Saúde mental: nada justifica internar uma criança, diz psicóloga

Quais os caminhos que levam crianças ao confinamento entre as quatro paredes de um hospital psiquiátrico? E o que isso revela sobre a sociedade?

Camilla Hoshino Publicado em 19.02.2018
Foto em preto e branco mostra menina abraçando um homem. O semblante dela é triste.

Resumo

Conversamos com a psicóloga Flávia Blikstein. Para ela, a assistência psiquiátrica à infância deve ser pensada a partir do olhar atento sobre a criança e seu contexto familiar, a fim de não submeter os pequenos a intervenções desnecessárias que ferem sua integridade.

Uma suspeita de “transtorno de conduta”. Uma instituição de saúde que fornece um diagnóstico psiquiátrico. Uma ordem judicial. Remédios e internação. Os caminhos que levam crianças ao confinamento entre as quatro paredes do hospital psiquiátrico ainda são percorridos no Brasil. Embora anos de luta antimanicomial tenham desencadeado a reformulação do modelo de Atenção à Saúde Mental e as conquistas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tenham fornecido novos mapas para compreender a infância, a encruzilhada da “loucura” não se fechou por completo.

Em dezembro de 2017, o Ministério da Saúde, junto com Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, aprovaram a reformulação do programa de saúde mental no Brasil, com uma proposta que suspende o fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos, encarece o valor das diárias para internação nestes locais e incentiva a criação de enfermarias especializadas em hospitais gerais, um pensamento que, de acordo com especialistas e entidades como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), vai contra o modelo de tratamento ambulatorial que vigorava há anos, desde a Reforma Psiquiátrica, definida pela Lei nº 10.216 de 2001.

Com este novo capítulo do debate manicomial no país, os olhares atentos sobre a infância resgatam uma pergunta essencial: afinal, quem são as crianças encaminhadas para a institucionalização?

“A assistência à infância deve ser pensada a partir de um olhar atento sobre a criança e seu contexto familiar”, defende a psicóloga Flávia Blikstein.

Maria, como aqui será chamada, é uma delas. Em novembro de 2007, aos 14 anos, ela se encontrava numa ambulância em direção à internação psiquiátrica. Se estivesse em outro lugar, provavelmente estaria desenhando, brincando com bonecas ou mexendo na água, atividade que podia lhe tomar horas e horas. Maria era pobre, morava com a mãe, a avó e outros quatro irmãos. Havia sido excluída da escola e apresentava crises de agressividade. Durante uma dessas crises foi levada ao Pronto Socorro, e de lá para a ambulância à caminho da internação. Se para os médicos e seus receituários o diagnóstico era claro, para a menina não era tão evidente o motivo de tudo aquilo: “Por que eu vou ficar aqui?” “Quem vai estar aqui comigo?”

O silêncio diante das perguntas de Maria só pode ser quebrado anos mais tarde. A psicóloga e pesquisadora Flávia Blikstein, que acompanhava a menina na ambulância, foi buscar algumas pistas no Núcleo da Infância e Adolescência (NIA) do Centro de Atenção Integrada em Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel, instituição de referência na internação de crianças e adolescentes, na cidade de São Paulo. Coletou dados referentes a 451 casos e 611 internações, entre janeiro de 2005 e dezembro de 2009. Descobriu que as as internações eram ocasionadas muito mais por conta de como as crianças são tratadas do que pelo comportamento delas em si.

Internação: “não há característica alguma que justifique tal intervenção na vida de uma criança”

“Na grande maioria dos casos, atribuímos ao sujeito que sofre a institucionalização a responsabilidade por tal ação: ‘este era agressivo demais’, ‘agitado demais’, ‘estranho demais’, mas a verdade é que não há característica alguma que possa justificar tal intervenção na vida de uma criança ou adolescente.

Quando isso acontece, comprova-se apenas a nossa ineficiência em garantir os direitos dessa população”, diz Flávia Blikstein.

