Crianças contam como o sertanejo pode ser um instrumento de expressão e também revelam o desejo de cantar e tocar para um grande público
O Centro-Oeste hoje é a região do país que mais revela cantores e cantoras da música sertaneja. Esse estilo musical se torna influência para as crianças: muitas começam a tocar algum instrumento nos primeiros anos de vida e querem seguir carreira na música.
Com suas mãozinhas pequenas, Wellinton pega qualquer objeto para imitar um violão e se põe a cantar. O hábito começou aos dois anos de idade e continua até hoje, com seis. Morador de Campo Grande (MS), o menino se diz um “tocador de viola”.
Se está parado, ele toca. Tudo o que pode batucar, transforma em música. A mãe do garoto, Josivana Franceschina da Silva, conta que na gravidez ouvia muita música sertaneja. “Wellinton é um menino supertímido para falar em público, mas para cantar ele não pensa duas vezes. Minha decisão de iniciá-lo em uma escola de música foi por causa de sua paixão aos instrumentos musicais”, relata.
“Com ele, tudo vira música aqui em casa”
O pequeno Wellinton conta que a influência do sertanejo começou com o avô materno, que também toca violão e sempre o incentivou na música, e de sua mãe e tia que frequentam locais que tocam esse estilo musical. Fã de Tião Carreiro, Sérgio Reis e das duplas Jads e Jadson e Pedro Paulo e Alex (do sertanejo universitário), o aprendiz de violeiro participou de uma competição na escola e conseguiu o primeiro lugar interpretando “O Menino da Porteira”. No Natal, ganhou a viola de presente e começou aulas com um professor de violão.
A presença da música sertaneja no Mato Grosso do Sul é antiga e vem principalmente da cultura paraguaia, já que o estado tem 1.180 quilômetros de fronteira com o país. Polcas, guarânias e chamamé, ritmos dançantes do Paraguai, utilizam sanfona, viola e violão como sua base principal. Estes mesmos instrumentos são usados na composição das músicas sertanejas até hoje, principalmente no sertanejo universitário, que tem entre os principais nomes muitos cantores do Centro-Oeste do Brasil, que influenciam também as crianças da região.
A tia de Wellinton, Jovana Franceschina da Silva, é pedagoga e aproveitou o gosto do sobrinho pela música para ensiná-lo, por meio de desenhos, a ler e cantar. “Eu comecei a desenhar as figuras de cores diferentes para que ele pudesse entender as palavras e saber cantar. É um trabalho junto do professor de música. O mestre ensina a parte musical e eu ensino o vocábulo”, menciona.
Hoje, o pequeno já consegue ler e entender as letras e as histórias por trás das músicas. “Eu gosto das histórias! Tem o viajante e tem o boi que sempre ajuda o homem e eles têm uma relação bonita.”
A tia conta que a música auxiliou Wellinton a se expressar melhor.
“A música o ajudou a falar, socializar mais rápido e aumentar o conhecimento vocabular”, explica.
Maycon Vianna Silveira, músico formado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e professor de viola, conta que a música incentiva a criança a ter mais atenção, disciplina, coordenação motora e a interagir com as pessoas. “Musicalização infantil é ensinar a criança a ser sensível e perceptiva aos sons. Desde o ventre, a criança já aprende a gostar de determinados tipos de sons e estilos musicais”, explica.
O goiano Pedro, 7, é outro apaixonado pelo sertanejo raiz, tocado com sanfona. O garoto é a sensação da família e garante que a música o influencia a sonhar em ser músico profissional.
“Pra mim, as letras das músicas sertanejas têm vida”, enfatiza.
O gosto pelo ritmo vem desde pequeno, quando seu pai o incentivou a gostar da música e a aprender a tocar sanfona. Fã de Milionário e José Rico e Gino e Geno, duplas sertanejas antigas, Pedro conta que não sente preconceito por cantar e tocar a música sertaneja. Pelo contrário, ele aponta que só recebe elogios das pessoas que o veem cantando.
O jornalista especialista em música sertaneja e criador do blog Universo Sertanejo, André Piunti, enfatiza que o estilo sempre sofreu preconceito, seja caipira ou universitário. “O preconceito contra a música caipira tem muito a ver com a cultura caipira como um todo, com o povo do interior. Aquele povo da roça era considerado inferior por muita gente. O moderno era aquilo produzido na cidade.” Ele ressalta que após o boom midiático, as pessoas revisaram suas opiniões e passaram a respeitar e apreciar mais o ritmo caipira.
A campo-grandense Rafaela, 11, é dessas crianças que amam um sertanejo universitário e se espelham nos artistas para cantar. “Na minha casa, todo mundo sempre ouviu música sertaneja. Eu comecei a aprender as letras e, quando menos esperava, já estava cantando com uma artista famosa nossa aqui do estado”, conta a menina referindo-se à Delinha, primeira mulher cantora de sertanejo de Mato Grosso do Sul.
