Mapa do aborto legal: como é o acesso ao procedimento no Brasil?

Hub de conteúdos lançado pela Artigo 19 mostra em quais casos o aborto é permitido, hospitais que realizam o procedimento e dados sobre o panorama brasileiro

Eduarda Ramos Publicado em 13.10.2022
Uma mulher está sentada de costas, olhando para uma janela, em um leito de hospital.
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Resumo

O aborto é permitido pela legislação caso a gestação seja decorrente de violência sexual, apresente risco à vida da mulher ou o feto tenha anencefalia. O hub de conteúdos “Mapa do aborto legal” reúne informações sobre o procedimento realizado no Brasil.

O aborto legal no Brasil é permitido em três casos: gravidez decorrente de estupro, gestação que apresenta risco à vida da mulher ou feto com anencefalia (não desenvolvimento do cérebro). Para auxiliar gestantes que se encaixam em alguma das situações previstas e que desejam realizar o procedimento, a Artigo 19 elaborou um hub de informações sobre o aborto legal no país, com hospitais que realizam o procedimento e seções tirando dúvidas, entre outros conteúdos.

A partir dos dados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos em Saúde (CNES), o Mapa do Aborto Legal constatou que, em 2022, de 132 hospitais contatados que oferecem serviço especializado de atenção às pessoas em situação de violência sexual, 73 afirmaram que realizam o procedimento de interrupção de gestação, sendo que 58 realizam em qualquer circunstância prevista em lei. Vinte hospitais disseram não realizar o procedimento, enquanto outros 21 declararam a necessidade de apresentação de Boletim de Ocorrência (B.O.) ou autorização judicial para ter acesso à interrupção de gravidez em caso de estupro, prática que não é obrigatória há décadas, segundo o Código Penal.

Como funcionam as leis sobre aborto no Brasil?
O Código Penal de 1940 configura aborto como crime, com pena de um a três anos (artigo 124 do Decreto-Lei nº 2.848), exceto em casos de estupro ou gestação que ofereça risco de vida. Os primeiros serviços de aborto legal foram estabelecidos no país entre os anos 1990 e 2000, e a única alteração desde 1940 aconteceu em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que gestantes com fetos anencéfalos podem interromper a gestação legalmente. Em casos de estupro, não é necessária a apresentação de boletim de ocorrência, exame do Instituto Médico Legal ou autorização judicial.

Júlia Rocha, internacionalista e coordenadora do programa de Acesso à Informação e Transparência da Artigo 19, conta que a motivação para reunir dados sobre aborto legal veio “justamente pela ausência dessa informação disponibilizada e largamente divulgada”. Para ela, que desenvolve trabalhos voltados ao direito à informação sobre direitos sexuais e reprodutivos desde 2015, “falar sobre aborto legal é ampliar o acesso a informações sobre saúde pública no Brasil, além de promover serviços de acolhimento para pessoas que tenham sido vítimas de violência sexual”, garantindo que gestantes possam realizar o procedimento de maneira legal e ter seus direitos efetivados.

Caso haja uma gravidez decorrente de estupro, a vítima deve receber tratamentos contra doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), pílula do dia seguinte e apoio psicológico. O acesso ao aborto legal possui normas referentes à idade gestacional (até 22 semanas) e o feto deve pesar até 500 gramas. Se a gravidez oferece risco de vida, deve ser apresentado um laudo com a opinião de dois médicos, sendo um deles especialista em gineco-obstetrícia. Já em casos de anencefalia fetal, deve ser apresentada uma ultrassonografia que comprove a má-formação. Não há idade gestacional máxima para interrupção da gestação nestes dois casos, mas quanto mais cedo, menos riscos para a gestante.

Como é o panorama do aborto no Brasil?

Segundo levantamento feito pelo Lunetas no Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), 1.387 autorizações de internação hospitalar (AIH) de abortos realizados por razões médicas foram registradas entre janeiro e agosto de 2022. Das autorizações voltadas a crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, foram 69 procedimentos, sendo 41 pacientes meninas negras (pretas e pardas). A maioria dos procedimentos (26) aconteceu na região Norte.

Das AIHs que envolvem atendimento após abortos espontâneos ou realizados por outras razões, os números sobem para 110.166 internações, sendo 773 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, e três meninas atendidas entre 5 e 9 anos. Não é possível mensurar quantos dos abortos totais acontecem de forma clandestina, pois envolvem também abortos decorrentes de gravidez ectópica (quando o embrião se desenvolve fora do útero, geralmente nas tubas uterinas) ou molar (gestação que pode gerar um tumor no útero).

Vale ressaltar que, em 2021, foram registrados 35.735 estupros de vulnerável contra meninas menores de 13 anos – a maioria dos casos acontece por agressores conhecidos das vítimas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. O documento também indica que, em 2020, existiam 3.651 pontos de exploração sexual infantil nas rodovias federais, mas apenas 29% do universo de pessoas que já tinham visto ou sabiam de alguma situação desta natureza denunciavam. A situação indica um alto índice de subnotificações voltadas ao crime “devido à tendência de culpabilizar a vítima pela violência sofrida, como apontam os responsáveis pelo Anuário. 

Em junho deste ano, uma menina grávida aos 11 anos sofreu tentativas de repressão ao não ser informada sobre seus direitos de acesso ao aborto legal por Joana Ribeiro Zimmer, juíza responsável pelo caso. Frases como “Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal” e “Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?” foram ditas pela juíza, reforçando um comportamento de revitimização – violência institucional que consiste em submeter a vítima a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, e levando-a a reviver, sem necessidade, situações de violência ou outras potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização.

Para Júlia Rocha, falar sobre o direito ao aborto legal “impede que pessoas adultas, crianças e adolescentes sejam revitimizadas no processo de atendimento, constrangidas e, portanto, violentadas uma vez mais”, além de evitar que recorram a métodos inseguros de interrupção da gravidez. Além do caso envolvendo a juíza Joana Zimmer, Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, esteve envolvida em tentativas de impedir que uma outra menina, de 10 anos, grávida após um estupro, realizasse o procedimento de interrupção da gravidez previsto em lei.

“Toda gravidez infantil é resultante de estupro. A promoção do direito ao aborto legal protege crianças e adolescentes de gestações de altíssimo risco, de novas situações de violência e lhes garante direito à vida e à integridade pessoal” – Júlia Rocha

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