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O Novo Ensino Médio e os impactos para quase 8 milhões de jovens

Na imagem, adolescentes em uma sala de aula. A foto ilustra matéria sobre o Novo Ensino Médio.

As transformações em curso para o Novo Ensino Médio (NEM) têm mobilizado opiniões enquanto o destino de 7,9 milhões de jovens está em jogo. Com tanta informação circulando e as dúvidas que permanecem em aberto, o Lunetas traz detalhes sobre o assunto, já que 55% da população está pouco ou nada informada sobre o novo modelo, como revelou uma pesquisa do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e do Serviço Social da Indústria (Sesi), de fevereiro deste ano.

Em linhas gerais, o Novo Ensino Médio altera o currículo por disciplinas para uma divisão por áreas de conhecimento. De acordo com o Ministério da Educação, uma parte das aulas é comum a todos os estudantes do país, direcionada pela BNCC e com carga horária de 1.800 horas. Outra parte, formada pelos chamados “itinerários formativos”, corresponde a 1.200 horas e é flexível, ou seja, permite escolhas individuais. Esse é um ponto de tensão da lei: a oferta dos itinerários está condicionada à capacidade das redes de ensino e das escolas, de acordo com o próprio Ministério.

Pela proposta, são considerados itinerários formativos o conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações de trabalho. Isso engloba áreas do conhecimento (Matemáticas e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) e da formação técnica e profissional (FTP) ou uma combinação entre elas. No caso da formação técnica ou profissionalizante dentro da carga horária regular, ela garante o certificado ao fim dos três anos de ensino médio. A lei ainda prevê o desenvolvimento dos chamados projetos de vida, nos quais as escolas devem criar espaços de diálogo, para avaliar interesses e orientar as escolhas de cada estudante.


Breve histórico do Novo Ensino Médio

A discussão sobre um novo modelo de ensino médio começou há pelo menos duas décadas no Brasil. Em 2013, o projeto de lei 6.840 previa alterar a Lei de Diretrizes e Bases, para estabelecer ensino em tempo integral e organizar o currículo por áreas de conhecimento. Em 2016, o governo do então presidente Michel Temer estabeleceu a medida provisória 746, publicizada como “a maior mudança ocorrida na educação brasileira nos últimos anos”, com a defesa de que isso reduziria o número de reprovações e o abandono escolar. Na época, a ideia enfrentou resistência de estudantes que ocuparam mais de 1 mil escolas, e a crítica de que a proposta foi estabelecida sem debate com a comunidade escolar e a sociedade civil se mantém até hoje.

Em 2017, a reformulação virou a Lei 13.415, segundo a qual o novo ensino médio seria implementado de maneira escalonada, até 2024. A mudança começou em 2022, com o primeiro ano do ensino médio, passando agora para o segundo, e completando o ciclo em 2024, com o terceiro ano. Contudo, o MEC suspendeu no início de abril o cronograma de implementação do Novo Ensino Médio, mantendo apenas o processo de consulta pública. Iniciada em 8 de março e prevista para durar 90 dias, a consulta deve envolver a escuta de 100 mil pessoas via WhatsApp. Ao final dela, em junho, a implementação de qualquer mudança fica suspensa por mais 60 dias. Para justificar a medida, o ministro Camilo Santana reconheceu, em entrevista, “que não houve um diálogo mais aprofundado da sua implementação, nem coordenação por parte do Ministério da Educação”.

O que foi suspenso?

A implementação dos novos currículos do Ensino Médio nos estabelecimentos de ensino alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e aos itinerários formativos;

O cronograma referente aos materiais e recursos didáticos para o Novo Ensino Médio, via Programa Nacional do Livro Didático (PNLD);

O alinhamento das matrizes do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para a etapa;

A atualização da matriz de avaliação do Novo Enem.

As principais críticas ao Novo Ensino Médio

A reformulação do Ensino Médio era uma demanda de vários segmentos da educação, inclusive entidades que representam os estudantes. Em comum, havia a sensação de que o modelo então vigente era engessado e com muitas disciplinas que não davam conta das mudanças do século 21, mas as divergências se acentuaram principalmente após a medida provisória de 2016.

Uma das principais críticas do Novo Ensino Médio é de que o Brasil é um país desigual e, portanto, as escolas têm capacidades diferentes para estabelecer os itinerários formativos, desde a quantidade de salas disponíveis à formação dos professores. Isso poderia acentuar ainda mais a disparidade de qualidade de ensino entre alunos da rede pública e privada, ou mesmo entre estudantes da rede pública em contexto urbano e rural, por exemplo.

