Júlia Rocha: ‘ser médica no SUS é o que dá sentido à minha vida’

Conheça a médica que ficou famosa no Facebook contando sua rotina de atendimento no consultório. Ela falou sobre atendimento humanizado, o SUS e a maternidade

Mayara Penina Publicado em 25.07.2017
Foto em preto e branco. Mulher de cabelo cacheado amamenta um bebe que está segurando no colo.

Resumo

Nesta entrevista, a médica Júlia Rocha contou sobre seus textos no Facebook, sua motivação para escrevê-los, as dores e as delícias do trabalho do SUS – Sistema Único de Saúde e a maternidade.

Filha de pai médico e mãe cantora, Júlia Rocha, não conseguiu escolher se gostava mais da música ou da medicina. Então, resolveu seguir as duas carreiras. “Meu pai é médico, muito apaixonado pela profissão, minha mãe é cantora, trabalha com música. Minha casa sempre foi um ambiente musical, frequentado por muitos artistas. As duas paixões foram surgindo naturalmente”, conta Júlia Rocha, que ficou famosa nas redes sociais depois de escrever sobre sua rotina como médica de família em uma Unidade Básica de Saúde – UBS, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro.

Julia Rocha é conhecida no Facebook por seus textos que geram engajamento e reflexão sobre situações da sociedade nos dias atuais. Em um deles, ela responde a polêmica da “peleumolia”. Neste aqui, ela sobre a luta invisível das mães que querem amamentar.

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Júlia Rocha é a médica, mãe, sambista e influencer que fala sobre

 

EXISTE PELEUMONIA.Eu mesma já vi várias. Incrusive com febre interna que o termômetro num mostra. Disintiria,…

Posted by Júlia Rocha on Friday, July 29, 2016

Júlia divide a rotina de médica também com vida de sambista. Aos finais de semana, ela e Átila, o marido, se apresentam em bares e festas. “Eu só consigo fazer tantas coisas por que tenho apoio efetivo dele que, além de músico da nossa banda, é produtor, faxineiro, cozinheiro e pai. Ele põe a mão na massa de verdade. Além dele, conto sempre com ajuda da minha mãe, da minha irmã e das minhas amigas que se revezam pra cuidar da minha filhota nos dias de show”, conta.

Nesta entrevista, a médica contou sobre seus textos, sua motivação para escrevê-los e seu trabalho no SUS – Sistema Único de Saúde.

“Eu comecei a escrever quando ainda estava na residência médica. Os textos começaram a viralizar e o alcance deles rapidamente saiu do meu controle. Hoje são mais de 130 mil seguidores. Eu vejo tudo isso como uma grande responsabilidade. Claro que tenho meus posicionamentos políticos, minha leitura da vida e acho legítimo expor essas coisas de vez em quando, mas o meu foco principal são os relatos dos encontros que tenho com meus pacientes durante minhas atividades como médica de família no SUS. Acho que a importância do que eu faço está justamente no fato de os textos mostrarem que é possível uma assistência diferente, eficiente e, por que não, amorosa e empática”, defende.

Médico de família

Capacitado para atender a pacientes desde o nascimento, os médicos de família podem lidar com até 90% dos problemas de saúde.  O médico que faz residência em medicina de família pode acompanhar, por exemplo, crianças, fazer prevenções ginecológicas, urológicas e, caso veja necessidade, encaminhar o paciente para um especialista.

Humanização dos atendimentos

A belo-horizontina trabalha em uma região de extrema vulnerabilidade social na zona sul do Rio de Janeiro. “É uma grande honra e um privilégio poder trabalhar com algo que eu amo tanto. A realidade do SUS (e de outros sistemas de saúde da rede de convênios também) às vezes exige que tomemos a postura de ‘advogados’ dos nossos pacientes”.

O Sistema Único de Saúde é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Ele abrange desde o simples atendimento ambulatorial até o transplante de órgãos. A proposta é de garantir acesso integral, universal e gratuito para toda a população do país.

Júlia conta ser muito grata ao trabalho que faz em horário comercial: “ser médica no SUS é o que dá sentido à minha vida profissional. É uma luta diária, não só dentro do consultório com a necessidade de me aprimorar, de estudar, de me reinventar como profissional, mas também no campo político, por garantias de direito. Nós, médicos, ainda somos uma classe relativamente respeitada e ouvida. Precisamos usar esse prestígio em favor de quem mais precisa”.

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“O dia a dia de quem opta por fazer mil coisas ao mesmo tempo é tipo uma grande loucura. Nem eu sei como eu consigo conciliar”.

