Dois pais ou duas mães no papel? Multiparentalidade já é oficial

Da origem biológica aos laços de afetividade, o Direito vem se adaptando às transformações e a todos os jeitos de “sentir-se família”

Camilla Hoshino Publicado em 25.05.2022
A imagem mostra uma colagem com certidões de nascimento ao fundo. Em primeiro plano, uma criança negra sorrindo ao lado de dois homens e uma menina abraçada a duas mulheres.
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Resumo

A multiparentalidade já é uma realidade por meio da filiação socioafetiva. Ela acontece em contextos onde já existem vínculos, seja no núcleo familiar ou fora dele, sendo considerada um verdadeiro ato de amor para o reconhecimento de novos arranjos familiares.

Quem insistir na ideia de que “mãe e pai só existe um” certamente ficará parado no tempo. As configurações de família mudaram e vêm desafiando o Direito a lançar novos olhares para relações de amor, inclusive para a multiparentalidade, ou seja, a possibilidade de crianças,  adolescentes e adultos terem mais de um pai ou mais de uma mãe registrados na certidão de nascimento. O termo que oficializa esse reconhecimento é a filiação socioafetiva. 

Quando se fala em novos modelos familiares, é muito comum pensar em famílias reconstruídas, quando uma pessoa que já possui filhos de outras relações os leva para conviver com seu novo companheiro ou companheira. Nesses casos, como explica a doutora em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e advogada especialista em Direito de Família, Ligia Ziggiotti de Oliveira, quando há desejo de todas as partes, padrastos e madrastas podem ser admitidos como pais e mães do ponto de vista jurídico, por meio da filiação socioafetiva, sem que haja diferença de status em relação às mães e aos pais biológicos.  

Enquanto a filiação biológica é definida por laços consanguíneos, a socioafetividade, como o nome sugere, é pautada na afetividade. “Não se trata só de ‘afeto’, se você gosta ou não da criança, mas a ‘afetividade’ inclui atos de responsabilidade cotidianos e contínuos que fazem com que o filho passe a colocar esta pessoa no significante ‘pai’ ou ‘mãe’, afirma Ligia. Para a advogada, esse reconhecimento é considerado uma realização de um direito de crianças e adolescentes. 

Qual a diferença entre filiação socioafetiva e adoção?

Existem diferenças de cunho emocional e técnico, de acordo com Catia Sturari, advogada especialista em Direito de Família. A filiação socioafetiva acontece dentro do âmbito social de um indivíduo. Na adoção, direcionada a crianças e adolescentes em instituições de responsabilidade do Estado, as famílias entram em filas, passam por estudo e processo de triagem para serem consideradas aptas. A partir disso, elas passam a construir uma convivência e a se adaptar a uma determinada criança, mediante acompanhamento judicial. 

Do ponto de vista técnico, segundo ela, na adoção,  pais e mães biológicos costumam perder o poder familiar e saem da certidão de nascimento, restando somente os nomes dos adotivos, sem coexistência de vínculos. 

Socioafetividade: amor, convívio e responsabilidade

Na prática, como observa Catia Sturari, a filiação socioafetiva é um caminho para qualquer indivíduo que não teve a oportunidade de ter filhos legítimos, escolher a quem deixar sua herança. Se um menor de idade for registrado nessa condição, em caso de separação do casal, ele deve receber pensão alimentícia de quem o registrou, que também fica submetido às obrigações de guarda, visitas, entre outras.

Um filho socioafetivo passa a ser detentor de todos os direitos e deveres de um filho biológico

Mas, apesar de casos de madrastas e padrastos serem bastante comuns, desde 2016, o direito vem amparando juridicamente casos de parentesco civil por esse tipo de vínculo. Isso significa que um padrinho pode reconhecer sua afilhada, uma “tia de criação” pode filiar o sobrinho, dois irmãos podem registrar a filha da melhor amiga, e até mesmo uma mãe biológica arrependida pode reconstruir a relação com o filho adotado por uma outra família. 

Por mais complexo que seja o fator que leva à filiação, Catia acredita que essa seja uma conquista histórica, já que não vale apenas para relações de mães, pais e filhos, mas também há a possibilidade de reconhecer um neto, um irmão, uma irmã ou uma avó socioafetivo. “Esse reconhecimento oferece uma amplitude de família e torna o indivíduo devidamente inserido no âmbito familiar”, afirma. 

Como realizar a filiação socioafetiva?

A partir do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para maiores de 12 anos, a filiação socioafetiva pode acontecer diretamente no Cartório de Registro Civil, com a documentação de todos os envolvidos. Para crianças menores de 12 anos, é necessário realizá-la judicialmente, com a comprovação de evidência afetiva, que podem ser cartas, fotografias, entre outros documentos que indiquem dependência, como plano de saúde. No caso de menores, existe um termo específico que deve ser assinado pela mãe ou pelo pai biológico.

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