“Essa proposta do novo ensino médio não dialoga de forma nenhuma com a realidade de precariedade no ensino público brasileiro. Ao mesmo tempo, ainda estamos sendo regidos pela emenda constitucional 95, do teto dos gastos, que congela a possibilidade de se fazer investimento público na educação”, afirma Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

O estado de São Paulo foi o primeiro a adotar o Novo Ensino Médio. Um estudo da Rede Escola Pública e Universidade identificou, entre os problemas da implementação, a limitada oferta de itinerários formativos, falta de professores nas escolas e uma expansão da carga horária feita de maneira virtual. Em consequência, diz o estudo, estudantes do período noturno estariam sendo prejudicados. “A autonomia de implementação do NEM está na mão dos estados e municípios e isso acaba fugindo do controle do MEC, como é o caso de itinerários de disciplinas”, questiona Jade Beatriz, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, a Ubes.

Para a Ubes, é preciso envolver o ministério na definição dos itinerários formativos e diminuir a carga horária de disciplinas como história, biologia, química e física, cujos conteúdos estão distribuídos nas áreas de conhecimento, em outros formatos. “Também temos preocupação com o Enem deste ano, se vai cobrar a reforma ou não. É impossível fazer um Enem para cada estado”, afirma Jade Beatriz.

Segundo ela, a ideia seria que os itinerários formativos fossem atrativos e aproximassem os estudantes do mundo do trabalho. “Mas não é isso que acontece, né? Os itinerários estão aproximando a gente do subemprego. O NEM exige, pelo menos, uma boa estrutura, como laboratórios, só que hoje no Brasil a realidade é uma escola que não tem banheiro e merenda”, ressalta. “Já recebemos relatos de escolas privadas que estão cobrando por itinerários formativos extras no contraturno de alunos e professores, demandando que atuem em áreas nas quais não são formados”, acrescenta Dornellas.

Ambas defendem que a medida provisória interrompeu a discussão de uma década para a construção de um novo ensino médio. “A gente já pensava em discutir o ensino médio pela fragmentação curricular e colocar no centro do debate o sujeito, para gerar capacidade de refletir sobre uma realidade cada vez mais complexa”, conclui Dornellas, que defende a revogação completa do NEM. A Ubes realizou mobilizações em cerca de 50 cidades, em 19 de abril, e afirmou que está construindo um documento, com estudantes, pesquisadores em educação e profissionais das áreas pública e privada, a ser entregue até o fim de abril ao MEC.

Fundador do movimento secundarista “Rede Militei”, em São Carlos (SP), o estudante do 3º ano do ensino médio Gustavo Ferragini criou um abaixo-assinado contra o NEM que já tem 26 mil assinaturas. Ele decidiu fazer um curso particular para complementar o que aprende na escola, elegendo ciências e matemática para o seu itinerário. “Tive a sorte de conseguir vagas, mas muitos alunos mudaram de escola e nem todos conseguiram se alocar no que queriam, pois não sabem o que pretendem cursar no ensino superior”, comenta. “Quando começou a aplicação em São Paulo sumiram as disciplinas de língua inglesa, artes e educação física, o que gerou uma revolta imensa. Agora voltou, mas foi embora física, química, biologia, sociologia e outras”, descreve.

Jardel Freitas é professor da rede estadual da cidade de Canoas (RS), onde dá aulas de educação física para o primeiro ano, e “projeto de vida” e “cultura e ação”, para o segundo ano, em uma escola de um bairro da periferia. A maioria dos seus alunos se divide entre o trabalho e os estudos. “O mais difícil para eles é o medo de não conseguir acessar o ensino superior, considerando esse novo ensino médio. A matriz curricular daqui ficou bem desconfigurada, em relação a componentes essenciais para fazer um bom vestibular”, diz. Segundo ele, se perdeu carga horária de química, biologia e física.

Ele também sentiu o impacto no próprio trabalho quando foi editada uma normativa que reduziu a carga horária de educação física no ensino médio, em 2020, e “eu acabei tendo que assumir outras disciplinas que foram inventadas, para permanecer na mesma escola e não ter que ficar em três escolas para completar a minha carga horária”, diz.

A defesa do Novo Ensino Médio

Apesar das críticas, há quem defenda a manutenção total do novo modelo ou apenas sua revisão. Um dos principais argumentos é de que o NEM é um processo em curso, que envolveu diversos setores da sociedade, inclusive as equipes das secretarias estaduais de educação, e que um eventual descarte seria anular todo o trabalho já realizado por essas pessoas.

