‘Os professores precisam se cuidar, mas também serem cuidados’

Mesmo enfrentando estresse e falta de estrutura educacional, professoras e professores se mostraram humanamente excepcionais neste ano de pandemia

Michele Bravos Publicado em 03.03.2021
Foto em preto e branco de uma mulher, professora, com uma das mãos apoiando a cabeça e a outra vendo um caderno, com semblante de cansaço
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Resumo

A pandemia evidenciou o esgotamento em que se encontram milhares de professores brasileiros, chamando a atenção para a saúde mental, o autocuidado e a valorização do professor.

O trabalho é em duas escolas – ou até mais, combinado com 15 minutos de almoço entre o deslocamento de uma para outra. Horas em sala de aula, manejando ensino e conflitos, somadas a horas na sala de casa, entre atividades e família. É nesse formato de educação, que sobra estresse e falta tempo para o autocuidado e para o equilíbrio da saúde mental de milhares de professoras e professores do Brasil. 

Tal realidade se acentuou ainda mais na pandemia, quando educadores foram obrigados a reformular, da noite para o dia, todo o método de ensino, ter as relações mediadas por uma tela, aprender a usar novas tecnologias e estar a todo momento respondendo mensagens de pais e estudantes pelo celular. Neste último ano, assim como a saúde, a educação foi umas das áreas mais impactadas pela covid-19 e, além de crianças e jovens estressados e ansiosos dentro de casa, os educadores estão vivendo intensamente a pressão dos novos tempos.

No início da pandemia no Brasil, o Lunetas publicou uma reportagem sobre como a rotina de professores e alunos foi transformada pelas aulas on-line e pelo isolamento domiciliar. Leia mais em “Escolas na quarentena: quando a distância desafia a educação”.

Após um ano de pandemia, como estão os professores?

A saúde mental dessa classe profissional, composta em sua maioria por mulheres, é um ponto de atenção, pois revela uma intersecção entre questões de gênero e de esgotamento. 

No primeiro trimestre da pandemia, a Nova Escola realizou uma pesquisa com 9.557 educadores – destes, 85% eram mulheres. Quando os profissionais foram questionados sobre a sua relação com saúde mental/emocional, 28% classificaram-na como ruim ou péssima e 30% como razoável. Alguns dos fatores apontados pela pesquisa estão relacionados à dupla jornada das mulheres, dividindo-se entre as tarefas domésticas e profissionais, além de, muitas vezes, serem as responsáveis em cuidar das atividades escolares e acompanhar as aulas virtuais dos próprios filhos. 

Outros pontos relacionados ao estresse de professoras e professores foram o excesso de atividades, a falta de reconhecimento, a necessidade de aprender rápido novas metodologias e a insegurança sobre o futuro. 

Em Monte Castelo, uma cidade no interior de Santa Catarina de aproximadamente 9 mil habitantes – onde a maioria das famílias é de baixa renda, com pais e mães analfabetos ou com pouca escolaridade -, Keila Vasconcelos, gestora de uma escola pública rural da região, enfrentou a sobrecarga da dupla jornada e teve que driblar a falta de tecnologia para garantir educação a todos os alunos. 

“Na pandemia, com os portões da escola fechados, levar a mensagem de que a educação muda a vida das pessoas se tornou ainda mais importante”, relata.

“Mas havia o medo de nos contaminarmos ou de sermos transmissores do vírus. Além dessa pressão, toda a equipe ficou bem cansada e estressada por conta do volume de trabalho, que dobrou. Nossa rotina se baseou em enviar planejamento quinzenal, imprimir e entregar atividades presencialmente, publicar as atividades na plataforma on-line, fazer atendimento dos estudantes e reuniões virtuais, corrigir as atividades. Tudo isso com os nossos filhos também em casa e sem nenhum acesso facilitado a atendimento psicológico.”

Como a comunicação via plataforma on-line não alcançava todas as famílias, Keyla e sua equipe decidiram imprimir as atividades e organizá-las em envelopes individuais para cada estudante, levando e buscando os materiais de casa em casa. Os “professores-carteiros” também passaram a coletar histórias de vida e entender melhor a realidade dos alunos. Apesar dos riscos da pandemia, a motivação por não querer deixar nenhuma criança para trás foi maior. 

