“A criança não é um recipiente que enchemos com nossos saberes. As crianças aprendem e co-constroem o seu saber junto dos adultos”, explica Chiara.
E o saber não passa só do adulto para as crianças, mas principalmente de uma criança para outra criança.
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