Denúncias enviadas à Safernet cresceram 9% em 2022, refletindo um aumento identificado no mundo inteiro
O consumo e armazenamento de imagens de crianças e adolescentes em situação de cunho sexual é crime, previsto na lei brasileira. Denúncias crescem, mas medidas ainda não são efetivas.
A cada dois minutos uma página na web mostra uma criança sendo abusada. O dado é de 2021, o pior ano em número de casos no ambiente digital, segundo relatório da Internet Watch Foundation. Seguindo essa tendência, entre janeiro e outubro de 2022, foram 96 mil denúncias sobre conteúdos relacionados à pornografia infantil recebidas pelo canal oficial da ONG Safernet, 9% maior que em 2021, quando foram mais de 101 mil (o total do ano de 2022 será divulgado em fevereiro de 2023, durante o Dia Mundial da Internet Segura).
Ao mesmo tempo em que as denúncias sobre pornografia infantil aumentaram, dois casos de repercussão nacional marcaram 2022: um ator brasileiro foi preso por suspeita de armazenar imagens de cunho sexual envolvendo menores de idade no telefone e no computador pessoal, e, ao relembrar o caso de um influenciador investigado por guardar imagens de abuso sexual contra crianças, um youtuber se posicionou a favor de quem consome pornografia infantil.
Desde 2008, no Brasil, qualquer situação “de constrangimento de crianças e adolescentes para a prática de atos libidinosos em qualquer meio de comunicação” passou a ser considerada crime de violência sexual pela Lei 11.829 e, em 2020, a Lei 9.970 instituiu o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Para a Safernet, “o uso da expressão pornografia pressupõe o consumo passivo do conteúdo, o que diminui a percepção da gravidade da posse e distribuição desse conteúdo”. A organização afirma que quem consome esse tipo de imagem também é cúmplice do abuso e da exploração sexual infantil.
Apesar destes avanços legais, o Brasil continua longe de diminuir os crimes sexuais contra a infância. Apenas em 2021, o Ministério da Saúde documentou 47 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Há três anos, o número de denúncias de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes segue aumentando, alavancado sobretudo pelas ações no ambiente digital.
A exploração e o abuso sexual infantil são considerados uma das maiores ameaças à infância atual. Por isso, em um mundo de crianças e adolescentes cada vez mais conectados, em que os espaços virtuais também são usados para educação e sociabilização, é imprescindível saber como protegê-los dessa prática.
De acordo com a diretora da Safernet Juliana Cunha, alguns fatores podem ter contribuído para o aumento das denúncias de pornografia infantil relacionadas à internet. Um deles é a popularização dos smartphones e internet entre a população na última década. Outra questão foi a pandemia, quando “mais pessoas passaram a usar a internet, em razão das restrições de contato, do ensino híbrido, e acabaram expostas ao conteúdo”, explica. A terceira questão é comportamental, hoje temos mais crianças e sobretudo adolescentes gerando os seus próprios conteúdos, inclusive de conotação sexual.
“É importante dizer que as denúncias também aumentam porque a própria sociedade vai tendo mais consciência de que esse tipo de uso da imagem da criança é crime e, portanto, deve ser denunciado”, complementa a professora da Escola de Comunicação, Mídia e Informação, da Fundação Getúlio Vargas, e pesquisadora de mídia e infância Renata Tomaz.
Segundo Cunha, desde 2005, quando a Safernet começou a pesquisar os crimes cometidos na internet, há uma tendência de mais denúncias relacionadas com conteúdos gerados pelo próprio usuário, ou seja, em que não existe na cena um agressor cometendo a violência. São imagens, por exemplo, de crianças e adolescentes que parecem estar exibindo-se, por vontade própria, para as câmeras.
“Por muitas das imagens a gente pressupõe que possa ter uma pessoa do outro lado da tela, num programa de transmissão de vídeos que, de alguma forma, induz crianças e adolescentes a fazerem o registro”, detalha. Para ela, antes as imagens eram produzidas em contexto de abuso e iam parar na internet, inclusive em páginas da chamada Deep Web, uma área da internet mais difícil de ser acessada.
