Pedagogia Griô: uma educação feita de vínculos e ancestralidade

Por que vivemos tão longe uns dos outros, afastados dos saberes orais e das nossas raízes? A Pedagogia Griô, que nasceu na Bahia, quer mudar essa realidade

Renata Penzani Publicado em 17.02.2020
– Imagem de dois meninos de costas sentados no chão da escola. Um dos meninos está com fazendo contas no dedo
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Resumo

Conheça a Pedagogia Griô, criada em Lençóis, na Bahia, para resgatar as tradições orais de transmissão dos saberes. Uma abordagem de aprendizado toda pautada na ancestralidade, na preservação da memória e no cuidado com os vínculos comunitários e afetivos.

Se a poeta goiana Cora Coralina acertou quando disse que “feliz é aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”, a educação tem mais alegria quando se fundamenta na horizontalidade do saber. A Pedagogia Griô, que apresentamos nesta matéria, é a prova viva de que há muita potência nessa visão do que é educar-se.

Na África Ocidental, o griot – ou griô, como o termo se popularizou na língua portuguesa – são aqueles indivíduos capazes de transmitir adiante o conhecimento sobre os costumes, os conhecimentos, os mitos e as histórias dos povos. Metáfora da preservação da História, os griôs perpetuam e ancestralidade a partir da memória, e representam a importância de garantir a continuidade das tradições por meio do saber oral.

Para os africanos, um griô pode ser um poeta, historiador, cantor ou contador de história; ou seja, todo aquele, sendo artista ou não, capaz de difundir através do boca a boca um tipo de saber. Como diria o escritor Guimarães Rosa, “o que lembro, tenho”.

Se pararmos para refletir, não é exagero dizer que todos nós temos pelo menos um griô na família: são eles as matriarcas e os anciãos reconhecidos em seus núcleos de convívio por sua forte conexão com a comunidade; pessoas capazes de contar histórias com letra minúscula que narram a história com letra maiúscula a partir de um ponto de vista humano, comunitário e conectado com os vínculos sociais.

Diante de tudo isso, o que fica é: que relação conseguimos com essa maneira de enxergar a transmissão de conhecimento no mundo de hoje? Você, leitor adulto, ou a sua criança tem contato com pessoas como essas? Provavelmente, sim. No entanto, que papel é dado a ela e aos seus saberes nas tomadas de decisão, desde e cotidiano mais banal até a formulação de políticas públicas orientadas para o desenvolvimento da cultura material e imaterial. Sobretudo nas grandes cidades, o ritmo acelerado do cotidiano urbano nos afasta cada vez mais do convívio familiar estreito, e afrouxa os laços afetivos com os nossos griôs de cada dia.

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Reprodução/Grãos de Luz e Griô

A roda como símbolo da horizontalidade dos saberes e dos vínculos afetivos durante a troca de conhecimento

A escola como cola dos laços comunitários quebrados

Diversos pensadores contemporâneos – como o xamã yanomami Davi Kopenawa Yanomam, no livro “A queda do céu”, o filósofo polonês Zygmunt Bauman, e também o filósofo coreano Byung-chul Han em “A agonia do Eros” –  alertam para os efeitos nocivos dessa distância da existência coletiva em termos não apenas civilizatórios, mas também afetivos e emocionais. Um deles é o historiador indígena Ailton Krenak. Em uma matéria do Lunetas publicada em 2019, em que divulgamos o livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (se ainda não leu, recomendamos fortemente), o pensador chama a atenção para uma habilidade perniciosa dos nossos tempos, que é a de “criar ausências”.

“Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida”, afirma Krenak. “Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos.”

É aí que entra a escola como espaço de formação do indivíduo, e sua responsabilidade de cuidar não só do que já temos concretamente, mas também e principalmente daquilo que periga se perder. Afinal, a educação é um processo relacional, e se dá em todos os espaços de convívio de um sujeito. “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, defendia Paulo Freire, em uma de suas citações mais difundidas.

Tais pensamentos estão ancorados na ideia de descolonização do currículo escolar – quem quiser se aprofundar no tema, o Lunetas publicou uma reportagem sobre, clique aqui para ler. Considerando que a educação como a conhecemos hoje ainda é majoritariamente narrada a partir de um ponto de vista científico europeu, é necessário ultrapassar essa perspectiva e explorar múltiplas linguagens para oferecer uma educação verdadeiramente democrática e atenta à diversidade humana, social, histórica e cultural.

