Pedir inúmeras vezes por um determinado filme, livro, música ou roupa é um comportamento saudável e necessário para o desenvolvimento infantil
A fase em que a criança tem o hábito da repetição é saudável e necessária para o seu desenvolvimento emocional e intelectual. É durante esse período que ela aprende sobre rotina, afeição, frustração, a fazer combinados, sente-se segura e consolida aprendizados.
A criança vestida de princesa sabe todas as cenas, falas e músicas do filme. Ela já o assistiu dezenas de vezes. Já a outra tem certeza de que está pronta para salvar o mundo quando usa a fantasia de super-herói, por isso mesmo veste-a dia após dia. E quando a roupa é lavada é um chororô. Há também os que, mesmo não tendo sido alfabetizados, sabem de cor tudo o que está escrito nas páginas de seu livro favorito, aquele que é lido rigorosamente todas as noites. E não ouse pular nenhum trechinho sequer, eles apontarão a parte faltante. Existe um papel da repetição para o crescimento da criança?
Por trás de todos esses costumes frequentes, existem não apenas pais e cuidadores que podem estar cansados de consumir, ainda que indiretamente, o mesmo conteúdo diariamente e, por vezes, mais de uma vez ao longo do dia. Mas principalmente crianças que estão conhecendo o mundo e se desenvolvendo intelectual e emocionalmente através dos comportamentos revividos.
Cristiane de Oliveira Coelho, professora de ensino infantil em Salvador e arte-educadora especialista em psicopedagogia e alfabetização com práticas em afroperspectivas, afirma que pesquisas apontam a importância da repetição no desenvolvimento infantil, tanto no campo emocional quanto cognitivo. “Emocionalmente, porque as crianças se sentem seguras e a segurança traz conforto, promove autonomia. Intelectualmente, porque a repetição é uma porta aberta para o melhor aprendizado.”
Simone Sudbrack, médica pediatra, professora da Escola de Medicina da PUCRS e participante do Labinpi (Laboratório de Intervenção Precoce na Infância), concorda. Ela ressalta que a atitude repetida consolida o que a criança aprendeu, tanto na escola quanto na vida, por meio de brincadeiras, filmes, vídeos e até mesmo escolhendo qual roupa usar. É com essas ações que a criança compreende alguns sentimentos, como afeição ou frustração, e a complexidade das relações.
A ideia de que a criança, ao reproduzir sempre o mesmo costume, não se abre a experimentar algo novo em sua vida pode ser equivocada. “Ela quer sempre assistir ao mesmo filme, porque, na primeira vez, presta atenção nas cores. Na segunda, nos personagens. E só depois começa a entender a história do filme, a compreender melhor o que foi assistido”, detalha Simone.
Mas caso os pais queiram ter certeza de que os filhos estejam expandindo seus universos, é possível conversar com um pediatra. Ou, como sugere Cristiane, apresentar novos estímulos, experiências e possibilidades com base no interesse da criança.
Se ela está em um momento de querer fazer piqueniques, por exemplo, que o passatempo seja realizado em diferentes cômodos da casa ou em um parque. Assim, ela amplia o seu repertório sem sair do assunto que a atrai. Se o foco é um livro ou um filme, há a possibilidade de se tentar brincadeiras que envolvam a história contada ou estimular a criança a inventar narrativas complementares baseadas na temática principal.
Ao realizar uma ação que já conhece, a criança aprende noções de rotina, que são importantes para o seu desenvolvimento. Ao reproduzir a mesma tarefa, ela se sente mais segura e confortável. Afinal, está fazendo algo que, antecipadamente, já sabe como funciona. Segundo Simone:
“Assim como os adultos, as crianças se sentem mais confortáveis ao realizar atividades que já conhecem”
Crianças buscam estabilidade através da repetição, já que o desconhecido pode gerar angústia e ansiedade. “A previsibilidade causa uma sensação de segurança nas crianças diante dos fatos e atividades do cotidiano. Ouvir a mesma história várias vezes, insistir em algumas brincadeiras e assistir ao mesmo desenho evita a sensação de insegurança diante do novo”, destaca Cristiane.
Outro motivo pelo qual esse hábito infantil ocorre é a busca por prazer e afeto. Se a criança teve uma experiência positiva ao brincar ou ouvir uma música, ela busca resgatar esse sentimento de felicidade todas as vezes em que reproduzir o passatempo. Ela não vai querer reviver uma sensação negativa, como um filme triste ou a fantasia de um vilão.
A escola é, por si só, um espaço onde os procedimentos se repetem. Reproduzem-se cotidianamente a rotina, os horários, as atividades desenvolvidas dentro e fora da sala de aula, os exercícios e as interações. O que é aprendido no ambiente escolar é reforçado na lição de casa.
O conhecimento adquirido é consolidado através da replicação do que foi visto na escola. Cristiane, inclusive, considera que essa prática “é uma grande aliada no processo de desenvolvimento infantil, porque é através desse processo que ocorre a memorização e, consequentemente, o aprendizado.”
“Entre a repetição e a aprendizagem temos a memorização”
A professora Maria de Fátima Alves, da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, em um artigo intitulado “Da repetição para a aprendizagem“, complementa essa ideia. Ela assegura que, ao praticar diversas vezes durante o processo de aprendizagem, o estudante estabelece uma relação de sentido entre o que ele já sabe previamente e o que está sendo apresentado de inédito. É como se, a cada repetição, a criança acrescentasse camadas extras que ampliam o seu conhecimento.
Quando uma criança escolhe usar frequentemente a mesma roupa, ela também está aprendendo sobre autonomia e independência. No entanto, não é sempre recomendável deixar a criança fazer suas próprias escolhas. Nem todas as ocasiões serão propícias para o uso de fantasias ou para a realização de alguma prática frequente da criança.
Nessas situações, o indicado é que pais e filhos estabeleçam combinados antecipadamente. No caso das fantasias, por exemplo, Simone aconselha explicar que aquele não é o momento de usá-la e oferecer duas opções de vestimentas adequadas para que a criança faça uma escolha. Assim, a ideia de autonomia é incentivada, mesmo não sendo a roupa que a criança gostaria de usar cotidianamente.
O mesmo pode ser feito com os demais comportamentos repetitivos. Não é recomendado proibi-los, já que essa é uma fase que tende a passar naturalmente, mas é possível estabelecer regras de horários ou duração em que ocorrem.
“Tudo pode ser melhorado com combinados entre pais e filhos, para deixar a criança mais segura. Os pais podem combinar que daqui a 30 minutos a família vai sair ou que a criança vai ver seu filme, mas depois fará outra atividade. E tudo bem se a criança fizer birra, se chorar, faz parte. Ela está aprendendo a lidar com as frustrações nessa idade”, explica Simone.
É esperado que até os quatro ou cinco anos, a criança tenha comportamentos repetitivos, e isso é saudável para o seu desenvolvimento. No entanto, mesmo nesse período, tanto pais quanto professores precisam observar de que maneira esse costume é reproduzido.
Deve-se ponderar se, para a criança, o hábito frequente deixou de gerar prazer ou novos aprendizados e se transformou em um ritual que não pode ser mudado de forma alguma. “Se a criança procura repetir uma atitude sem prazer, de maneira ritualística, como um maneirismo, isso fala mais a favor de algum problema ou transtorno”, alerta Simone.
Outra conduta que demanda atenção é quando a criança começa a reproduzir sons, falas, sílabas e frases mecanicamente e fora de contextos. Em ambos os casos, o indicado é que a criança seja examinada por um pediatra para que se investigue as causas desses comportamentos.
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