Para ela, a assistência e a infância devem ser pensadas a partir do olhar atento sobre a criança e seu contexto familiar, a partir de sua história de vida. Caso contrário, crianças que possuem históricos de violência ou outros traumas, e que apresentam comportamento considerados “fora do padrão de normalidade”, receberão diagnóstico neurológico sem que suas trajetórias sejam levadas em consideração. Essa postura, segunda ela, faz com que crianças colecionem fracassos conforme passam pelas instituições.

É o que indica o caso de Maria. Como a menina não falava, quando a escola se deu conta das dificuldades, sugeriu que a família a encaminhasse para uma instituição filantrópica. Com problemas de acesso, sem possibilidade de transporte, sua mãe também teria poucas chances de garantir o deslocamento diário.

Além do trabalho, havia outros quatro filhos. A instituição sugeriu levá-la para passar os dias nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) Infantojuvenil. Resumindo, Maria foi empurrada de um lado para o outro até chegar ao hospital psiquiátrico durante uma crise noturna. “Serviços não se articularam para pensar outra solução”, aponta a pesquisadora.

De acordo com a pesquisa de Flávia Blikstein, concluída em 2012, no CAISM Philippe Pinel, 77% das internações são do sexo masculino. A internação de maiores de 12 anos representa 88% dos casos e duram, em média, 41,6 dias, com casos chegando a 1004 dias.

Há dois percursos principais que levam à internação. Em 55% dos casos, as internações são solicitadas por familiares e por outros serviços de saúde.

Nestas situações, a média é de 30 dias e 83% são internados uma única vez. O segundo percurso representa 45% dos casos e ocorre via ordem judicial, apresentando maior incidência de reinternação e maior duração: 92% das internações que duram mais que 150 dias e 85,7% das crianças e adolescentes internados de quatro a seis vezes no NIA o são por ordem judicial.

“A leitura jurídica do discurso do doente mental gera formas de segregação”, sugere o estudo”

O abismo manicomial

Do dia em que Maria foi internada, e Flávia se manteve em silêncio diante das perguntas na ambulância, até hoje, a psicóloga duvida que o cenário tenha mudado significativamente.

“Não enfrentamos o problema”, problematiza a especialista.

Mas não só isso, a suspeita é que antes mesmo de algumas conquistas terem sido consolidadas, se esteja caminhando mais rápido para o abismo manicomial.

Com a resolução aprovada em dezembro de 2017, que estabelece novas diretrizes para a Rede de Atenção Psicosocial (RAPS), especialistas temem que o atendimento volte a ser centrado em hospitais psiquiátricos.

“Já tivemos décadas desse pensamento vigente, proporcionando institutos específicos para patologias das crianças, por exemplo. O resultado foi uma população enorme de pessoas que se tornaram moradores de hospitais psiquiátricos”, recorda a psicóloga Flávia Blikstein.

De acordo com o Censo Psicossocial realizado em 2009 em São Paulo, havia mais de seis mil moradores nestes locais. Justificativa: ao serem institucionalizadas, as pessoas perdem os seus vínculos.

Em 2014, esse número reduziu para 4.439. Neste ano foram identificadas 10 pessoas entre 13 e 18 anos, 50% delas com regime de internação de 1 a 5 anos. A mesma pesquisa identificou que houve menor frequência de internações de longo prazo após a conclusão do primeiro Censo.

O decréscimo pode ter relação com o cumprimento da política que inibe este tipo de tratamento e que procura regular o tempo das internações por meio do incentivo ao cuidado em rede, territorializado e com equipamentos predominantemente extra-hospitalares, segundo o próprio estudo.

Um dos argumentos utilizados pelo coordenador nacional de saúde mental Quirino Cordeiro e pelos representantes que aprovaram as mudanças, é o de que os leitos em hospitais psiquiátricos são insuficientes para atender os “pacientes com quadros agudos”.

Para Blikstein, que se apoia em uma experiência empírica, o motivo que abre espaço para as “exceções” ou “quando necessário” parece um contrasenso.

Os dados do CAISM Philippe Pinel apontaram para uma média de cem “exceções” por ano.

“Se há lugar para internação ‘apenas para casos graves’, tudo pode eventualmente se tornar ‘grave’. Trata-se de duas lógicas diferentes de pensar a saúde mental”, diz.