Em nota pública divulgada em fevereiro, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) afirma que “não é sensato pensar em descartar todo esse esforço técnico e financeiro despendido pelas redes estaduais ao longo dos últimos anos. Além de inviável, essa opção, em nenhum momento, foi considerada pelos gestores estaduais, que são os responsáveis pela etapa de ensino na rede pública”. De acordo com o órgão, aprimoramentos e ajustes são inerentes ao processo, podem e devem ser discutidos, mas a revogação não seria o caminho ideal para tornar essa etapa da educação mais atrativa.

Em uma live promovida pela Associação dos Jornalistas de Educação (Jeduca), Raquel Teixeira, Secretária de Educação do RS e vice-presidente do Consed, afirmou que a ausência de um acompanhamento do MEC durante o governo Bolsonaro contribuiu para a implementação desigual do NEM nas escolas brasileiras. “O novo ensino médio foi uma construção coletiva, para chegar num modelo instituído por lei. De 2019 a 2021, houve projetos pilotos em todos os estados que deveriam ter sido acompanhados, monitorados, apoiados técnica e financeiramente e a gente teve uma ausência total do MEC”.

Segundo ela, no Rio Grande do Sul, 264 escolas implementaram o início do ensino médio de maneira piloto e, em 2022, foi expandido para 100% das 1.100 escolas do estado. Lá, foi feita uma feira das trilhas, em que as escolas votaram para definir os itinerários mais importantes e o aluno escolheu a partir deles.

“A reforma do ensino médio é a mais profunda que a educação brasileira fez nos últimos anos. Essa estrutura curricular é importante porque, além das horas da formação geral básica, há a possibilidade de aprofundamento a partir dos itinerários. É uma estrutura nova, mas o mundo inteiro está fazendo isso. A vinculação da teoria com a prática era uma necessidade que tínhamos”, acrescenta.

Para ela, a abertura da consulta pública é positiva. “Oferecemos 24 itinerários no nosso estado e acho muito. Precisamos fazer ajustes, para ter igualdade regional e intraestadual”. As pesquisas feitas pelo Consed mostraram que os alunos temem a reprovação no Enem. “Uma coisa é o sentimento de que a formação geral básica menor daria menos condição de aprovação, o que é verdade, mas tem soluções. O desafio maior do Enem é a indefinição de como será o modelo, o governo anterior não deixou isso preparado”, afirma Teixeira.

De acordo com Bruno Eizerik, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP), a consulta não significa que o novo ensino médio foi suspenso, pois a lei permanece em vigor. “Foi suspensa a maneira como vai ser desenvolvido o Enem em 2024, para ser estudado. É preciso tranquilizar a família e os alunos que tudo o que foi feito está valendo, e seguimos com a implementação”, afirmou.

Em relação ao NEM, ele defende que o fim das disciplinas permite trabalhar com interdisciplinaridade. “Uma série de ajustes vai fazer com que o nosso ensino médio seja melhor. Nós sabemos que o antigo ensino médio não trouxe bons resultados. Durante a implementação, estamos aprendendo e vamos continuar aprendendo”, acrescenta Eizerik. Para ele, as escolas privadas têm capacidade de implementar os itinerários formativos e que o ensino público “pode fazer sim, é só uma questão de gestão”, diz.

O diretor executivo do Todos pela Educação, Olavo Nogueira, afirma que a organização não é adepta da revogação completa, “mas tampouco fazemos coro ao discurso de que os problemas são pontuais ou apenas decorrentes de falhas de execução”. De acordo com ele, o modelo antigo brasileiro é anacrônico e a essência da reforma de aumentar a carga horária e propor currículos mais atrativos aponta um sentido desejável. “É isso o que fazem na maioria dos países com sólidos indicadores educacionais e de inserção produtiva dos jovens”, diz.

Em relação aos ajustes, o diretor defende a alteração do teto de 1,8 mil horas na formação básica, considerada por ele muito baixa, assim como uma melhor definição dos itinerários, ainda muito amplo. Outra defesa é retirar a possibilidade de 20% de EaD no cumprimento da carga horária, entendida como um risco à precarização. “Entendemos que ainda assim é possível preservar a essência da reforma – aumento de carga horária, diversificação curricular e maior ênfase para a educação profissional”, diz.

Em nota, de dezembro, o Todos pela Educação propôs ampliar o debate para além do currículo. “Medidas voltadas para a valorização da carreira e formação dos professores, fortalecimento da gestão escolar e melhorias substantivas na infraestrutura das escolas são alguns dos temas que também precisam ser objeto de um projeto para um verdadeiro novo ensino médio”, defende Nogueira.

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