Glauber Piva: o que você quer ser quando criança?

Ficar velho é perder a disposição para a brincadeira. Qual foi a última vez que você, adulto, se permitiu brincar?

Glauber Piva Publicado em 15.10.2019
Imagem de um menino negro sorrindo com uma bexiga amarela em sua testa. Ele está com uma pintura preta no rosto
OUVIR

Resumo

"Invente um novo jeito de falar, mude o tom da sua voz, grite alto, cante alto, pule alto. Atreva-se!" Confira as sugestões do pesquisador Glauber Piva para desenvelhecer.

A bolicidade da bolinha de gude faz o planeta inteiro girar: apenas para que ela possa brilhar. E, quando brilha ela, brilham também as bulitas dos olhos dos meninos e meninas que lhe admiram.

Um dia minha filha me disse que eu, por ser adulto, já não brincava mais. Sem que eu conseguisse articular as palavras, que me fugiam da boca, dada a impertinência da minha indignação, meu filho, um pouco mais velho que ela, a corrigiu: “claro que brinca, Nina. Você não viu o papai jogando futebol comigo? Quando ele joga bola comigo e com meus amigos, ele está brincando igual a gente.”

Eu gargalhei por dentro e abracei os dois, brincante.

Adultos também brincam, mas, para isso, tem de manter a mente agitada.

Adulto que não conversa com as coisas, que não desperta as próprias ideias com uma batucada, que não chuta pedra na rua, que não faz castelinhos da areia é adulto que decidiu envelhecer.

É isso. Ficar velho é perder a disposição para a brincadeira.

E não existe nada mais perigoso no mundo que um monte de adulto-velho definindo os limites do ser-criança.

Adulto-velho cala a boca do mundo, perde o passo da dança e transforma até o próprio corpo no instrumento do seu pequeno-poder. Adulto-velho é tão bobo que acha que envelhecer é um jeito de ficar poderoso e sabido. Não percebe que envelhecer está mais perto de perder do que de ganhar.

O adulto, quando vira adulto-velho, perde a altura dos sonhos, perde a largura do riso, perde a sutileza do olfato, perde o talento do tato, perde a grossura dos pés, perde a leveza do olhar.

É assim que são os adultos-velhos: trancados em suas jaulas particulares. Adultos-velhos constroem prisões para suas coragens e altares para seus desafetos. E fazem isso por que têm medo. Adulto-velho tem medo da criança que já fora. Medo da reação impulsiva que tinha quando não sabia que medo era um demônio que lhe comeria vivo. Medo de se lembrar que suas bolinhas de gude, seus peões, suas bolas e seus pés faziam o planeta girar mais rápido. Que suas cordas, suas pipas, seus elásticos e horizontes, faziam o mundo inteiro dançar.

Adulto-velho é nome de doença ruim, difícil de se livrar, mas que tem remédio que não custa dinheiro, ainda que valha fortuna.

Desenvelhecer é um caminho que só gente corajosa consegue fazer.

Para desenvelhecer é preciso um punhado de coisinhas que compõem um mudança grandona.

Comece se perguntando qual a sua melhor lembrança da infância. Isso mesmo. Entre na máquina do tempo e alcance aquela goiaba que você comia em cima do pé, corra descalço pelo campinho da rua de cima, lembre-se do ardor do seu joelho depois do tombo de bicicleta.

Depois, espreguice-se. Estique seus músculos todos, inclusive e principalmente os do rosto. Sorria! Para desenvelhecer é preciso sorrir. Sorria de você, do seu pé torto, do seu ombro dolorido, de seus olhos trôpegos, de suas poucas bobagens.

Tenha menos rigor consigo e com os outros. Para desenvelhecer é preciso abandonar as implicâncias e abraçar as empatias. Todos nós conhecemos adultos-velhos rabugentos com as crianças. Querem lhes impor tantas regras em nome de um futuro desconhecido, que esquecem que o maior barato da vida é justamente a autonomia das crianças quando estão longe dos olhares dos adultos. Para desenvelhecer, portanto, é preciso ter coragem de abandonar os medos que o tempo tatuou nas nossas costas e pisar com delicadeza e vigor num caminho de pequenas pedras pelo qual não passamos há muito tempo.

E, por fim, ocupe a cidade. Imprima nela os seus sentidos. Deixe-se afetar por ela. Não tenha medo das praças nem das ruas. Escolha uma. Volte a andar de bicicleta. Jogue bolinha de gude ou brinque de bonecas com as crianças. Saia da zona de conforto, amarre um lenço na testa, ponha a mão na terra, leia um livro infantil, conte histórias para crianças de qualquer idade, invente um novo jeito de falar, mude o tom da sua voz, grite alto, cante alto, pule alto. Atreva-se!

E não se esqueça de, ao se levantar no dia seguinte, ainda que com dores nas articulações, responder a uma pergunta inevitável: o que você quer ser quando criança? Pronto. Você terá dado um passo importante para desenvelhecer.

Glauber Piva, é mestre em Políticas Públicas e Formação Humana, poeta de gaveta e um bisbilhoteiro da vida comum. Já foi diretor da Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e tem se dedicado à compreensão do impacto da vida contemporânea no Brasil sobre as crianças. Está sempre se perguntando de que maneira a forma como vivemos contribui para a formação das habilidades cognitivas, afetivas e relacionais das crianças brasileiras.

Leia mais

Comunicar erro
Comentários 1 Comentários Mostrar comentários
REPORTAGENS RELACIONADAS