Ou seja, quanto maior for o número de narrativas diversas, mais completa será a compreensão da criança ou adolescente sobre determinado assunto, e consequentemente sua apreensão sobre o mundo. “Quando rejeitamos a história única, quando nos apercebemos de que nunca há uma história única sobre nenhum lugar, reconquistamos uma espécie de  paraíso”. Esta fala, que deu consistência de pauta social ao conceito da “história única”, encerra uma palestra da escritora Chimamanda Ngozi Adichie em 2009 no TED (Technology, Entertainment, Design), conferência que contribuiu para provocar discussões sobre o tema.

Nesse ponto, a Pedagogia Griô aparece no horizonte da escola – não só da Educação Infantil ou Fundamental, mas do conceito de educação integral como um todo – como uma janela de discussão, ressignificação e potente desconstrução do racismo estrutural, ao colocar como protagonista do processo de transmissão do saber um modo de pensar o mundo que tem suas origens no continente africano, cuja forma de viver e existir estão fundamentadas no diálogo entre os indivíduos e na comunicação ativa entre diferentes grupos étnicos. Para Paulo Freire, que incorpora alguns modos de pensar a educação típicos dos griôs, o diálogo é um ato político dentro da ação educativa.

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Reprodução/pedagogiagrio.redelivre.org.br

Além do trabalho de formação e base comunitária, a Escola tem o objetivo de dialogar com desenvolvimento científico, tecnológico, artístico e cultural

O que é a Pedagogia Griô?
É uma pedagogia da vivência afetiva e cultural que facilita o diálogo entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnicos-raciais interagindo saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais para a elaboração do conhecimento. Essa abordagem de aprendizado é um projeto de vida que tem como foco o fortalecimento da identidade e a celebração da vida.

Os conceitos que estão sendo construídos na Pedagogia Griô se inspiram na tradição oral e se complementam pela educação biocêntrica, a educação para as relações étnico-raciais positivas, a arte educação e a educação dialógica.

(Fonte: Livro “A reinvenção da roda da vida”, organizado por Lilian Pacheco)

“Quem não sabe não enxerga, e quem sabe tem que passar de pai para filho, e de filho para neto”, cantador João Picopeu – Lençóis (BA).

“O Mestre é a raiz, o Griô é a sua rama”, mestre Dunga – Lençóis (BA).

O que orienta a Pedagogia Griô?

  • Reconhecer os saberes da tradição oral e fortalecer a identidade e a ancestralidade dos brasileiros;
  • Valorizar a diversidade dos brasileiros em suas referências teóricas e metodológicas;
  • Empoderar a sociedade civil para mediar diálogos entre as práticas pedagógicas da educação formal e da tradição oral;
  • Fortalecer e incluir comunidades por meio da criação de redes e espaços afetivos e culturais compartilhados;
  • Reconhecer os saberes e as práticas de griôs, mestres e mestras da tradição oral na educação.

A memória como matéria-prima da educação

O historiador e escritor malinês Amadou Hampâté Bá conseguiu resumir, em uma frase, o aspecto humano da História. Forte referência no trabalho de recuperação da transmissão oral africana, ele afirmou que “cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”, lembrando que o trajeto histórico da humanidade é alinhavado ponto a ponto, e, para se construir um futuro saudável, é preciso considerar quem e o que veio antes.

Graças aos educadores Lilian Pacheco e Marcio Caires, esse pensamento ganhou peso de abordagem de aprendizado, norteando projetos políticos pedagógicos e guiando ações dirigidas a mais de 100 mil estudantes de escolas públicas baianas. É a Pedagogia Griô, que começa a se desenhar como tal na cidade de Lençóis, na Bahia. Tudo começou a partir da organização sem fins lucrativos Grão de Luz, focada em em valorizar e disseminar a tradição do conhecimento oral no Brasil.

“A Pedagogia Griô é uma facilitadora de rituais de vínculo e aprendizagem entre as idades, entre a escola e a comunidade, entre grupos étnico-raciais e de gênero, territórios de identidade, saberes ancestrais de tradição oral e as ciências, artes e tecnologias universais, por meio de um método de encantamento, vivencial, dialógico e partilhado para a elaboração do conhecimento e de um projeto de comunidade/humanidade que tem como foco a expressão da identidade, o vínculo com a ancestralidade e a celebração do direito à vida”, explica Lilian Pacheco.

