Uma cidade acolhedora à infância acontece quando a criança não vê a cidade como um mero caminho entre sua casa e a escola
A cultura cria representatividade, aprimora o senso de empatia e coloca à disposição das crianças ferramentas potentes para conhecer o mundo e a si mesma.
“A arte faz algo diferente de conduzir a uma experiência. Ela constitui uma experiência. E o faz transcendendo os significados acumulados e revelando novas possibilidades”
A afirmação é John Dewey, filósofo e pedagogo norte-americano, considerado um dos expoentes da escola progressista, e remete ao papel da arte como transformação, tanto do ponto de vista individual quanto social.
Porém, quando falamos de crianças, o que significa, na prática, garantir que o direito à cultura – que consta inclusive no Estado da Criança e do Adolescente – seja respeitado? Questões como acessibilidade e democratização da cultura são indissociáveis desse questionamento, mas como a curadoria que fazemos enquanto mediadores interfere na visão de mundo dos pequenos?
Incentivar a relação das crianças com a cultura oferece um sem-número de ganhos quase invisíveis, mas que refletem diretamente no modo como vão se comportar diante do mundo, e que vão muito além da experiência em si. A cultura cria representatividade, aprimora o senso de empatia e coloca à disposição das crianças ferramentas potentes de conhecimento sobre identidade e História.
Por isso, nesta primeira matéria da Campanha #Presentesqueficam, que o Lunetas preparou para celebrar o Dia das Crianças, o tema é a interação dos pequenos com a cultura e suas múltiplas possibilidades.
Afinal, o que ganham as crianças quando têm contato com a cultura? Nem só a literatura, a música, o cinema e as artes plásticas podem simbolizar uma experiência cultural, mas também a própria relação da criança com a cidade e seu patrimônio imaterial. Tudo isso faz com que ela conheça e se aproprie da realidade que a rodeia, e, assim, possa transformá-la.
Um passeio pela rua com as crianças, por exemplo, já configura uma interação cultural. Caminhar pela cidade e perceber como ela está preparada (ou não) para receber e acolher as crianças é entender a cada passo como se dá, na prática, o conceito de “cidade educadora”. Quem não se lembra do vídeo do menino Tim Tim, que viralizou nas redes sociais?
Muito além de ser uma fofura para ser compartilhada, o vídeo alerta para uma questão importante quando pensamos na experiência que as cidades oferecem às crianças. A compreensão do conceito de “cidade educadora” passa pela percepção de que se todo espaço público é um ambiente educativo em potencial, é preciso refletir sobre quais elementos naquele determinado espaço foram pensados especificamente para acolher a criança.
Quando se trata de um museu, por exemplo, mais do que atentar só para a qualidade da sua programação cultural infantil – o que também é importante, claro – é reparar se o local é seguro, acolhedor, se oferece estrutura adequada para amamentação, se os banheiros masculinos também oferecem trocadores para que os pais possam exercer a responsabilidade da paternidade ativa, entre muitos outros fatores.
Não por acaso, a protagonismo infantil tem sido discutido até mesmo do ponto de vista do planejamento urbano, com a defesa de os pequenos devem participar ativamente da elaboração do plano diretor das cidades, por exemplo.
“Uma cidade acolhedora à infância acontece quando a criança não vê a cidade como um mero caminho entre sua casa e sua escola, mas como um ator que lhe convida a subir ao palco”
“Arriscamos dizer que falta pensar um urbanismo mais lúdico e acolhedor. O urbanismo pensado para as pessoas, em que nos integramos a ele, nos divertimos com ele, em que voltaremos a sentir a cidade em nossa escala humana”, afirmam, em entrevista ao Lunetas, Bianca Antunes e Simone Sayegh, autoras do livro Casacadabra, sobre arquitetura para crianças.
“A imagem da criança é o reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos. Mas este reflexo não é ilusão; tende, ao contrário, a tornar-se realidade. Com efeito, a representação da criança assim elaborada transforma-se, pouco a pouco, em realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e à sociedade, em função de suas necessidades essenciais.” – Regina Zilberman
A fala da professora, presente no livro “O papel da literatura na escola”, faz pensar sobre a responsabilidade de um pai, mãe ou educador ao escolher as referências que estarão à disposição das crianças. Porém, antes de querer que eles assumam determinadas preferências, é preciso pensar se elas fazem parte das atitudes do adulto, e não só de seu discurso. Se a cultura não faz parte das preferências de quem incentiva, as crianças dificilmente vão absorver aquele.
Os adultos são os grandes mediadores da vida da criança. O cuidado com a qualidade dos passeios, livros e filmes que escolhemos – para nós e para eles – tem uma influência direta sobre quais paradigmas estamos acionando em seu imaginário. Por isso, a diversidade cultural, a pluralidade de discursos e o contato com múltiplas realidades devem estar contemplados nas escolhas do adulto.
No artigo “O adulto no mundo da literatura infantojuvenil”, o escritor Federico Ivanier usa o exemplo da literatura como mediadora do novo, mas o argumento pode ser estendido a outras as formas de expressões artísticas. Ele diz que a arte se preocupa mais em apresentar o desconhecido do que circular pelo convencional, e por isso tem um grande poder de preparar as crianças para os obstáculos da vida. “Geralmente, ela nos coloca em lugares pouco confortáveis, costuma provocar angustia, propor uma reflexão sobre o mundo desde alguém frágil, e mostrar o que nós não gostamos de ver. Potencialmente, gera incômodo desde todos os lugares possíveis: a sexualidade, a violência e a morte”.
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#Presentesqueficam
Estamos celebrando o Dia das Crianças de um jeito diferente com a campanha #presentesqueficam. Mais importante do que presentear os pequenos com brinquedos prontos e coisas materiais, é oferecer as condições e o ambiente necessários para desenvolvimento pleno da infância: é o contato com a natureza, o cultivo das relações familiares, o olhar para o outro, a transmissão do cuidado com o espaço público. #Presentesqueficam são aqueles que deixam a criança crescer e respeitam o seu direito de ser criança todos os dias do ano. Afinal, o Dia das Crianças não é só uma data no calendário.