“Eu tenho um sonho de estar nos palcos na frente de uma multidão e poder cantar com Marília Mendonça, Gusttavo Lima, Bruna Viola”, comenta a menina emocianada ao imaginar tal cena.
Mas o sonho de ser famoso, apontado por algumas crianças ouvidas nesta reportagem, pode ser um sinal de alerta aos pais, caso este desejo se transforme em obrigação, limitação ou decepção. A pedagoga Jovana Franceschina recomenda que pais ou responsáveis trabalhem a música com a criança de forma lúdica e sem imposições, para que ela não se frustre caso não alcance a fama.
“Temos que ensiná-las que a música é uma forma de expressão, é alegria, une as pessoas. Ela deve ser trabalhada com as crianças para contribuir no desenvolvimento psicomotor, linguístico e socioafetivo”, explica.
“Fazer a criança pensar só em fama pode gerar pressão e problemas futuros”
Sendo considerada a “dama do rasqueado”, Delanira Pereira Gonçalves, a Delinha, sabe bem o que é ser mulher e cantar sertanejo. Cantora e compositora com mais de 63 anos de carreira, ela explica que, no passado, existiam muitas regras para a mulher que queria cantar.
“A mulher, quando ia se apresentar no circo, mesmo que estivesse frio, não podia usar casaco. Isso não era visto com bons olhos. Então, nós precisávamos nos apresentar de manga curta. Acho que eu e as Irmãs Galvão não sofremos preconceito, mas tínhamos dificuldade de conseguir espaço na música”, conta.
Delinha é a precursora da voz feminina no sertanejo no Mato Grosso do Sul, hoje dominado por duplas famosas do “feminejo”- a música sertaneja feita por mulheres com temas conhecidos como “sofrência”, empoderamento e superação.
A cantora e compositora Bruna Viola, aos 11 anos de idade, empunhou a viola caipira (que hoje traz como sobrenome artístico) e começou a cantar. Ela ressalta a luta que as mulheres tiveram para alcançar o sucesso de hoje. “Ícones e duplas femininas como as Irmãs Galvão, Roberta Miranda e Inezita Barroso fizeram história abrindo os caminhos para a nova geração da música sertaneja. As mulheres devem continuar esse legado.”
Bruna se diz feliz ao ver meninas tocando e apreciando a música sertaneja. “Nós, mulheres, temos um papel muito importante até mesmo na formação da índole e do caráter dessa nova geração. Eu gosto de falar coisas boas, coisas positivas e passar toda essa essência que a música traz.”
Paula Mattos, que começou a cantar e compor aos 12 anos de idade, também destaca a importância da representatividade da mulher na música sertaneja. “Pra mim, o maior papel é motivar outras mulheres, mostrando que elas podem ser livres, independentes, fazer o que quiserem e serem bem sucedidas, independente de serem cantoras, compositoras ou artistas.”
Para fazer coro a estas cantoras profissionais, que começaram a cantar e compor na infância, a menina Rafaela acrescenta:
“Esta valorização é importante para termos mais voz e diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. As cantoras sertanejas nos passam um sentimento de representação”
No final da década de 1920, a música sertaneja caipira e suas modas de viola ganharam força com as tropas que conduziam os gados e se reuniam em roda para contar histórias: alguém dedilhava a viola enquanto outros contavam os causos da vida cotidiana. Foi assim que surgiu a dupla caipira, com a voz principal e a segunda voz entoando uma terça abaixo. Alguns destaques desta época foram as duplas Cascatinha e Inhana, Milionário e José Rico e o solo Tião Carreiro.
Na década de 1980 houve uma exploração comercial massificada do sertanejo com tendência romântica, revelando nomes como Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Zezé Di Camargo e Luciano, além da cantora Roberta Miranda e das duplas femininas As Mineirinhas e As Marcianas.
No início dos anos 2000 surgiu o sertanejo universitário, protagonizado por cantores jovens. O estilo uniu o ritmo sertanejo raiz com a herança das polcas, guarânias e chamamé do Paraguai, tão características da região Centro-Oeste. Nomes como João Bosco e Vinícius, Jorge e Mateus e Michel Teló tomaram conta do cenário nacional. Destacam-se também o surgimento de cantoras femininas como Maiara e Maraisa, Marília Mendonça e Bruna Viola.
Enquanto o sertanejo raiz tem o dialeto mais caipira e é envolto em histórias sobre a família e a vida no campo, o sertanejo universitário passou a ter menos histórias em suas letras e ficou conhecido como a música da “sofrência”, com temas como traição, término de relacionamento e decepções amorosas.