Estes seres estranhos, dotados de amor gigantesco, nos apontam as feridas que imaginávamos invisíveis aos olhos infantis
Quando nossos filhos nos criticam, quando somos chamados à mudança para acompanhar suas trajetórias, eles são mais do que desafiadores. Confira a reflexão do colunista Alexandre Coimbra Amaral.
A noite recebeu a incumbência de ser a hora do filho escutar histórias – e, no fluxo das páginas coloridas, a intimidade se ajeita mais ainda ao cotidiano apressado. A cama pode ficar apertada, enquanto o coração se avoluma na leveza. O vento chega no rosto, fluido e lépido.
As fadas ou bruxas vão entrando no quarto sem assustar, porque afinal uma ou um adulto agarradinho é a mais fina fonte de corações tranquilos. A poesia, aqui, é mais do que a palavra impressa no livro; é a cena da fusão com a criança em si.
Pois entre uma exclamação e outra, enquanto o pequeno arregala a têmpora, ele larga a frase ácida, em tom quase blasê: “Você tem errado muito comigo. Às vezes eu tenho muita raiva de você”.
Um breve silêncio sem que a respiração adulta seja sentida. Espanto, culpa, medo, raiva, perguntas em aberto. Por que comigo, que faço o meu melhor? O que será que ele chamou de erro? Que partes de mim já terão se transformado em decepção aos olhos dele?
Alheio a todas as interrogações, o filho corta o silêncio desconcertante com um “termine a história!”, seguido de um abraço. E agora? O abraço é culpa dele ter me criticado? É a prova de que ele me ama mesmo assim? Meus erros já foram perdoados?
A noite caminha com suas horas escuras, o filho ronca lá longe. Aqui no quarto, qualquer de nós que vivemos cenas assim passamos a experimentar mais um capítulo da angústia de ter um filho pra criar. Muitas perguntas são meras projeções, e colocamos nos olhos dele o medo de não sermos aceitos em nossas imperfeições.
Ele nos retira da almofada quente do amor certo e definitivo. E nos convida a viver um amor infinito porque impermanente, seguro porque mutante.
Eles sabem que têm o nosso amor. Por isso, têm a capacidade e a ousadia de criticar-nos na antepenúltima página da hora de dormir.
Os filhos nos desafiam, entre uma fala e um abraço. Mas não são desafios destrutivos; muitas vezes eles nem sabem o poder que têm para fazer águas paradas em nossas almas se revirarem. Eles não sabem, mas são responsáveis por perguntas existenciais sem resposta. É desconfortável sustentar perguntas difíceis, mas eles podem nos fazer agir durante muito tempo com o cuidado que não costumamos ter quando estamos dotados de pura certeza.
Os filhos são aquela surpresa incessante, mostrando-se inquietos diante de um mundo que nem nós, adultos, conseguimos entender perfeitamente.
Quando eles nos criticam, quando somos chamados à mudança para acompanhar suas trajetórias, eles são mais do que desafiadores. A angústia que eles nos provocam é um ato generoso. Simplesmente por amá-los e pelo compromisso em estarmos ao lado deles, viramos outros. E ao sermos outros, nos salvamos. Nossos filhos, todos os dias, nos salvam de nós mesmos.
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