Histórico da luta antimanicomial

A luta social que levantou a bandeira contra a marginalização provocada pelo asilamento dos usuários da saúde mental dentro dos manicômios data do final dos anos 1970 e começa a ganhar mais visibilidade no final dos anos 1980 no Brasil. Até esse período, os mecanismos utilizados nos tratamentos realizados em grandes complexos de hospitais psiquiátricos produziam danos maiores do que benefícios aos sujeitos. É o que explica a psicóloga da Vara de Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Paraná e militante da luta antimanicomial, Renata Moraes.

“O isolamento, pelas alongadas internações, o grande uso de psicotrópicos, com muitos efeitos colaterais crônicos, o atendimento estritamente médico e não multidisciplinar, entre outros, acabavam por não olhar as especificidades de cada paciente, produzindo um massificação da forma de tratamento e a consequente não melhora dos sujeitos internados”, recorda. Muitas atrocidades e violações de direitos humanos corroboradas pela ideia de “higienização”, “medicalização” e “loucura” foram relembradas no livro Holocausto Brasileiro, escrito pela jornalista Daniela Arbex.

O livro-reportagem Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex, relata as atrocidades cometidas durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido como Colônia. Localizado na cidade de Barbacena, em Minas Gerais, o hospício protagonizou a morte de pelo menos 60 mil pessoas. Cerca de 70%, sem diagnóstico de doença mental. Crianças e adolescentes também estão entre a população que viveu e morreu no local.

A Reforma Psiquiátrica tratou de reformular o modelo de Atenção à Saúde Mental, transferindo o foco de tratamentos concentrados nas instituições hospitalares para uma Rede de Atenção Psicossocial, organizada em unidades de serviços comunitários e abertos. Isso significou, na prática, contar na saúde pública com uma estrutura de apoio ao atendimento, que inclui os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), Centro de Convivência e Cultura e leitos de atenção integral em hospitais gerais e nos Caps III, que atendem 24 horas e podem oferecer acolhimento noturno.

“Nesse sentido, a reforma possibilitou um acúmulo teórico e prático de outros métodos para atenção à saúde mental de crianças e adolescentes. Os CAPS infantojuvenis são os centros especializados no SUS para este tratamento. Eles preconizam o acompanhamento da família e o diálogo com a escola e outras instituições que a criança frequenta, para compreender a determinação de seu sofrimento e criar estratégicas para sua melhora”, explica a psicóloga e militante Renata Moraes.

“A internação é considerada apenas em casos de crise, como uma estratégia dentro de um conjunto intersetorial de cuidado e atenção infantojuventil, e não como um tratamento em si”

“A lei da reforma, contudo, não resolveu problemas fundamentais na estrutura do SUS, tampouco no pensamento retrógrado de que os transtornos mentais devem ser tratados pela via da internação prolongada”, pondera Moraes.

Ela atenta que os CAPS seguiram subfinanciados e com capacidade de atendimento aquém da demanda da população. Além de muitos serem terceirizados e geridos por Oss, organizações sociais sem fins lucrativos ou fundações, o que faz com que o tenha alta rotatividade de profissionais e uma precarização no atendimento. “É temeroso que a saúde em geral e a saúde mental estejam submetidas à lógica dos lucros de empresas em saúde, que se beneficiam com a precarização dos atendimentos no SUS.”

Os tratamentos na Saúde Pública

Atualmente, os transtornos mentais mais comuns entre crianças e adolescentes são a depressão, os transtornos ansiosos, o déficit de atenção, o uso de substâncias psicoativas e os transtornos de conduta. Isso é confirmado por pesquisas, mas também pela observação clínica psicossocial, conforme garante a psicóloga e coordenadora do CAPS Infantojuvenil do bairro Pinheirinho, zona sul da cidade de Curitiba, Paraná, Stephanie Abrão Gorte.

“Há casos que inserimos no CAPS infantojuvenil, cujo atendimento durou quatro meses, enquanto há outros que são acompanhados há mais de oito anos”, explica Gorte.

