Quando os filhos nos salvam de nós mesmos

Estes seres estranhos, dotados de amor gigantesco, nos apontam as feridas que imaginávamos invisíveis aos olhos infantis

Alexandre Coimbra Amaral Publicado em 10.12.2018

Resumo

Quando nossos filhos nos criticam, quando somos chamados à mudança para acompanhar suas trajetórias, eles são mais do que desafiadores. Confira a reflexão do colunista Alexandre Coimbra Amaral.

A noite recebeu a incumbência de ser a hora do filho escutar histórias – e, no fluxo das páginas coloridas, a intimidade se ajeita mais ainda ao cotidiano apressado. A cama pode ficar apertada, enquanto o coração se avoluma na leveza. O vento chega no rosto, fluido e lépido.

As fadas ou bruxas vão entrando no quarto sem assustar, porque afinal uma ou um adulto agarradinho é a mais fina fonte de corações tranquilos. A poesia, aqui, é mais do que a palavra impressa no livro; é a cena da fusão com a criança em si.

Pois entre uma exclamação e outra, enquanto o pequeno arregala a têmpora, ele larga a frase ácida, em tom quase blasê: “Você tem errado muito comigo. Às vezes eu tenho muita raiva de você”.

Um breve silêncio sem que a respiração adulta seja sentida. Espanto, culpa, medo, raiva, perguntas em aberto. Por que comigo, que faço o meu melhor? O que será que ele chamou de erro? Que partes de mim já terão se transformado em decepção aos olhos dele?

Alheio a todas as interrogações, o filho corta o silêncio desconcertante com um “termine a história!”, seguido de um abraço. E agora? O abraço é culpa dele ter me criticado? É a prova de que ele me ama mesmo assim? Meus erros já foram perdoados?

A noite caminha com suas horas escuras, o filho ronca lá longe. Aqui no quarto, qualquer de nós que vivemos cenas assim passamos a experimentar mais um capítulo da angústia de ter um filho pra criar. Muitas perguntas são meras projeções, e colocamos nos olhos dele o medo de não sermos aceitos em nossas imperfeições.

Ele nos retira da almofada quente do amor certo e definitivo. E nos convida a viver um amor infinito porque impermanente, seguro porque mutante.

Eles sabem que têm o nosso amor. Por isso, têm a capacidade e a ousadia de criticar-nos na antepenúltima página da hora de dormir.

Os filhos nos desafiam, entre uma fala e um abraço. Mas não são desafios destrutivos; muitas vezes eles nem sabem o poder que têm para fazer águas paradas em nossas almas se revirarem. Eles não sabem, mas são responsáveis por perguntas existenciais sem resposta. É desconfortável sustentar perguntas difíceis, mas eles podem nos fazer agir durante muito tempo com o cuidado que não costumamos ter quando estamos dotados de pura certeza.

Os filhos são aquela surpresa incessante, mostrando-se inquietos diante de um mundo que nem nós, adultos, conseguimos entender perfeitamente.

Quando eles nos criticam, quando somos chamados à mudança para acompanhar suas trajetórias, eles são mais do que desafiadores. A angústia que eles nos provocam é um ato generoso. Simplesmente por amá-los e pelo compromisso em estarmos ao lado deles, viramos outros. E ao sermos outros, nos salvamos. Nossos filhos, todos os dias, nos salvam de nós mesmos.

Leia também

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS