Fazendo História: projeto ajuda crianças a conhecerem sua origem

Para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, conhecer sua própria história pode acabar virando uma espécie de quebra-cabeça"

Camilla Hoshino Publicado em 27.11.2017
Crianças se agacham no chão em uma toalha estendida, com diversos livros espalhados por cima.

Resumo

O programa "Fazendo Minha História" oferece meios de expressão para que crianças e adolescentes que moram em serviços de acolhimento conheçam sua origem e assim se apropriem de sua própria história de vida.

“O que lembro, tenho”. Guimarães Rosa escreveu essa frase em seu célebre “Grande Sertão Veredas”, e ela diz muito sobre a necessidade humana de guardar sua história.

Pense nos primeiros dias ou anos da sua vida. Quais as principais imagens que você encontra? Colo, abraço, brincadeiras? Quais cheiros, sensações ou medos você enxerga? Quais lembranças, em especial, fazem da sua infância uma experiência única?

A parte difícil e, ao mesmo tempo brilhante, de se trabalhar com a nossa própria história de vida é que boa parte da narrativa que elaboramos sobre nós mesmos foi sendo construída com a ajuda de pessoas ao nosso redor. Aquela tentativa de voo do sofá que resultou na quebra de um braço – relatada pelos pais anos depois – ou o jeito desajeitado de pronunciar as palavras, que os avós transformaram em apelido eterno. Esses somos nós: indivíduos sendo constituídos a todo o momento dentro da coletividade e a partir de memórias.

“Para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, no entanto, o resgate dessas histórias pode acabar virando uma espécie de quebra-cabeça”

Isso porque suas histórias quase sempre contêm lacunas provocadas por deslocamentos que vão do afastamento das famílias a mudanças entre serviços de acolhimento.

Segundo o procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná e especialista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Alberto Vellozo Machado, embora a prioridade para jovens que possuem direitos ameaçados e que foram afastados de suas famílias, seja sempre a tentativa de reinserção no núcleo familiar de origem ou nas famílias extensas (parentes próximos), nem sempre esse caminho é viável, tornando o acolhimento institucional ou por outras famílias uma alternativa.

Esse cenário foi uma das inspirações para a criação de ações em torno do Programa Fazendo Minha História, iniciadas em 2002. Três anos mais tarde, as atividades deram vida ao Instituto Fazendo História, uma ONG que nasce com o objetivo de melhorar a qualidade do atendimento a crianças e adolescentes em serviços de acolhimento no país.

“Muitas crianças permanecem em serviços de acolhimento por vários anos, às vezes entrando quando ainda são bebês e depois da saída não têm nenhuma foto ou registro”

É o que afirma a psicóloga e coordenadora de formação do Instituto Fazendo História, Tatiana Barile. Ela explica que a intenção do programa Fazendo Minha História é justamente proporcionar o resgate desses momentos, por meio da intervenção de voluntários, realizada em encontros semanais. “Os encontros proporcionam um espaço de expressão, despertam o interesse pela leitura e culminam na elaboração de um álbum de histórias pessoais”.

O que é o acolhimento institucional?

Acolhimento institucional é uma medida de proteção, excepcional e provisória, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É aplicada em casos de ameaça ou violação de direitos de crianças e adolescentes, somente quando não há alternativas para permanência no convívio familiar. (FONTE: ECA)

“Orfanatos” não existem mais

Desde 1990, o termo “orfanato” caiu em desuso. O correto é dizer “serviços de acolhimento” ou “casas de acolhimento institucional”. Isso porque o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) redesenhou as regras para o acolhimento de crianças e adolescentes, e promoveu uma mudança de olhar para a infância e a adolescência em situação de vulnerabilidade, pautada no cuidado e na garantia de direitos. Saiba mais.

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Ana Luchese

O programa oferece oferece meios de expressão para que cada criança ou adolescente acolhido conheça e se aproprie de sua história de vida.

Individualidade

“A criança precisa de atenção individualizada para se configurar enquanto ser, pois é o momento em que constrói a sua personalidade”, atenta a chefe da seção de psicologia da Vara Central da Infância e Juventude de São Paulo, Eliana Kawata. De acordo com ela, quanto mais cedo uma criança é institucionalizada, maiores são os impactos sobre seu desenvolvimento.

“Toda criança precisa de um lugar que proporcione estimulação, vínculos e elementos que a ajudem a se identificar com ela mesma em sua formação inicial”

Na opinião de Alberto Vellozo, se a institucionalização for necessária, é preciso que os princípios estabelecidos pelo ECA sejam garantidos. “Não são todos os serviços que compreendem esses princípios, ainda pensando sobre o lugar ocupado por crianças e adolescentes de forma superficial, fazendo um recorte filantrópico”, afirma. Nesses casos, para ele, a participação da sociedade civil organizada é indispensável para o desenvolvimento desses jovens em cada fase específica da vida, de forma autônoma.

Vínculo

Voluntária do Fazendo Minha História, a psicóloga Ana Amélia Machado, de 35 anos, passou por um longo processo de formação antes de iniciar o trabalho em um serviço de acolhimento. Após ser selecionada para o programa, acompanhou uma menina de um ano e dois meses até ela completar um ano e dez meses e ser desacolhida, por meio da adoção.

Ela sabe que tão importante quanto o enredo de nossas próprias vidas, são as fábulas que ajudam a ampliar o repertório de vocabulário e de imaginação. São aquelas palavrinhas despretensiosas que, muitas vezes, fazendo referência a experiências do cotidiano e despertando sentimentos, nos ajudam a formular explicações e trazer sentidos para aquilo que vivemos. Nesse caso, os livros acabam se tornando objetos transformadores.

Durante o trabalho da psicóloga no programa, ela pode perceber a evolução do interesse pela leitura da criança que teve a oportunidade de acompanhar por sete meses.

“Como ela tinha acabado de começar a andar e estava em um momento de exploração, não tinha interesse em sentar para lermos um livro. O que eu fiz foi utilizar um livro que também fala sobre descobertas (Toc-Toc!) e relacionava com objetos que estavam na sala. Ou colocava os livros espalhados no chão para ela brincar. No final do trabalho, ela já se comunicava apontado para o relógio. Ela sabia que o horário dela com os livros”, relata a voluntária.

Além do despertar proporcionado pela mediação da leitura, Ana Amélia também notou a importância do vínculo estabelecido. Seja com livros, desenhos, tintas, plástico bolha ou quebra-cabeças, as atividades lúdicas ou brincadeiras são essenciais, de acordo com ela, para estabelecer uma relação mais qualificada. “É importante ter esse olhar individualizado, pois ela sabe que você estará ali toda a semana, neste horário, para estar com ela”.

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Ana Luchese

Ser separado da família, mudar completamente de rotina e passar a conviver com adultos e crianças desconhecidas poder ser uma experiência difícil de entender.

Memória

“O que aconteceu comigo nesse período? Onde eu estava até encontrar essa família?”. Segundo Ana Amélia, essa é uma das perguntas que podem surgir para crianças e adolescentes que passaram algum tempo em serviços de acolhimento antes de retornarem às famílias naturais, serem adotadas ou tomarem seu próprio caminho após a maioridade. Nesse sentido, ela acredita que o trabalho do Instituto Fazendo História é essencial para ressignificar as experiências dos jovens nesses espaços.

Ela conta que, diferente das crianças mais velhas, os bebês não constroem seus próprios álbuns, pois têm os voluntários ainda como os narradores dos primeiros anos de vida.

“Essa é uma oportunidade de mostrarmos que não era horrível morar em um casas de acolhimento institucional, que ali havia uma rotina”

“Mais tarde, a criança irá olhar para trás e não vai encontrar um vácuo, mas voltar a sua história e decidir o que fazer com ela”, diz Ana Amélia.

De uma forma ou de outra, em qualquer espaço em que se cresça, os capítulos da vida vão sendo inicialmente transmitidos por vozes alheias até termos os elementos essenciais para contar nossa biografia. Aí talvez resida a grande importância do programa Fazendo Minha História, assim como do trabalho da psicóloga Tatiana Barile, da voluntária Ana Amélia Machado, da assessoria de Eliana Kawata ou da interpretação da lei pelo promotor de Justiça Alberto Vellozo: a formação de uma ampla rede que fornece estruturas para garantir que crianças e adolescentes tenham o simples direito de elaborar suas próprias histórias, com autonomia, a partir da convivência coletiva, seja em família ou em comunidade.

“Presente, passado e futuro. Saber de onde eu vim e para onde eu quero ir”, reforça Tatiana Barile sobre a necessidade de se trabalhar com a memória. Porque, independentemente das oportunidades que nos são dadas ou dos caminhos que escolhemos tomar, cedo ou tarde, em momentos importantes de nossas vidas, acabamos voltando a esse lugar preambular a que chamamos infância.

 

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