Maternidade e carreira: ‘Quem exclui a criança, exclui a mãe’

Em entrevista ao Lunetas, a jornalista Ellen Paes fala sobre as barreiras que afastam mães do mercado de trabalho e os primeiríssimos passos para superá-las

Camilla Hoshino Publicado em 22.06.2018 Atualizado em 11.08.2022
Mulher negra fala ao telefone na frente de um computador ao lado de um bebê negro sentado à mesa segurando um lápis
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Resumo

Se várias barreiras afastam as mães do mercado de trabalho, políticas públicas e iniciativas de empregadores devem garantir uma reparação para enfrentar a desigualdade de gênero. É sobre isso que fala a jornalista Ellen Paes em entrevista ao Lunetas. Confira.

É possível conciliar maternidade e carreira? Para a jornalista e militante Ellen Paes a resposta é sim, contanto que haja condições que favoreçam a maternidade. “As mulheres invadiram o mercado e a universidade, mas ainda sob péssimas condições, com salários mais baixos ou em posições sem poder de decisão”, avalia.

Ellen Paes é jornalista, diretora e roteirista de audiovisual. Em 2017, lançou o documentário #EuVocêTodasNós, em que figura como personagem central e diretora. No mesmo ano, participou da construção do relatório sobre violência de gênero das Nações Unidas e fez parte do primeiro Catálogo Intelectuais Negras, documento que reúne mulheres negras de destaque em atividades intelectuais de todo o país. Atualmente, é editora-chefe, apresentadora e roteirista no Canal Saúde. 

A perspectiva de carreira encontra outras pedras no caminho a partir da gravidez: de um lado, o cuidado infantil ainda delegado principalmente às mulheres e, de outro, ambientes de trabalho sem preparo para acolher mães e crianças. Para Ellen Paes, o primeiro passo para sair deste dilema é a garantia de políticas públicas.

A jornalista reforça, no entanto, a importância de realizar um recorte de raça e territorialidade, considerando que as mulheres negras estão na base da pirâmide social. “Se mulheres pretas e pobres têm lugares desprivilegiados por questões estruturantes e se ao concorrer com mulheres brancas ou que moram em lugares mais centrais, elas saem perdendo, logo, as políticas públicas precisam estar presentes tratando-as de forma diferente”, defende.

Em entrevista ao Lunetas, a jornalista fala sobre os caminhos necessários para diminuir a distância entre mães e mercado de trabalho e conta como foi retomar a vida profissional após o nascimento de sua filha Valentina.

Foto da jornalista Ellen Paes, uma mulher negra vestindo blusa em tons terrososConfira a entrevista

Lunetas: A garantia de permanência das mães no mercado de trabalho ainda é uma demanda invisível no Brasil?
Ellen Paes: Não é que seja invisível, estamos falando e pautando essa questão faz tempo, mas não há vontade política de mudar. Acredito que seja mais interessante para a manutenção do status quo que as mães permaneçam “sob controle”. Para que fiquem em casa ou não tenham mais poder financeiro do que os homens/pais.

Por um lado, a responsabilidade sobre o cuidado infantil ainda é delegada principalmente às mulheres. Por outro, a falta de políticas específicas e ambientes de trabalho que não estão preparados para acolher as crianças. Quais os primeiríssimos passos para superar esse dilema?
EP: Acredito que as políticas públicas não podem esperar que a sociedade mude. São elas que vão forçar uma reparação. Então, penso que é preciso que as mães tenham possibilidade de ter onde deixar seus filhos enquanto trabalham, que as empresas sejam obrigadas a oferecer creche ou que haja algum tipo de auxílio. As universidades, como instituições públicas, também precisam de creches. Hoje estamos passando por um momento delicado. As mulheres invadiram o mercado e a universidade, mas ainda sob péssimas condições, com salários mais baixos ou em posições sem poder de decisão. As mães estão carregando suas crias para estes espaços e isto tem incomodado. Não é culpa delas. Todos deveriam se sentir responsáveis pelas crianças. “Para se criar uma criança, é necessário uma aldeia“, como diz um provérbio africano. Eu acredito piamente nisto.

