A Ocupação Lydia Hortélio, no Itaú Cultural, relembra a potência da oralidade. Quem canta para a criança é um potente intermediador cultural
Música, brincadeira, tradição e infância. Essas palavras estão diretamente ligadas à vida e à obra da etnomusicóloga Lydia Hortélio, homenageada na 45ª ocupação do Itaú Cultural. Confira a inspiração de sua trajetória para o tema da oralidade na infância.
“Boi”, “marcha soldado”, “pau no gato”, “caxangá”. Há expressões tão impregnadas no imaginário da infância brasileira que parecem constituir uma pessoa como outro membro qualquer do corpo. E se buscarmos a opinião da educadora e etnomusicóloga Lydia Hortélio, é possível que ela confirme o raciocínio, mas siga adiante, convidando cada um a revisitar a diversidade de repertório musical em sua própria história.
Dedicada à pesquisa sobre a música no percurso da vida, Lydia defende que as brincadeiras e suas cantigas formam não apenas a base da identidade do ser humano, mas também da cultura nacional. Inspiração para pesquisadores e interessados na primeira infância, a pesquisadora é a homenageada da 45ª ocupação do Itaú Cultural, em São Paulo.
A ocupação traz manuscritos, depoimentos, fotografias, conteúdos impressos e audiovisuais.
A mostra convida o público a emergir no universo das cantigas de roda, acalantos, jogos e brincadeiras, fruto do trabalho intelectual da educadora. Do sertão baiano de sua infância à vida universitária na Europa, um verdadeiro resgate de formas, letras, métricas e estilos que compõem a vida e a obra documental da etnomusicóloga.
“Alecrim, alecrim dourado
Que nasceu no campo
Sem ser semeado”
Foi, meu amor,
Quem me disse assim,
Que a flor do campo
É o alecrim”
Uma planta, um animal ou uma onomatopéia. Seja nos campos de alecrim, originais do Mediterrâneo, ou no cerrado brasileiro de Tocantins, lugar em que crianças e jovens do povoado quilombola de Mumbuca, na região de Mateiros, substituíram nas cirandas “alecrim” por “capim dourado”, haste que dá origem aos artesanatos tradicionais da região: a palavra cantada carrega e comunica elementos próprios de um território.
A pesquisadora Lucilena Silva, que percorreu 160 municípios brasileiros estudando a música tradicional da infância recorda que, de longa data, o Brasil é reconhecido no mundo pela sua música. Ela resgata uma observação do professor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret, que esteve no Brasil, entre 1816 e 1831, durante uma missão artístisca:
“O caráter da música brasileira deve sua melodia não somente à harmonia da língua nacional mas ainda à imaginação tão sensível desse povo que nasceu músico. Entretanto, como por toda parte, nesse paraíso terrestre, o caráter musical está submetido à influência do caráter particular dos habitantes de cada uma das províncias do império” (Debret, 1940, p. 101)
Cada região possui uma harmonia, como em cada criança há um compasso. E por meio dos brinquedos musicais da infância também é possível reconhecer a diversidade do repertório cultural do país. “Lydia Hortélio afirma que ‘a música da infância é a nossa língua materna musical’, conta Lucilene. Segundo ela, as brincadeiras feitas pela criança e para a criança estão presentes desde o nascimento e percorrem todos os passos até a idade adulta.
“Carrega os ritmos e molejos da música brasileira; a beleza da nossa poesia popular; os gestos, movimentos e desafios imprescindíveis ao desenvolvimento da criança”, diz.
E se a canção tradicional diz “alecrim”, as crianças respondem “capim”, pois dele vivem suas famílias. A substituição, portanto, não se trata apenas de brincar com as palavras, mas de trazer informações importantes sobre aspectos sociais e culturais das localidades. Além disso, aponta caminhos para compreender a forma como a criança reelabora o brincar diante das novas realidades que lhes são impostas pelo mundo, como argumenta Lucilene Silva.
Lunetas – Qual o poder da música na construção da nossa vida?