Na pandemia, também cresceu a publicação de conteúdos para venda, em plataformas como Only Fans ou grupos de Telegram, ainda que algumas mídias sociais impeçam a participação de pessoas com menos de 18 anos. Para a pesquisadora da Safernet, geralmente eles estão atrelados a questões de vulnerabilidade social e formas de ganhar dinheiro.
Para Cunha, há um espectro de práticas que levam à sexualização das crianças, e nem todas são explícitas. Há casos, por exemplo, que são vídeos de crianças brincando, dançando ou praticando esportes publicados por pais ou cuidadores, em contas fechadas, ou que viralizam e podem acabar sendo usados com conotação sexual ao extrapolar a bolha pessoal.
O uso das mídias sociais em ambientes domésticos borra a fronteira entre público e privado. “É difícil lembrar que clicar em publicar é o mesmo que pregar a foto no lado de fora do portão de casa. As pessoas tendem a pensar em seus próprios amigos e familiares como interlocutores, o que as impede de considerar estranhos e predadores que acompanham as fotos de suas crianças”, afirma Tomaz.
Nove em cada dez crianças de 9 a 17 anos navegam na internet, de acordo com a pesquisa Tic Kids Online Brasil 2021, sendo que 32% delas usam a internet para procurar ajuda, falar de emoções ou quando se sentem tristes. Com a pandemia, houve um aumento no acesso, sobretudo na região Nordeste e em áreas rurais. Houve também um aumento de 68% para 78% no número de crianças e adolescentes presentes nas redes sociais.
Tomaz lembra que o ambiente digital se tornou um ambiente de sociabilidade, na medida em que os usuários constroem relações e atribuem a elas sentido. “Assim, esse ambiente conforma práticas – culturais, sociais, políticas, econômicas – por meio das quais há produção de identidade e de subjetividade, mas também de estereótipos e preconceitos”, diz. Por isso, é um espaço onde as crianças podem desenvolver competências e se socializar, produzindo sua existência social, mas também onde podem ser constrangidas e silenciadas.
Portanto, é preciso um esforço coletivo no sentido de educá-las para usar a internet. “Quanto mais as crianças conseguem dominar práticas e processos no digital, maior é o número de seus interlocutores. O ideal é que os pequenos façam um consumo mais crítico das ferramentas, sendo fundamental que (re)aprendam a lição sobre não falar com estranhos. Assim como não podem falar ou interagir com estranhos na rua, também não podem fazê-lo na internet”, acrescenta Tomaz.
Isso significa não mandar fotos, não dizer onde estudam, não fornecer dados de documentos ou financeiros, não aceitar convites para encontros. Esse repertório de atividades “proibidas” precisa ser massivamente promovido pela sociedade, não funciona se apenas as famílias falarem, alertam Cunha e Tomaz. “É preciso ter um diálogo intergeracional, ouvir de forma aberta o que as crianças têm a dizer. Elas vivem em um mundo em que os pais não viveram. E, muitas vezes, acabam tendo medo de contar o que estão consumindo por pensarem que podem ser punidos, que perderão o direito de usar a internet”, acrescenta Cunha.
Nas famílias, além do diálogo, os cuidados podem ser desde borrar uma parte da foto a verificar as configurações de uso das plataformas pelas crianças, prezando pela privacidade. Hoje, algumas mídias como o Instagram já têm mecanismos que permitem aos pais modular e monitorar o acesso dos filhos.
Todo esse trabalho precisa ser acompanhado de atividades que estimulem a habilidade da criança para gerenciar sua vida digital. Nesse sentido, os governos, as plataformas, as ONGs e escolas também têm responsabilidades que se inter-relacionam.