“A escrita é uma coisa, e o saber é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem”, mestre africano Tierno Bokar Salif.

Como a Pedagogia Griô foi implementada?

A Escola de Formação em Pedagogia Griô da Bahia surgiu em 2016, como continuidade das diversas ações que já ocorriam pelo Brasil integrando o Programa Ação Griô Nacional. A fundação foi encabeçada pelos criadores da abordagem, Lilian Pacheco e Marcio Caires. O trabalho, como não podia deixar de ser, quando se fala em fundar uma pedagogia calcada nos valores comunitários, foi realizado graças a uma parceria coletiva entre diversos griôs aprendizes, educadores e autores de referência em educação e cultura brasileira, além de mestras e mestres griôs das tradições orais do Brasil.

Segundo o texto oficial de apresentação da abordagem, na página do projeto, o Curso de Formação em Pedagogia Griô se coloca no mundo como “um chamado aos sonhadores e realizadores que acreditam na cultura como solo fértil de uma educação transformadora”.

Após esse processo, o Modelo de Ação Pedagógica foi inserido nos currículos escolares de instituições educacionais e culturais de Lençóis, sobretudo aquelas direcionadas a comunidades rurais e tradicionais.

No livro que conta a história de conceituação e realização prática da Pedagogia Griô – que está disponível em pdf para download gratuito -, há uma série de exemplos da resistência que existiu por parte de muitos professores e escolas. A pergunta “mas como fica a rotina de planejamento?” foi uma constante durante a implementação. Então, como vencer essa barreira do conhecido e do historicamente colocado como “o certo”?

Conforme Lilian conta no livro, o caminho possível é o encantamento para uma outra forma de viver e se relacionar. “Não é fácil conversar sobre metodologia de educação e saberes de tradição oral. É preciso se autorizar ‘artista do invisível’, como diria Allan Kaplan, consultor em desenvolvimento na África do Sul.

De acordo com o material, é no vencer das barreiras que colocam o conhecimento colonizado e institucionalizado como única verdade possível, que se encontra o vislumbre do diferente. É isso o que mostra o material da Pedagogia Griô: “A solução foi pesquisar e reinventar métodos de educação, participação e encantamente do social para valorizar a expressão da palavra, dos afetos, da memória, da história, das cantigas, das danças e dos rituais de tradição oral”. Ou seja, trata-se de nada menos que reinventar o mundo e o modo de viver nele como conhecemos até então. Um desafio, sem dúvida, mas ainda assim um horizonte possível.

“Com o griô, passamos a falar a língua da comunidade”, professora Agnela Souza, comunidade da Ponte (BA).

“Agora eu me amo, amo o meu aluno e amo o outro. Amo todos. Porque quando me vi e me valorizei, eu também vi todos, eu vi o mundo que antes não existia”, professora Iracema Santos, comunidade de Luna (BA).

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Reprodução/Grãos de Luz e Griô

A educação griô tem como forte característica a intergeracionalidade, que promove o encontro entre diferentes faixas etárias para ampliar a potência do educar-se nas relações

O curso
O curso é certificado pelo Programa Ação Griô Nacional, pelo Programa de Extensão Diversitas da USP (Universidade de São Paulo). Em cada Estado, o curso acontece sob a certificação de universidades federais locais. O curso da Pedagogia Griô tem um programa de 200 horas, divididas em 13 encontros com duração de 13 meses no total (totalizando um fim de semana por mês), aos sábados e domingos, das 9h às 18h. No mês de janeiro, o curso conta com um encontro nas trilhas griôs da Chapada Diamantina.

De acordo com o site do projeto, o curso é direcionado a professoras(es) de escolas e universidades; educadoras(es) populares, ambientais e sociais; brincantes, músicos, artistas de teatro e contadoras(es) de histórias; produtoras(es) e articuladoras(es) culturais; pesquisadoras(es) das tradições orais e comunicadoras(es) sociais; aprendizes e agentes culturais de comunidades tradicionais e de periferias urbanas; estudantes e profissionais da área de humanas e sociais.

Para saber mais sobre essa abordagem de aprendizado, acesse o site oficial da Pedagogia Griô, a página no Facebook, ou acompanhe o projeto Grãos de Luz e Griô.

*As citações presentes nesta matéria (que aqui aparecem em cor-de-rosa, foram recolhidas do livro “A reinvenção da roda da vida”, de Lilian Pacheco, disponível para download gratuito aqui.

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