Lucilene Silva – A música nos acompanha do nascimento até a morte, isto é, dos acalantos às marchas fúnebres. É uma das formas de expressão da humanidade que canta para embalar, rezar, brincar, trabalhar e festejar.
No meu percurso de pesquisas pelo Brasil, documentando músicas da infância e de manifestações populares, registrei muitas falas que traduzem o significado da música no dia a dia do nosso povo. Dona Madalena da Silva, por exemplo, com oitenta e nove anos, no município de Pesqueira (PE), ao informar-me cento e seis cantigas que fizeram parte da sua infância, adolescência e fase adulta e que foram transmitidas aos seus sete filhos, me disse por diversas vezes: “Ainda estou viva e com saúde porque canto. Canto para rir, canto para chorar, e vivo porque assim o faço”.
“Se não fosse para cantar, já estava nascendo sem as cordas vocais. O boi muge, o passarinho pia, a gente pia se quiser, muge se quiser, relincha se quiser, mas canta todos os cantos se quiser”, diz Lydia, no filme “Tarja Branca”.
A documentação de Lydia Hortélio também indica que a música se constitui como uma das primeiras referências de afeto e segurança emocional para as crianças. Isso, porque, de acordo com a psicóloga e pesquisadora Silvia Pinheiro Machado, o ventre e o colo materno já representam espaços formadores, um berço do desenvolvimento do bebê. “Quanto mais música, melhor”, sugere.
Autora do livro “Canção de ninar brasileira: aproximações”, Silvia acompanhou diversas famílias recém-nascidas durante os períodos de pré e pós-natal e primeira infância para compor sua pesquisa, publicada em 2017 pela Editora da USP (Universidade de São Paulo). Na obra, ela analisa as canções de ninar do ponto de vista contextual brasileiro.
Diferente do que ocorre com a visão, por exemplo, as competências auditivas do bebê vão sendo desenvolvidas nos últimos meses de gestação. Desde esse período, é saudável para os bebês receber estímulos do acalanto, que não se restringem apenas à voz materna – apesar de se sobressair como sinal auditivo e vibracional -, mas a todo o núcleo social que envolve as famílias, que induz ao sono e insere o bebê em um contexto cultural afetivo.
No princípio, não era o verbo, pois ali ainda não havia a palavra. No princípio, como nos confirma o latim, era “a negação do falar”, concepção que está na origem da palavra infância, como explica Silvia Machado. Por isso é que a infância é a etapa da vida em que a comunicação e as formas de expressão se manifestam por outros movimentos. E tudo começa na boca.
“A boca é o orifício por onde ocorrem as trocas favoráveis à vida. Impossível falar sobre a importância da oralidade na infância sem recorrer ao início de tudo: a boca”
Antes da organização dos sons e formação das palavras, a psicóloga recorda que a primeiríssima infância está repleta de reações orais. O bebê engasga, mama, balbucia, abre a boca. A mãe fala, conversa, imita o nenê, manda beijinho, canta. “O oral apresenta elementos culturais que fluem e refluem através da boca”, explica Silvia.
Na opinião da professora, tudo é substrato cultural. Não apenas as canções, mas gestos, expressões faciais da mãe, a melodia da voz, o choro do bebê que se mistura no ambiente. “Tanto a hora cronológica quanto o a frase ‘está na hora de dormir’, por exemplo, introduzem elementos da nossa cultura para o bebê. Da mesmo forma, a relação oral se mantém quando o bebê se comunica e os adultos decodificam suas expressões”, exemplifica. Nesse sentido, mãe, pai, cuidadores, educadores da creche ou qualquer outra pessoa que canta para a criança dormir são potentes e imprescindíveis intermediadores culturais.
“Tudo é substrato cultural”, afirma a psicóloga e Silvia Pinheiro Machado.
Aqui, há uma diferença, como explica Silvia, entre o cantar para brincar, das canções de roda – que chamam para uma ação – e a canção de ninar – que tem o intuito de reduzir a marcha e acalmar.É também o que faz as canções de ninar apresentarem um potencial curativo.