A médica defende que a saúde pública brasileira precisa deixar de ser uma política de governos para se tornar uma política de Estado. “O SUS é uma conquista do povo brasileiro e é resultado de muita luta e muito engajamento de tanta gente que veio e fez essa história acontecer antes de nós. Não é da esquerda nem da direita. É um avanço social extremamente positivo para o país. Precisamos mantê-lo e melhorá-lo cada vez mais!”

O que é um atendimento humanizado? nas palavras de Júlia Rocha

É o atendimento que considera as pessoas envolvidas como seres humanos complexos, com suas preferências, suas dores, suas histórias e respeita o indivíduo e sua autonomia. O profissional precisa centrar a sua prática na pessoa que o procura, não na doença que ela tem ou nos seus conhecimentos científicos.

 

A DOR DO OUTRO"Oi, doutora Júlia. Eu, outra vez. Já tô até com vergonha de vir aqui."Clarice já era minha conhecida….

Posted by Júlia Rocha on Wednesday, July 19, 2017

 

Maternidade

Entre o ritmo do consultório e a ginga nos palcos, Júlia atende muitas mães. Recém chegada na tarefa de maternar, com uma bebê nos braços, a Gabi, e prestes à voltar ao trabalho, a médica relatou que atende muitas mães em situação de vulnerabilidade. “Qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade precisa de garantias de direitos, não de favores ou jeitinhos. Em especial, mães e gestantes são mulheres que estão em uma fase muito especial da vida e, às vezes, por motivos físicos, sociais, culturais ou emocionais estão temporariamente em dificuldade para ‘correrem atrás’ dos seus direitos”. Ela entende que os médicos e profissionais de saúde podem se tonar o apoio que a mulher precisa naquele momento. “ Imagine em uma situação de vulnerabilidade social, de violência doméstica, de doença incapacitante. Nós, profissionais de saúde, somos o apoio que esta mulher precisa naquele momento, inclusive para se tornar ainda mais forte, mais ativa socialmente”, acredita.

Quando eu vou examinar uma criança e preciso tirar sua roupinha, eu sempre digo: "Eu e a mamãe (ou eu e o papai) vamos…

Posted by Júlia Rocha on Thursday, June 29, 2017

 

Muitas das mulheres atendidas no consultório têm uma coisa em comum: estão vivenciado o período do pós-parto, ou puerpério, o momento seguinte ao nascimento de um filho, que é de extrema instabilidade para a mulher e sobre o qual pouco se fala. “É gratificante atender as estas mulheres, mas também é um desafio. O puerpério é uma fase intensa e cheia de descobertas, de dificuldades, de superações. O início da amamentação, os incômodos do pós-parto, a sensação de incapacidade para cuidar do bebê, as cobranças desumanas da sociedade que exige que a mulher dê conta de tudo sozinha, a falta de apoio do companheiro, da família, as mudanças drásticas no corpo, os medos, os anseios…”

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“Percebi que para pais e mães de primeira viagem, não importa a profissão, somos sempre medrosos, assustados, cheios de receios e dúvidas”.

“É difícil demais dar conta desse recado”, revela a médica. “É desumano cobrar essa conta da mulher. Há um ditado africano que diz que ‘é preciso uma vila inteira pra cuidar de uma criança.’ Os atores principais são os pais, mas sem ajuda dos tios e tias, amigos, amigas, avós, avôs, não daremos conta. É humanamente impossível”.

Cuidando agora de sua bebê, depois de tratar de tantas crianças profissionalmente, ela vê que, para pais e mães de primeira viagem, não importa a profissão: “somos sempre medrosos, assustados, cheios de receios e dúvidas. Estou quase voltando ao trabalho depois da minha licença maternidade. Tenho absoluta certeza que serei outra profissional. Acredito que a experiência da maternidade me tornou muito mais capaz de ajudar outros casais e outras crianças. Tomara!”

Em sua opinião, muito antes de discutir maternidade é preciso se discutir direitos. “A classe média, que é quem discute política, acesso a educação, cultura, saúde, segurança nas redes sociais e em outros espaços, está falando da sua realidade. Há múltiplas realidades para serem vistas e consideradas. Mães sem vínculo formal de trabalho que deixam seus filhos com vizinhas cuidadoras, com filhos um pouco mais velhos, que não tem acesso a creches, à educação infantil, que não conseguem amamentar, que convivem com violência de todos os tipos, que tem severas privações materiais”.

 Como eu vou orientar melhorias no ambiente se o barraco onde ela mora é de madeira e papelão e divide espaço com ratos, esgoto a céu aberto, tiroteio na porta de casa? Em muitos e muitos casos, são cinco, seis, oito pessoas dividindo um cômodo. Crianças convivendo com familiares com tuberculose, usuários de droga. Quem vai falar disso?

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