Cunha lembra que essas ações podem ser estabelecidas por políticas públicas, com inclusão da educação sexual nos currículos escolares. Para ela, as plataformas também precisam tornar os mecanismos de proteção mais acessíveis e conhecidos pela sociedade em geral, o que pode ser feito por meio de campanhas de divulgação. Ainda que muitas plataformas já tenham desenvolvido tecnologias de inteligência artificial para detectar conteúdos de cunho sexual e apagá-los, Cunha diz ser necessário um maior preparo das polícias e seus agentes, para responder às denúncias, e agilidade da justiça, para que operações policiais se transformem de fato em condenações.
Denúncias de violência contra a criança, incluindo pornografia infantil, podem ser feitas no site da Safernet, através de números de telefone como o Disque 100 e 180, e também no conselho tutelar e delegacias.
Tomaz lembra que pessoas que trabalham na internet também têm uma responsabilidade atrelada, na medida em que influenciadores participam das tomadas de decisão dos indivíduos – e isso inclui as crianças, porque elas mobilizam seus responsáveis na direção dessas decisões”, lembra.
Outro ponto é fomentar pesquisas sobre o tema, para alertar a população e criar novas soluções para prevenir e impedir esse tipo de crime. Nesse sentido, a Safernet está desenvolvendo, com a participação de crianças e adolescentes, o projeto D.I.S.C.O.V.E.R, por meio da iniciativa Safe Online, do Fundo End Violence. Prevista para o segundo semestre de 2023, a plataforma facilitará o acesso a conteúdos inéditos sobre violência e exploração de crianças e adolescentes na internet, vindos do Canal de Denúncias em Crimes Cibernéticos. “Queremos uma maior segurança on-line para crianças e adolescentes que navegam na internet, em páginas de língua portuguesa”, afirma Manu Ribeiro, gerente de projetos da Safernet.
No mundo, o End Violence mostra que um em cada oito adultos relata ter sofrido abuso quando crianças. A realidade não é muito diferente no Brasil. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que um em cada sete adolescentes já sofreu algum tipo de violência sexual. Os dados do Ministério da Saúde sobre casos ocorridos em 2021 revelam que 84% das vítimas são meninas, sendo 56% delas negras, e, 71% dos casos ocorreram dentro da própria casa das crianças.
Um relatório divulgado em 2021 pelo Unicef, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra ainda que, no Brasil, entre as meninas, os casos são mais comuns na faixa etária de 10 a 14 anos de idade, enquanto entre os meninos as principais vítimas são aqueles que têm de 3 a 9 anos de idade. Em função da gravidade da situação, as Nações Unidas estabeleceram, em 2022, pela primeira vez, o Dia Mundial para a Prevenção e Cura da Exploração, Abuso e Violência Sexual Infantil, marcado em 18 de novembro.
A violência sexual é uma das quatro principais formas de violência contra crianças e adolescentes e significa qualquer ato que atente contra o desenvolvimento sexual da criança e do adolescente, praticado por uma pessoa em situação de poder ou adulto. Ela pode se apresentar de duas formas: o abuso e a exploração.
Para o Unicef, a violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes é uma questão de saúde pública, pois pode provocar danos físicos, emocionais e sociais, o que inclui reações como estresse pós-traumático, distúrbios emocionais, aumento do risco de envolvimento com substâncias entorpecentes, problemas de aprendizado, evasão escolar, automutilação, dificuldades de relacionamento e suicídio.
No Brasil, antes da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, não havia mecanismos de proteção de meninas e meninos contra essas práticas. O artigo 130 do ECA diz que “verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”. Já o artigo 241 protege os pequenos contra a venda e exposição de conteúdos pornográficos envolvendo a sua imagem, o que foi incluído na Lei 9.975/2000.
Fonte: Ministério Público do Pará
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Hoje recomenda-se substituir a expressão “pornografia infantil” por “imagens de abuso e exploração sexual infantil” ou “imagens de abusos contra crianças”, pois entende-se que a pornografia é legalizada e pressupõe a participação livre e voluntária de pessoas maiores de idade, enquanto a questão envolvendo crianças não é consensual.