‘Vamos formar nossas famílias pretas, de duas mães, e mostrar que o amor entre mulheres é lindo’, dizem Aline e Alessandra, mães dos gêmeos Jamal e Jawari
Aline e Alessandra, mães dos gêmeos Jamal e Jawari, compartilham suas experiências de uma maternidade preta, lésbica, periférica e em dose dupla. “Vamos formar nossas famílias pretas, de duas mães e mostrar que o amor entre mulheres é lindo!”
“Nossas crianças não vão crescer mal-influenciadas, nem mal-educadas, nem com nenhum ‘defeito’ porque foram criadas por duas mães. Muito pelo contrário, vão crescer sendo mais felizes e mais sortudas ainda, porque, justamente, têm duas mães, né?”. No mês do orgulho LGBTQIA+, Aline Brito, 24, manda o recado com a companheira Alessandra Santos, 30. Pretas, lésbicas e da quebrada, o casal compartilha o cotidiano na página Maternidade Sapatão, no Instagram, mostrando uma maternidade possível e real feita por duas mães.
Com o Provimento Nº 83 de 14/08/2019 do Conselho Nacional de Justiça, mães de crianças de filiação socioafetiva (maternidade caracterizada pelos laços de afeto) que tenham tido seus filhos por inseminação artificial caseira só podem registrar as crias por meio de processo judicial, em vez do trâmite regular feito em cartório. “Tem casal que até desiste de colocar o registro das duas mães ou pais por causa de toda essa burocracia”, endossa Aline. Devido a esta barreira, elas optaram pela fertilização in vitro (FIV) e se tornaram o primeiro casal de relação homoafetiva a registrar os filhos no 1° Cartório de Registro Civil do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo.
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O Lunetas conversou com as mamães da Maternidade Sapatão sobre as dores e as delícias de uma maternidade preta, lésbica, periférica e em dose dupla: dos gêmeos Jamal e Jawari, hoje com oito meses.
Lunetas – Como surgiu a vontade de serem mães?
Maternidade Sapatão – A vontade de ser mãe sempre foi um sentimento comum. Até que um dia, uma amiga pediu para que ficássemos com sua bebê, na época com dez meses, enquanto ela trabalhava. Cuidamos da Deise e vivemos toda a fase de trocar fralda, dar comidinha, dar banho etc. Conviver com aquela bebezinha preta, maravilhosa, fofa, mexeu com a gente. Ela chegava aqui em casa, bem cedo, ainda dormindo, e nós ficávamos na cama até meados da manhã. Ter aquela criancinha linda no meio de nós foi dando uma coceira no útero. Um belo dia, pensamos: “Mano, estamos prontas, queremos ser mães!”
A maternidade é uma loucura gostosa, mas não é fácil. Maternidade significa amor, resistência, se entregar, estar disposto.
A vontade de maternar, sendo mamães pretas e periféricas, foge dos moldes brancos e heteronormativos. Como foi a recepção da família quando vocês decidiram ter filhos?
MS – A família foi super receptiva, dos dois lados. A gente até fez uma revolução na família da Lê, que tem uma avó de oitenta anos, do interior de Minas Gerais, com a cabeça fechada. Ela não aceitava o nosso relacionamento de jeito nenhum, nem o fato de a neta ser uma mulher lésbica. Quando a Alessandra se assumiu enquanto sapatão, ela a expulsou de casa e falou: “Não vou aceitar o diabo fazendo ciranda no meu quintal!”. Quando a Lê engravidou, a avó ficou confusa: “Como assim? Ela não namora com uma mulher e agora está grávida?”. Foi demais pra sua cabeça, deu um bug ali! Mas a família conversou com ela. Acho que a avó, como boa cristã, entendeu que não tinha o que dar errado, não tem pecado nisso. Hoje, é uma bisa super babona! Como mães e mulheres pretas, foi muito importante sua aceitação, até pela ancestralidade. Ela é a matriarca, a mulher preta mais velha da nossa família.
Ter a aceitação dessa mulher mais velha é fazer com que nossos filhos cresçam em contato e aproximação com essa ancestral.
Por que e como foi optar pela inseminação?
MS – A gente queria fazer a fertilização caseira pela questão do preço, já que a fertilização in vitro é muito cara. Mas para registrar uma criança fruto da fertilização caseira, o casal precisa ser casado e ter um documento com a assinatura do doador dizendo que fez a doação por livre e espontânea vontade, que não vai exigir vínculo com a criança, que a mãe não vai querer cobrar a paternidade judicialmente etc. Tem casal que até desiste de colocar o registro das duas mães ou pais por causa da burocracia.
Mas surgiu a oportunidade de fazermos a FIV. Foi quando uma amiga do nosso barracão de candomblé avisou que em uma clínica estavam precisando de uma mulher preta que quisesse doar óvulos, e em troca ganharia a gestação se optasse por engravidar. Esse método é bem popular entre famílias de baixa renda, chama-se ovodoação compartilhada.
A clínica forneceu uma declaração que apresentamos ao cartório, junto com o documento de nascido vivo que recebemos na maternidade e o RG das duas mães, sem nem mesmo sermos casadas. Burocracia nenhuma, uma chance de ouro!
Como foi o processo para vocês construírem sua rede de apoio?
