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Quem ainda quer ser professor?

Uma mulher branca de blusa azul brinca com duas crianças, uma menina de tranças e blusa xadrez, e outra menina de camiseta azul. Todos usam avental.

“Eu gosto de ensinar”, diz Floriana, 5, com um caderno na mão, fingindo escrever. Ela se inspira na professora, por quem tem grande admiração. Mas a imitação tem deixado de favorecer o sonho de ser professor, que aparece cada vez com menos frequência entre as crianças.

“Vender picolé”, ser “mulher maravilha”, “trabalhar na academia” ou ser “engenheiro, porque usa escavadeira e caminhão basculante” são os sonhos de crianças de três anos do CMEI Cecília Meireles, em Vitória (ES). Um pouco mais velhas, crianças de cinco e seis anos da EMEI Gabriel Prestes, em São Paulo (SP), listam profissões como “doutora de animais”, cabeleireira, policial, bombeiro, cantor, médica e dentista. Isso não reflete necessariamente o que farão no futuro, mas são percepções a partir do que observam e se interessam no cotidiano.

Edna Conceição Monteiro, professora na EMEI Gabriel Prestes, acredita que o desencantamento com a profissão reflete a desmotivação dos professores. Ou seja, como inspirar se muitas vezes falta alegria em sala de aula. Mas não dá para culpá-los, diz. “Além da questão salarial e de doenças que afetam a saúde mental, o professor deixou de ter status.”

Já para Priscilla Santos, da CMEI Cecília Meireles, essa falta de reconhecimento impacta a opinião das famílias, que deixam de ver o professor com um papel importante e poucos desejam isso para seus filhos. “Sabendo das condições de trabalho que os professores enfrentam, acabam os influenciando a escolher outras carreiras.”

Edna Monteiro é professora e atua com uma turma de 6 anos, na EMEI Gabriel Prestes, em São Paulo. Ela se diz feliz com a profissão, mas não julga o desencantamento geral. “O professor deixou de ter status.”

Uma projeção divulgada em 2022 pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) indica que o país pode ter um déficit de 235 mil docentes em 2040. Pensando nisso, o governo federal criou o programa “Mais professores”, que busca incentivar a carreira docente, evitando esse “apagão”.

Uma questão de espelho

“O problema é que nem os professores se admiram. Eles têm uma autoestima baixíssima”, diz Patricia Auerbach, autora de livros infantis e fundadora da Redelê, uma comunidade de suporte de aprendizado entre educadores. Ela conta que muitos que chegam para as rodas de conversa e clubes de leitura possuem formação básica frágil, sem fluência leitora e em matemática. Isso porque, geralmente, quem decide ser professor é o “pior aluno da classe”, afirma. “Cansei de ouvir dos professores ‘esse negócio de livro não é pra mim’. E eles dizem isso, porque eles têm um histórico de fracasso grande.”

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ayrton Senna em 2019 revelou que os estudantes que desejam se tornar professores têm desempenho acadêmico pior do que a média dos demais futuros profissionais. Já na Finlândia, que alcançou o primeiro lugar no Pisa, principal teste internacional da qualidade da educação, entre 2000 e 2010, aconteceu o contrário. “Na época, pesquisadores identificaram que 25% dos professores estavam entre os melhores alunos do ensino médio”, explica Claudia Costin, especialista em educação e ex-diretora global de educação do Banco Mundial.

Patricia vê na rotina de acesso às telas e na influência das redes sociais possíveis explicações para a mudança dos sonhos de carreira. “Quando trabalhei em Paraisópolis, como professora de adolescentes que não tinham concluído o processo de alfabetização, perguntava a eles ‘se você pudesse escolher qualquer coisa para fazer na sua vida, o que faria?’. E eles diziam que queriam ser famosos.” Para ela, isso está relacionado aos algoritmos que definem quem serão os influenciadores mais admirados e que vão então ajudar os adolescentes a moldar suas percepções sobre o mundo e sobre si.

Dados do Censo mostram que, em 2023, 67% dos estudantes de pedagogia e licenciaturas estudavam a distância. Essa ainda é uma lacuna na formação. “Ao mesmo tempo, estamos vendo boas faculdades de pedagogia fechando por falta de aluno. A pedagogia virou um curso para pessoas que querem fazer faculdade, mas não conseguem entrar em outro curso”, avalia Patricia.

Desafios da carreira docente

Para Claudia Costin, ex-secretária de educação do Rio de Janeiro, não é surpresa o “apagão de professores” num país onde muitos deles acreditam não ser dignos de ter orgulho do que fazem de incrível. Segundo ela, as crianças mais novas até pensam ainda em ser professoras, especialmente as que têm uma relação de afeto com a professora. Mas os adolescentes deixam de cogitar a docência.

“Toda vez que eu visitava escolas no Rio de Janeiro, perguntava para as crianças o que elas queriam fazer quando crescessem. Nos anos iniciais e nas regiões mais humildes era comum ouvir que queriam ser professores”, relata. Para ela, a escolha tem relação com o carinho, o estilo de ensinar dos professores da educação infantil e com a autoridade que eles possuem.