“O canto, ao organizar um determinado ritmo, possui uma ação calmante sobre as crianças, é uma espécie de terapia”
Enquanto a fase inicial da primeira infância engloba um tipo de oralidade e se restringe basicamente ao espaço familiar, com o passar dos anos, as crianças começam a adquirir autonomia e clareza, a partir da expressão oral por meio da fala. Esse processo as torna ouvintes, interlocutores, protagonistas de situações comunicativas e se conecta com as experiências vividas até então por meio da diversidade de oportunidades comunicativas.
Mas parece que a presença das crianças em quartos privados ou em frente à televisão, tablets e equipamentos eletrônicos tem influenciado a frequência cada vez menor do repertório das brincadeiras cantadas no cotidiano, assim como suas possibilidades de contato com a música e, consequentemente, com a musicalização que ocorre naturalmente a partir deste repertório. Essa é a opinião de Lucilene Machado sobre o contexto atual da infância nas grandes cidades brasileiras.
“Nas últimas décadas, as brincadeiras ritmadas, que têm como elemento principal a palavra recitada e o ritmo cresceram significativamente em número e paralelamente decrescem as brincadeiras cantadas”, afirma, a partir do estudo do repertório das brincadeiras brasileiras no final do século XX e início do século XXI, em sua pesquisa de doutorado.
A partir desse cenário de perda de tradições no meio urbano, a psicóloga Silvia Pinheiro Machado reforça a importância de tratar do tema na Educação Infantil. Para ela, os profissionais da área devem compreender que estão trabalhando com patrimônios culturais da infância.
“Assim como escolhemos os melhores alimentos para as crianças, é preciso conhecimento para escolher os elementos culturais com os quais trabalhar”
Ambas as pesquisadoras, admiradoras do legado de Lydia Hortélio, reconhecem a potência da musicalidade, da cultura e da ancestralidade nas brincadeiras, cantigas e no repertório construído pela infância no Brasil. A contribuição da educadora baiana para o país? “Sensibilidade, doçura e muita cultura”, brinca Silvia Pinheiro Machado. Afinal, é brincando que se faz história. Brincar é uma forma de dizer – cantando, jogando, dançando – que ainda é possível se cantar pelo mundo.
No dia 21 de agosto (quarta-feira), das 19h30 às 21h30, durante a Ocupação Lydia Hortélio, haverá um bate-papo entre a pesquisadora e psicóloga Silvia Pinheiro Machado e Cristiane Velasco, educadora, contadora de histórias e escritora, com Especialização em Arte-Educação pela Universidade de São Paulo. A conversa terá a mediação da pedagoga Ana Cláudia Arruda Leite.
Com entrada gratuita, o encontro acontecerá no auditório do Itaú Cultural, na Avenida Paulista, e será realizado pelo Lunetas, em parceria com o Itaú Cultural. A partir do tema “A importância dos acalantos na construção da identidade e de vínculos fortes e saudáveis na primeira infância“, as convidadas vão conduzir junto ao público um bate-papo em torno da importância das primeiras músicas da infância como os primeiros referenciais de afeto e saúde emocional da criança.
“O eixo temático os acalantos. A primeira música da infância, que são as canções de ninar, mas não só. Acalanto como verbo, que traz significados profundos vinculados à infância, como de acalentar, embalar, aconchegar, filiar, aninhar, ninar…E também de acalentar esperanças, embalar sonhos de futuro, na inteireza do presente. Do corpo, dos sentidos”, conta Ana Cláudia.
“Nesse sentido, acalanto não é apenas um nome ou categoria literária. Sua vastidão espraia pelos dedos, não só pelos seus múltiplos significados, mas pela reverberação que eles têm na alma”
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Vida e obra
Lydia Hortélio tem formação em música: piano, educação musical e etnomusicologia, com estudos no Brasil, na Alemanha, em Portugal e na Suíça. Trabalha com pesquisa e documentação das manifestações musicais da zona rural do município de Serrinha, sertão da Bahia, onde passou sua infância, e com a cultura da criança no Brasil.