  • As eleições municipais de 2020 registraram um recorde na quantidade de candidatas na disputa, 187.023 em todo o país. Contudo, o número representa ainda apenas um terço das candidaturas (33.6%). Entre os prefeitos eleitos nas capitais, apenas Palmas (TO) elegeu uma mulher, com a vitória de Cinthia Ribeiro (PSDB), reeleita ainda no 1º turno.
  • No Brasil, 60,9% dos cargos gerenciais (públicos ou privados) eram ocupados por homens enquanto apenas 39,1% pelas mulheres, em 2016.
  • Em 2019, enquanto o rendimento médio mensal dos homens era de R$ 2.555, o das mulheres era de R$ 1.985, cerca de ¾ do valor. (Fonte: IBGE)

Por que é tão necessário realizar um recorte de raça e territorialidade quando se pensa em políticas públicas voltadas à maternidade e ao mercado de trabalho?
EP:
Porque mulheres negras e pobres estão na base da pirâmide social: são ao mesmo tempo as mais pobres, a maioria e também quem sustenta e carrega essa pirâmide nas costas. Para começar, por uma herança escravagista. Quem é descendente de negros que foram escravizados, já saiu 350 anos atrasada na corrida das oportunidades. E essa corrida continua desigual até hoje. Na maioria das famílias negras, a primeira geração de mulheres com formação superior só está acontecendo agora, pós-política de cotas raciais e sociais. Mas não é só isso. O racismo, o machismo e o elitismo são estruturantes desta pirâmide. Então não é tudo culpa da escravidão. A sociedade atual colabora para que a estrutura permaneça excluindo.

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Arquivo pessoal

Estudo divulgado pelo New York Times, em 2017, mostrou que, embora homens e mulheres possuam salários parecidos no início de carreira, a diferença se acentua em torno dos 30 anos quando muitas mulheres passam a ter filhos. De acordo com os dados, mulheres solteiras e que não são mães têm maiores chances de garantir paridade salarial.

“Se mulheres pretas e pobres têm lugares desprivilegiados por questões estruturantes e se ao concorrer com mulheres brancas ou que moram em lugares mais centrais elas saem perdendo, as políticas públicas precisam considerar essas peculiaridades”

É aquela velha história de que justiça não é igualdade. Precisamos de mais, de equidade: dar tratamento igual a pessoas iguais e diferente a pessoas diferentes para que todos possam de fato conseguir sair nesta corrida de posições iguais/equânimes.

No Mapa da Desigualdade, divulgado em 2017 pela Rede Nossa São Paulo, as mulheres negras aparecem em primeira posição no ranking da desigualdade na capital paulista. A pesquisa mostra que elas moram em regiões periféricas da cidade, sem acesso aos principais equipamentos públicos. Além disso, adolescentes negras registram os maiores índices de gravidez.

Lunetas: Após a gravidez, muitas mulheres têm dificuldades para voltar ao trabalho. Pensando a partir da sua experiência pessoal, quais caminhos são possíveis para as mães que desejam continuar suas carreiras?
EP: É um dilema imenso. Precisamos lidar com a necessidade de um bebê versus a nossa necessidade. Minha experiência pessoal passou por dois momentos. No primeiro, precisei deixar minha filha em uma creche aos oito meses para retornar ao trabalho. Só que era um trabalho que não me recompensava: ganhava mal e passava o dia inteiro fora. Sentia que não estava valendo a pena. Então deixei este trabalho e depois só retornei ao mercado quando uma porta mais interessante se abriu. O mais difícil foi lidar com a culpa. O tempo que passamos longe, a adaptação da amamentação (sim, amamentei por quatro anos e três meses mesmo trabalhando), as inseguranças. Hoje penso que fiz o que foi melhor para nós duas.

“A maternidade não me define, ela é apenas uma das partes de mim”

Eu também sou a Ellen, jornalista, documentarista, ativista, apresentadora, escritora. Enfim, quero continuar explorando as mil possibilidades de ser quem sou. Apenas uma delas é o ‘ser mãe’.

Eu não sei quais caminhos possíveis para todas, acho muito pretensioso que eu possa dizer isso por todas as mães, é muito particular. Depende do que cada uma quer. Inclusive algumas ficam satisfeitas em ser apenas mães por um tempo e está tudo bem. Penso apenas que o que devemos dizer é que, sim, é possível você ser uma boa mãe e uma boa profissional desde que tenha condições para isso. Por isso reafirmo a importância das políticas públicas aqui, pois nem todas terão essas mesmas condições.

Uma pesquisa realizada em janeiro de 2018 pela empresa de recrutamento Catho revelou que 30% das mulheres já abriram mão de seus empregos após se tornarem mães. Esse número é quatro vezes maior do que o de pais. Os dados também mostram que para mães que abandonam o mercado por conta de filhos, apenas 8% conseguiram voltar em menos de seis meses (para os homens este índice é de 33%).

Lunetas: Você conhece boas práticas em ambientes de trabalho que podem ser saídas interessantes para o acolhimento e a permanência das mães?
EP: Conheço empresas com creches ou que permitem que a mãe saia para poder amamentar os filhos. São experiências que acredito exitosas, mas não as conheço de perto. O que eu sempre fiz foi tentar dialogar com a empresa. Ou mesmo levar minha filha para trabalhar comigo, quando não me resta outra alternativa.

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