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Arquivo pessoal

Para driblar a falta de acesso à internet em meio a pandemia, professores de Monte Castelo (SC) distribuíram envelopes com atividades para os estudantes de casa em casa

A história de Keila e de toda a sua equipe é inspiradora, mas também aponta para a importância da valorização desses profissionais, como até mesmo forma de mitigar o esgotamento profissional. De acordo com a pedagoga Evelise Portilho, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), a valorização do professor deve ser uma atitude coletiva e que também favorece o autocuidado. 

“Os professores precisam se cuidar, mas também serem cuidados”

“Quando a sociedade presta atenção nessa pessoa e valoriza a sua profissão, isso é uma forma de expressar cuidado e incentivá-la a se cuidar”, afirma.

Se na escola pública rural de Keila os desafios estavam na falta de tecnologia, o que exigiu de sua equipe estratégias bem analógicas, em uma escola particular urbana, em Curitiba (PR), a professora Bruna Daum precisou aprimorar rapidamente seus conhecimentos tecnológicos para manter a atenção dos estudantes.  

“Tivemos praticamente um fim de semana para nos adaptarmos. Posso dizer que esse começo foi muito estressante”, conta.

“Eu tive várias crises de ansiedade, o que não acontecia comigo há muito tempo”

Um agravante desse momento foi também a ausência de limites entre trabalho e vida pessoal. “Era estranho dar aulas on-line pela câmera do computador. Eu tive que abrir a minha casa para os estudantes, a barreira entre trabalho e lar foi rompida.  As mensagens chegavam pelo celular a qualquer hora do dia. O meu tempo de trabalho aumentou pelo menos o dobro.”

Apesar do estresse, a professora conseguiu manejá-lo de modo a tornar suas aulas agradáveis para ela mesma e para seus estudantes. Foi aí que entrou em ação a professora-youtuber de culinária. 

“Resolvi ensiná-los a preparar cookies e aprendi a editar vídeos e ser um pouco youtuber. Em outro momento, quis apresentar a eles uma receita inspirada no universo de Harry Potter. Eles ficaram muito empolgados! Essa foi uma experiência ao vivo, então, com as mãos, eu precisava manejar o celular e os ingredientes, ao mesmo tempo em que tinha que interagir com a turma.”

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Arquivo pessoal

A professora Bruna Daum, de Curitiba (PR), em uma aula de culinária: aprendendo a ser “youtuber” para se relacionar com os estudantes

Além das atividades de culinária, Bruna também apostou nos jogos on-line e até na elaboração de um podcast. Foram maneiras encontradas de aproximação com os alunos: tanto eles tiveram a oportunidades de aprender de maneira diferente quanto ela conseguiu desenvolver outras habilidades pela tecnologia, exigindo-lhe repensar a rotina enquanto professora. 

“Não teve como não me sentir sobrecarregada com a quantidade de novidades ao mesmo tempo”, desabafa.

“Aulas on-line, numa plataforma que exigia metodologias desconhecidas para mim. Isso tudo somado ao medo do próprio vírus ou de perder o emprego a qualquer momento, tendo em vista o cenário desfavorável da economia durante a pandemia. A soma de todos esses fatores gerou um sentimento de impotência. Achei que tudo isso duraria de 15 a 40 dias. Mas, essa realidade segue até hoje.”

O estresse vivido por Bruna e inumeráveis docentes pode ser chamado de tecnoestresse. Ele é uma resposta ao imediatismo para adquirir habilidades e desenvolver uma nova linguagem. Para a pedagoga Evelise, o que pode estar potencializando esse estresse é a limitação imposta sobre as relações mediadas pela tecnologia e a falta das trocas diárias presenciais entre alunos e colegas de trabalho. 

“O professor é um ser relacional e sua ação é voltada para o outro. É nas relações que a gente acerta o ritmo da prática educacional”, diz.

A professora Bruna afirma que, para ela, o primeiro passo para lidar com as novas demandas foi sair da negação e aceitar a situação presente, buscando outras formas de dar aulas, mas também de se relacionar. 

Professor e saúde mental: um tema antigo

Mesmo antes de a pandemia se instalar no nosso cotidiano, os docentes já eram as pessoas mais propensas à Síndrome de Burnout, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho (OIT). Essa síndrome é caracterizada por uma sensação de esgotamento e sentimentos negativos sobre a rotina laboral. Conforme definição apresentada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), “a Síndrome de Burnout é resultante de um estresse crônico no trabalho que não foi administrado com êxito”. 