MS – Todos que conhecemos são da quebrada, né? E a gente sabe que a quebrada se lascou com esse covid, então muitas pessoas ficaram desempregadas e sem dinheiro. A gente mora no Capão Redondo, perto de Itapecerica da Serra, e chegar até aqui é um custo, dependendo do lugar da cidade precisa pegar ônibus, trem, metrô… A família da Lê mora aqui perto, mas minha família vive em Santos, sem contar que já é uma galera mais velha que se resguardou por ser grupo de risco.
Nossa rede é à distância. Teve gente que mandou dinheiro para fralda e comida, que fez vaquinha para arrecadar cesta básica. A gente teve uma rede de apoio muito daora e até hoje temos por causa da página. Mas sentimos falta do presencial. O bicho pega dentro de casa, porque às vezes queremos comer, tomar banho, não queremos segurar o bebê o tempo todo, é o maior corre! Oito meses que os meninos nasceram e, desde então, a nossa casa é uma bagunça.
Vocês sabiam que seriam mamães de gêmeos desde o início?
MS – A gente já sentia que isso podia acontecer. O médico até nos alertou: “Se eu colocar dois embriões aqui, vocês serão mães de gêmeos”. Nas clínicas, eles dão preferência de inserir um ou dois embriões, para ter maior probabilidade de dar certo. Sabemos que a FIV depende da saúde do útero e da fertilidade da mulher, e que quanto maior a idade da mulher, menor a fertilidade. Nós somos jovens, a Lê engravidou dos meus óvulos que eram ótimos, e ela também tem um útero saudável. Não tinha o porquê dar errado, né? A gente virou mãe de gêmeos, então o receio se tornou sorte, axé! Dentro do candomblé temos o orixá Ibeji, que é aquela divindade que são duas crianças, gêmeos.
No candomblé, falam que as mulheres que engravidam de ‘ibejis’ são úteros abençoados, de axé.
Vocês estão fazendo a amamentação compartilhada. Como foi o preparo e como está sendo esta experiência hoje?
MS – A Lê tinha visto que havia possibilidade de duas mães amamentarem juntas e sabemos a importância da amamentação – e quanto mais leite materno, melhor! Eu, Aline, faço uso de um medicamento que estimula a produção de leite. Quando os meninos nasceram, a Lê estava se recuperando da cesárea e a primeira mamada delas foi comigo. A gente divide a amamentação, principalmente às noites. A Lê teve hiperêmese gravídica [ocorrência de vômitos incontroláveis durante a gravidez, resultando em desidratação, perda de peso e dificuldade para alimentação] e muitos nutrientes não chegaram aos bebês. Eles nasceram com PIG (Pequeno para Idade Gestacional), e saíram da maternidade com a receita para tomar fórmula. Mas a gente bateu o pé no hospital para poder alimentá-los só com leite materno e nos empenhamos nisso!
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O racismo se mostra muito presente na vida de meninos pretos desde cedo. Como vocês estão se preparando para essas situações que envolvem riscos?
MS – Nós, que somos mães pretas, ficamos assustadas com isso. Temos medo de nos tornarmos mães bitoladas: nossos filhos nem cresceram, nem foram para a rua ainda e já morremos de medo. Se tiver que pagar churrasco aos nossos filhos e outros dez amigos pretos para ficarem em segurança aqui dentro de casa, vai ser ótimo! Ou se por um acaso eles quiserem sair, vamos levá-los e buscá-los na porta do rolê. Amamos ter uma família preta mas, ao mesmo tempo, existe o medo em ser mãe de meninos pretos.
É muito problemático que nossos homens pretos aprendam no choque, no susto, a importância de sair de casa documentado com o RG.
Além do racismo, o fato de serem filhos de duas mães pode gerar preconceito na escola e no círculo social da criança. Como vocês planejam conversar sobre esta questão com eles?
MS – O fato de eles serem filhos de duas mães nem nos aterroriza tanto assim, porque essa é a realidade! Esperamos que daqui a alguns anos existam mais famílias de duas mães, dois pais… O que deixa a gente em choque é o racismo dentro da escola, principalmente com a questão do cabelo, algo com que muitas crianças pretas sofrem. Pretendemos colocá-los na creche após os três anos, porque se alguma coisa acontecer com eles lá dentro, acreditamos que com esta idade eles já vão conseguir se expressar de alguma forma.
Qual o significado dos nomes dos gêmeos?
MS – A gente queria um nome que fosse bonito, que tivesse um bom significado e que pudesse representá-los de alguma maneira. “Jamal” significa belo, perfeito, elegante, e “Jawari” significa paz amorosa. A gente quis colocar o nome composto que foi o “Akesan”, um dos nomes do orixá Exu.
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Vocês têm algum recado para as mulheres lésbicas?
MS – A dica que damos para minas que querem ter filhos é ligar às clínicas e procurar os métodos de ovodoação compartilhada pelo valor acessível. Vamos formar nossas famílias pretas, de duas mães, jogar na cara do patriarcado e mostrar que o amor entre mulheres é lindo! E que nossas crianças não vão crescer mal-influenciadas, nem mal-educadas, nem com nenhum defeito porque foram criadas por duas mães. Muito pelo contrário, vão crescer sendo mais felizes e mais sortudas ainda, porque, justamente, têm duas mães, né?
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