Dados do questionário da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável pela aplicação do Pisa, mostram que, entre os brasileiros de 15 anos que fazem o exame, só 2,4% respondem que querem ser professores quando questionados sobre sua profissão dos sonhos.

“Os adolescentes e as crianças não estão enganados em dizer que a profissão não é atrativa. A começar pelo salário. Se você quer atrair, é evidente que você tem que pagar melhores salários”, diz Claudia, ao lembrar que o Brasil investe por aluno cerca de um terço do que os países com bons sistemas educacionais fazem.

Outro desafio comum à carreira é a necessidade de atuar em mais de uma escola, às vezes até em municípios diferentes, para completar a renda e a carga horária de 40 horas semanais. “Com o professor dando aulas em três, quatro escolas, com 120 alunos, como criar uma relação humana com eles?”

Ainda assim, ela defende que a profissão do futuro é o professor. E que, apesar das barreiras, grande parte deles busca caminhos para formação complementar, muitas vezes com investimentos do próprio bolso.

“Todo mundo tem um professor de referência. Ele tem 40 chances, todos os dias, de mudar o caminho de uma criança para o resto da vida. E, às vezes, basta um gesto ou uma fala.”

Virada de chave

Na infância, Marcos Ferrari era o famoso “aluno problemático”, que discutia e brigava com outros colegas. “Era bem desafiador, porque eu não tinha vontade de nada, não queria estudar”, diz. Foi a professora Ana Lúcia Lopes Viana, que trabalhava em uma oficina de contraturno, estimulando a fluência leitora dos alunos, que enxergou seu potencial. Persistente, ela percebeu que ele era comunicativo, tinha autoconfiança e mostrava habilidades de liderança.

Além disso, Ana lhe deu seu primeiro livro: “Alice no País das Maravilhas”. “Foi uma tortura ler aquele livro. Demorou muito para eu pegar gosto. E leitura é gosto.” Ele conta como Ana insistia e perguntava sobre os capítulos, em que página estava, o que aconteceu na história. “Depois disso, percebi então que eu adorava contos e poesias.”

Professores são os principais influenciadores do gosto pela leitura. De acordo com o estudo Retratos da Leitura no Brasil (2024), 53% dos leitores em processo de alfabetização leram o último livro por indicação de um professor, superando a função dos pais nessa missão. “No entanto, a pesquisa mostra que o número de professores leitores se igualou ao restante da população, ou seja, é baixíssimo”, diz Patricia Auerbach. É a primeira vez que essa série histórica apresenta números tão desanimadores: em quatro anos, o país perdeu quase sete milhões de leitores.

Essa foi a grande virada de chave da sua vida. Marcos então se graduou em pedagogia e começou sua jornada na educação pública. Atualmente, é coordenador da EMEB Profª Celda Mello Oliveira, uma escola com 400 alunos, em Pereira Barreto, interior de São Paulo. Entusiasmado com a profissão, ele agora usa sua experiência para também promover projetos de leitura e educação midiática, por exemplo. Isso porque sabe que quanto maior o tempo de qualidade e o vínculo das crianças com seus educadores, maiores as chances de transformação.

“O professor continua sendo a referência que o aluno tem na maior parte do tempo. Criança percebe quando ele está triste, bravo, animado. Por isso, a pergunta que sempre faço é: que tipo de referência você quer ser pro seu aluno?”

Orgulho de ser professor

Se hoje crianças e adolescentes não sonham mais com a carreira docente, antes era comum “brincar de escolinha”, como Cristiane Lopes fazia durante a infância. “Eu brincava de dar aula, passava lição no quadro de giz para meus vizinhos e irmãos e depois corrigia”, recorda. Segundo conta, Cristiane sempre ouviu a mãe dizer que tinha vocação para lecionar, já que, mesmo nesses momentos de brincadeira, conseguia identificar dificuldades e ajudar as crianças a aprender.

No Pará, Cristiane Lopes brincava de ser professora desde criança. Por fim, escolheu a docência e hoje leciona na rede municipal de Concórdia do Pará: “Me sinto realizada ao ajudar um aluno a aprender a ler.”

Cristiane diz que a escolha pela docência foi influência da avó, uma professora “muito respeitada e apaixonada pela profissão”. Assim, após o curso de magistério e a faculdade, foi aprovada no concurso da rede municipal de Concórdia do Pará (PA) e hoje leciona para uma turma de 5º ano.

O amor pela docência, herança da família, também contagiou a filha de Cristiane que está se formando em Letras e já dá aulas. “Deixei ela bem à vontade para escolher a profissão que quisesse, mas disse que tinha de ser algo que ela goste, porque trabalhar sem gostar não faz ninguém ser um bom profissional.”

Apesar da desvalorização e dos desafios, Cristiane nunca pensou em outra profissão. “Procuro dar o meu melhor todos os dias, fazer minha parte”, diz.

“Me sinto feliz, realizada, quando ajudo um aluno a aprender a ler. Quando ele abraça, dá um sorriso ou escreve uma cartinha. Recebo umas dez toda semana.”

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