Proibição de partos na ilha tira das mulheres direito de escolher dar à luz em seu local de origem e permanecer no convívio familiar
O direito da mulher escolher onde seus filhos vão nascer não está garantido em Fernando de Noronha, Pernambuco. Na ilha, estão proibidos partos há quase duas décadas.
Mitos e lendas povoam o imaginário das pessoas nativas de Fernando de Noronha, distrito de Pernambuco. Mas, entre memórias e encantamentos da tradição popular local, há histórias reais que os noronhenses preferiam não contar. Desde 2004, apenas quatro mulheres conseguiram parir no arquipélago. Como é para essas mulheres ouvirem “seu bebê não pode nascer aqui”?
Por força de uma recomendação informal da administração local, mulheres grávidas têm sido encaminhadas a Recife para dar à luz, como é o caso da assistente social Ione Leal, moradora permanente de Fernando de Noronha e proibida de ter a bebê da sua segunda gestação na ilha. “Não há preparação alguma. A partir do momento que você está grávida, já sabe que, quando chegar aos sete meses, vão insistir para você viajar”, relata.
A não realização de partos em Noronha é uma orientação que garante a assistência qualificada às gestantes, de acordo com a Secretaria de Saúde do estado de Pernambuco. Segundo o órgão, há dificuldade de manter equipes completas na ilha, assim como a estrutura necessária à realização de partos.
Em 2016, ao pedirem que Ione deixasse a ilha, houve uma explosão de sentimentos. “Ter que deixar a minha filha mais velha foi a parte mais complicada, porque eu já estava naquele período gestacional, de sensibilidade bem aflorada”, relembra a noronhense.
Apesar do direito a um acompanhante, a assistente social viajou sozinha a Recife. O esposo precisou ficar na ilha. “Ou ele tirava os dias de licença-paternidade quando a criança nascesse ou tirava [a licença] naquele momento”, justifica.
Ione nunca havia se afastado de Melanie, a sua filha mais velha. Quando a caçula nasceu, em 2017, a primogênita tinha 10 anos. “Eu sempre quis ter uma irmã. Eu sabia que minha mãe estava lá fora, com a minha irmã dentro da barriga [dela]; só era um motivo a mais pra eu querer ficar junto”, desabafa a menina.
“Foi muito difícil passar tanto tempo longe da minha mãe. Eu ligava pra ela todos os dias”, diz. Na sala de aula onde estuda, outras duas crianças passaram por experiências parecidas.
No sétimo mês de gestação, a paciente é encaminhada para o continente, onde é acompanhada por uma unidade de referência em obstetrícia. Lá, recebe o acompanhamento e assistência necessários, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde.
“Na capital, a gestante conta ainda com a retaguarda de toda a rede de saúde de Pernambuco, pronta para qualquer tipo de intercorrência. A ida da gestante para o continente, a estada no Recife e a volta à Noronha são arcadas pelo Governo de Pernambuco”, acrescenta a secretaria.
“No meu caso, em nenhum momento eu me recusei a sair da ilha, mas eu não queria no prazo que eles me deram”, compartilha Ione. Ela solicitou 15 dias além do prazo para organizar a mudança. Bastou isso para que ligassem para ela insistentemente no trabalho e em casa.
“Várias vezes eu cheguei a me irritar, me chatear e chegar ao extremo de dizer: ‘Não estou me recusando a sair. Não tem necessidade de vocês estarem me procurando em tudo que é canto na ilha como uma foragida’”, traz. As mulheres que se recusam a deixar a ilha precisam assinar um termo de responsabilidade assumindo eventuais riscos à saúde do bebê.
Em 2004, foi desativada a única maternidade da ilha, no Hospital São Lucas. Sem maternidade e UTI neonatal para atender possíveis complicações durante o parto, a administração da ilha adotou o transporte salvo-aéreo, caso haja necessidade de cirurgia. Atualmente, há também o Posto de Saúde da Família do Arquipélago que conta com uma equipe formada por médicos, dentista, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde.
Na visão de Emanuelle Góes, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (CIDACS), vinculado à Fiocruz Bahia, a rede de apoio da mulher é importante durante o parto e o afastamento deveria ocorrer apenas em último caso. “Obviamente, a mulher distante da sua família, dos seus vínculos afetivos, da sua rede de apoio, isso não vai favorecer o parto”, salienta.