Em um levantamento realizado em 2018 pelo grupo Estudos e Pesquisa em Promoção e Educação em Saúde, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa – RS), com professores da rede pública de ensino de Uruguaiana (RS), identificou-se um índice de 79,8% de docentes com algum sintoma indicativo do problema. A pesquisadora Susane Graup, integrante do grupo, comenta que um dos fatores é o elevado número de turmas atribuídas a cada professor, delegando-lhes a responsabilidade de manejar muitas emoções e conflitos.

No entanto, simplesmente reduzir o número de turmas não aparentou ser uma solução. “Acreditávamos que quem tinha mais carga horária na escola teria maior predisposição à síndrome, mas não. Como a carga horária está relacionada com a renda, quem tinha menos carga horária de trabalho também era quem estava mais predisposto. Com menos aulas, os professores recebem menos”, constata Susane, alertando para a necessidade da escuta e valorização dos professores para a construção de soluções reais frente ao estresse. 

Cuidar-se e cuidar de quem cuida

Nesse contexto de um ano de  pandemia, em que ainda se vive a incerteza sobre métodos de ensino híbrido e o número elevado de contaminações pela covid-19 – inclusive entre estudantes e professores com o retorno às aulas presenciais em algumas cidades –, um olhar atento ao autocuidado destas pessoas que ensinam e cuidam de crianças e jovens é fundamental. 

Para a doutora em Educação Ana Tânia Sampaio, ex-secretária de saúde de Natal (RN) e líder do grupo de pesquisa Corporeidade, Transdisciplinaridade, Integralidade, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), uma boa definição de autocuidado é a busca pela reconexão consigo e com os outros seres vivos no meio em que se está inserido. 

Ela, estudiosa do termo “humanescência”, definido pela “expansão das essências humanas”, aponta que a prática do autocuidado pressupõe o autoconhecimento. De acordo com Ana Tânia, é só quando se conhece as suas próprias fragilidades que se consegue impor limites e fazer negociações para se preservar emocionalmente e psicologicamente. E, para o autoconhecimento, é preciso repensar o uso do próprio tempo.

É preciso tempo para tudo…

Algumas práticas de autocuidado são tão simples, mas precisam ser lembradas e incentivadas, ainda mais neste momento pandêmico. A pesquisadora Ana Tânia Sampaio (UFRN) incentiva o autocuidado em práticas como: 

  • tempo para uma boa noite de sono
  • tempo para acordar com calma
  • tempo para meditar e cultivar a espiritualidade
  • tempo para fazer refeições sem olhar o celular
  • tempo para pausas ao longo do dia
  • tempo para movimentar o corpo, sair da mesma posição

As práticas listadas não são novidades, mas a questão é: os professores têm tempo e condições para isso? Para a pesquisadora Susane, muitas vezes, a pessoa que está vivendo um esgotamento ou necessitando praticar o autocuidado não se percebe nessa situação. “É aí que precisamos intervir. Por isso, a institucionalização do autocuidado também é importante.”

Ana Tânia aponta para a importância de uma política pública de saúde, que compreende o ser humano de modo integral. A partir de sua tese de doutorado, ela sugere a eficácia de ateliês “humanescentes”, que são encontros guiados com atividades lúdicas em grupo, em que os professores podem expor suas necessidades e sentimentos. “O autocuidado pode ser aprendido e praticado no coletivo”, afirma. Ela sugere também que esses ateliês possam ser ofertados pelo próprio Sistema Único de Saúde, integrados à rotina da escola.

Indicando a importância das formações continuadas, Susane sinaliza que esses encontros poderiam ser mais práticas e menos teóricas. “O professor não precisa de mais informação. Ele já sabe que precisa se alimentar melhor, mas está sendo oferecido a ele condições para isso?”, questiona.

“O professor precisa de espaço para colocar em prática o autocuidado”

Com esperança, Susane vislumbra que formações continuadas elaboradas a partir das necessidades reais de cada contexto, pautadas no protagonismo do professor e utilizando-se de metodologias ativas, por exemplo, seriam um bom começo. “Fala-se tanto que o professor deve inovar com seus estudantes. Isso deve ser aplicado para ele também, oportunizando espaços para que o professor também possa aprender de forma criativa, vivencial e prática.” 

Para continuar essa reflexão, confira o bate-papo “Acolhimento – escuta, trabalho interssetorial e rede de proteção social”, um dos temas debatidos no evento “No Chão da Escola”, realizado pelo Instituto Alana, em janeiro deste ano.

 

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