“Os exemplos de acompanhamento mais prolongado, segundo ela, envolvem problemáticas como o autismo e o uso de drogas iniciado na segunda infância, associados a um baixo suporte social”

Nesse período, a criança ou o adolescente tem uma rotina organizada conforme o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que inclui diagnóstico, estabelecimento dos objetivos do tratamento e estratégias empregadas no tratamento, os dois últimos itens negociados com os pacientes e responsáveis.

“Pode incluir estratégias desde grupos psicoterapêuticos, passando pela realização de atividade esportiva em um local da comunidade até reuniões colegiadas com a escola e o judiciário”, descreve a coordenadora do CAPS.

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Crianças e adolescentes chegam a ficar uma década confinadas em instituições, contrariando os princípios legais do ECA e diretrizes da Reforma Psiquiátrica.

O tempo que o paciente permanece nas dependências do CAPS Infantojuvenil é bastante variável. Há momentos de atendimento em grupo ou individual, que tem duração de uma hora, até momentos mais vulneráveis ou agudos, em que se aciona o acolhimento diurno: permanência de dia no CAPS e retorno à noite para casa.

“Esta é uma estratégia que se mostra eficaz, muitas vezes, para inclusive substituir um período de internação”, explica Stephanie Gorte.

A psicóloga ainda conta que, em 2017, os internamentos hospitalares realizados incluíram exclusivamente adolescentes em uso abusivo de substância psicoativa, associado ao baixo suporte social, com os quais haviam sido realizadas diversas tentativas prévias de acompanhamento, somado ainda à determinação do Poder Judiciário.

“Porém, é algo que evitamos ao máximo, tendo em vista a possibilidade de prejuízos associados ao período de retirada do convívio comunitário e a restrição do convívio familiar aos períodos de visita”, afirma. A internação nesta modalidade dura cerca de um mês e é acompanhada pela equipe do CAPS Infantojuvenil.

Os anos de pesquisa no CAISM Philippe Pinel levaram Flávia Blikstein a defender uma posição categórica: não deve existir indicação de institucionalização de crianças e adolescentes para nenhum diagnóstico ou situação. Quando há uma patologização de um comportamento infantil, de acordo com ela, é porque se está partindo de uma ideia pré-determina sobre a infância, de uma idealização de comportamentos esperados para determinada fase da vida.

“Privar um sujeito de liberdade por motivos de doença ou deficiência é um equívoco histórico, uma distorção do significado de cuidar”, crítica.

Quais são as alternativas?

Segundo a pesquisadora, elas existem, sim. Mas é preciso que a saúde pública receba incentivo e investimentos, que instituições se articulem, que o debate seja ampliado.

No caso de Maria, a saída sugerida pela psicóloga passa por um funcionamento em rede: a escola poderia, em vez de excluir, dividir os cuidados da menina com a instituição filantrópica. O transporte público poderia fornecer acesso à escola não apenas para Maria, mas também para os outros quatro irmãos. O CAPS Infantojuvenil, neste caso, seria não o único, mas outro agente de apoio e amparo à família.

“O atendimento psiquiátrico para a criança  deve ser multidisciplinar e integral, ou seja, acompanhado por profissionais de diversas áreas e atento às dimensões sociais, emocionais e físicas da criança”

Mas o futuro do pretérito não serve à Maria e nem a nenhuma criança ou adolescente. A menina passou três meses no hospital psiquiátrico e não obteve mudança em seu diagnóstico. Mas não se sabe exatamente quantas crianças ainda percorrem os corredores destes locais e nem por quanto tempo permanecem ali. Algumas por 1807 dias, como no caso de Raquel. Em 2015, aos 19 anos – cinco deles roubados pela internação e pelo diagnóstico da “loucura” – ela vagava pelas ruas e albergues de São Paulo. Fora ela, quantas mais?

Para quem quiser se aprofundar nas histórias contadas nesta reportagem, os depoimentos de Maria e Raquel foram compartilhados pela psicóloga Flávia Blikstein durante uma palestra no TEDx Talks, em 2015.

 

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