O resultado esperado, segundo a pesquisadora, é a mulher e o filho saírem com vida e saudáveis. “As políticas relacionadas à saúde materna têm pensado muito mais na adesão do que na ruptura dessas redes. Ir para um lugar distante rompe redes de apoio de diversas ordens: pessoal, institucional. Por mais que saibam onde ela está, [isso] não é suficiente”, analisa.
Em nota da Promotoria de Justiça de Fernando Noronha, o Ministério Público do estado de Pernambuco (MPPE) informa que há alguns anos foi aberto procedimento para verificar a possibilidade de implementar uma UTI na ilha, após parecer do Centro de Apoio Técnico do MPPE, mas o pedido mostrou-se inviável.
“No entanto, como não se pode ver apenas como uma questão econômica, atualmente a Promotoria de Justiça de Fernando de Noronha avalia a possibilidade de abrir um novo procedimento com relação às questões social e de saúde”, continua a nota. Na declaração oficial, a Promotora destaca que deve-se discutir a possibilidade de se colocar uma UTI em Fernando de Noronha para casos de intercorrências e urgências.
Dados da Secretaria de Saúde apontam que, para manter uma equipe médica em uma maternidade na ilha, seriam gastos R$ 3,6 milhões por ano. Em média, nascem 30 bebês anualmente de mulheres residentes em Noronha e cada parto custaria em torno de R$ 120 mil. O custo para manter cada gestante por três meses na capital Recife é de R$ 8,9 mil.
No espaço Mãe Coruja, há o acompanhamento das gestantes da ilha no pré-natal, parto e pós-parto. Ainda assim, Ione Leal relata que precisou viajar diversas vezes durante a gestação. “Eles pensam tanto no custo financeiro e esquecem do emocional. Eles estão lidando com famílias, com pessoas. Então, é bem desumano”, considera.
Durante a gestação, Ione participou das filmagens de um documentário da cineasta Joana Nin. O filme acompanha a saga de três gestantes, incluindo a assistente social, forçadas a se afastar de casa para terem seus bebês; as mulheres que se recusam são coagidas a sair e nem mesmo as nativas podem optar por ficar.
“O filme se tornou uma vitrine para esse caso que no meu entender é escandaloso, de uma situação extrema na qual as mulheres estão sendo completamente negligenciadas em detrimento de lógicas financeiras, turísticas”, observa a cineasta. Para ela, falta vontade política para que as mulheres tenham condições mínimas de ter um bebê em Fernando de Noronha.
“Talvez não seja conveniente que esses bebês nasçam na ilha”, aponta. Para ela, uma estrutura hospitalar capaz de atender cirurgias de emergência tornaria possível socorrer as mulheres caso o parto complicasse.
Segundo resolução 07/2011 do Conselho Federal de Medicina, a equipe médica necessária para atuar em uma sala de parto é composta ao menos por um médico pediatra, um médico anestesista e dois obstetras, que devem estar disponíveis 24 horas por dia na unidade de saúde.
Desde 1988, o arquipélago de Fernando de Noronha foi declarado Parque Nacional. Em 2001, a Unesco o reconheceu como Patrimônio Natural Mundial por sua importância para a vida marinha. Todo território de Noronha pertence ao estado de Pernambuco e não pode ser usucapido ou vendido. A política habitacional distrital determinava que moradores permanentes há mais de 10 anos teriam direito a se inscrever para receber um Termo de Permissão de Uso (TPU) do terreno.
Na visão da Promotoria de Justiça de Fernando de Noronha, a situação das gestantes da ilha também envolve o direito à terra. “Além disso, por acreditarem que as pessoas que nascem em Noronha têm direito a receber um terreno, alguns moradores querem ter seus filhos na ilha por essa razão”, expõe o órgão.
A administração da ilha garante que os recém-nascidos, filhos de mães moradoras de Noronha, podem ser registrados como noronhenses, mesmo tendo nascido em Recife. “Essa geração inteira de crianças que há 18 anos não nasce na ilha, salvo quatro exceções, vai disputar espaço com os empresários do turismo no futuro? Não há como saber, mas com certeza isso não será benéfico para elas”, acrescenta Joana.
Para a cineasta, Noronha está se tornando cada vez mais uma “ilha da fantasia” por conta do seu projeto turístico próprio. Se é lugar de fantasia ou não, que todas as mulheres tenham assegurado o direito de escolher onde seus filhos vão nascer.
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