Além de revelar os sonhos da criança ribeirinha que ganhou o Brasil, a artista fala sobre como a fé, o respeito à natureza e o amor à família impactam sua arte
“Amor pra recordar” tem emocionado muita gente por homenagear um amor que nunca se vai de verdade. Além de comentar o novo sucesso, Gaby Amarantos fala sobre como a fé, o respeito à natureza e o amor à família impactam sua arte.
Recordar significa fazer voltar à memória, reviver. A incrível capacidade de tornar presente o que foi é o fio condutor de “Amor pra recordar”, nova música de Gaby Amarantos que tem emocionado muita gente. Trata-se de uma ode às mulheres – não somente aquelas que fazem e fizeram parte de sua vida -, mas a todas as mulheres brasileiras. “Queria homenagear essa rede de mulheres que se forma. Essa rede de apoio que me criou e que ia se revezando nesse amor, sem permitir que o amor deixe de recordar”, conta. Sobre a parceria com a Liniker, Gaby diz precisar “dessa representatividade do feminino que habita nela”.
Em entrevista ao Lunetas, Gaby fala sobre como foi contracenar, no clipe, com o filho, Davi; a irmã, Gabriele; e a sobrinha, Ana Vitória, em lugares como o exuberante Furo do Piriquitaquara (PA), “o Brasil que eu gostaria que o Brasil recordasse”. A artista comenta também sobre maternidade, ancestralidade, luto, amor, natureza, fé e a infância na Amazônia. Hoje, mãe, ela busca transmitir às crianças todo esse amor à floresta e aos antepassados. Embora já imaginasse um futuro como artista quando criança, Gaby confessa:
“O que eu nunca imaginei é que conseguiria ir além dos meus sonhos”
Lunetas – Qual é o significado da maternidade para você? Em que aspectos uma maternidade preta, solo e do Norte estão presentes em sua produção cultural?
Gaby Amarantos – A gente acabou de produzir o videoclipe de “Amor pra recordar”, que fala muito dessa representatividade da mulher ribeirinha, mas também das mães periféricas, que moram no interior ou nas capitais do Amazonas, Amapá, Acre, Rondônia, Roraima. Essa mãe amazônica, que tem tantos desafios, principalmente se ela mora no meio da floresta, tem essa especificidade de ter contato com a natureza, mas, de certa forma, tem uma espécie de isolamento social e muitos problemas com infraestrutura. Essa mãe para levar o filho à escola precisa remar 2 ou 3 horas; para levar o filho ao médico, tem que remar 4 ou 5 horas para chegar em uma unidade de saúde, isso se ela tiver uma rabeta (uma canoa com motor). O abandono parental paterno é uma realidade muito forte na vida dessas mulheres. A personagem que faço no clipe é uma mulher que, por conta de uma gravidez, interrompe a carreira artística, mas não tem ali uma corrente de mulheres que se unem para criar os filhos umas das outras para que elas possam trabalhar, já que elas não têm condição de pagar uma babá ou não tem uma creche que dê esse suporte. Essa união de mulheres é tão poderosa, principalmente para a mulher pobre, periférica e preta. Essa mulher poderia ser eu, se eu não tivesse essa estrutura da minha irmã, minha mãe, das pessoas da minha família que ficam com meu filho para que eu possa fazer esse processo migratório. Principalmente a gente que é mulher do Norte, para conseguir fazer sucesso num âmbito nacional, tem que sair de lá e vir para o Sudeste para poder conquistar o país ou ir a outros lugares do mundo. Mesmo com o advento da internet, ainda precisamos concluir um processo migratório tão presente nesse país continental.
Em que medida a ancestralidade impacta na forma como você educa seu filho e enxerga o mundo, de modo geral?
GA – Impacta diretamente, desde as mulheres que vieram antes de mim que eu nem pude conviver, como minhas bisavós, tataravós, mas principalmente minhas duas avós com quem eu convivi, e dos ensinamentos que elas me passaram muito mais baseados na sabedoria do que em um pensamento acadêmico. Elas eram semianalfabetas, mas tinham uma altivez na postura, no jeito de criar os filhos. Minha mãe também é uma grande inspiração para mim em tudo. Eu tento passar para as minhas crianças e para as pessoas, de modo geral, um dos maiores ensinamentos de se desprender do julgamento externo e realmente acreditar nas nossas convicções e seguir. Sempre repito: “Faça o que você tem que fazer, e não se importe com o que os outros vão pensar ou falar”. Tem gente que demora anos, tem que fazer muita terapia, ler muito, para conseguir chegar nesse lugar e eu, desde criança, ouvi minha mãe falando isso e venho exercitando isso.
Como você trabalha e que peso têm a ancestralidade e o feminino em sua atuação como artista?
GA – Eu trabalho com muito afinco para sempre manter essa conexão com minha ancestralidade, principalmente com minha ancestralidade feminina, entendendo que minhas antecessoras pavimentaram uma estrada para que eu pudesse estar aqui e entendendo também minha responsabilidade com as futuras gerações, não só da minha família, mas de todas as mulheres que se identificam com meu trabalho. Então, vem muito do exemplo, de fazer a música para impactar a vida das pessoas de uma forma positiva, desde falar do corpo com liberdade, de me inspirar em mulheres para fazer minhas personagens. Eu entendo muito como um lugar de amplificar essa feminilidade para que a gente possa exercitar o “torcer umas pelas outras” e apoiar umas às outras.
Qual a importância da família em sua vida?
GA – Família é tudo. Família é minha base e eu me sinto sustentada por dois pilares muito fortes: família e fé. Elas têm a mesma importância para mim e eu tenho muita sorte de ter uma relação extremamente amorosa e de cumplicidade. A minha família torce por mim – meu pai, meu marido, meus filhos, meus irmãos. A minha mãe sempre foi a primeira incentivadora na minha carreira. Minha irmã tem duas filhas e eu um filho. Mas as meninas não são minhas sobrinhas, elas são minhas filhas. Elas são duas meninas pretas, então entendo a importância de empoderar essa criançada para que elas possam ter tudo, para que não sucumbam a esse racismo estrutural. Estamos realizando esse processo a muitas mãos e eu não conseguiria fazer nada se não fosse minha família.
Você optou por estar mais perto de onde nasceu. Essa escolha foi baseada na importância que você dá para que seu filho conheça suas origens?
GA – A região Norte é muito diferente do restante do país, e eu sinto que o Brasil precisa entender mais sobre a Amazônia, nossos processos nortistas. Eu queria muito que as minhas crianças tivessem a oportunidade de crescer na Amazônia. É muito rico nascer na região Norte e pertencer a esse lugar onde nós temos o maior tesouro mundial, onde a gente consegue ter essa conexão, que é diferente da vivência de uma pessoa do Sul, do Centro, do Nordeste. As nossas árvores são mais frondosas, o nosso clima, comida, cultura, música, jeito de vestir, de encarar o mundo e até mesmo o jeito de descansar é totalmente diferente. Nosso corpo funciona diferente neste lugar e eu queria muito que eles absorvessem, ao máximo, antes de decidirem morar em qualquer outro lugar. Levar uma criança para conhecer a Amazônia é uma experiência única. Nunca levei meus filhos na Disney, mas, sempre digo, que a minha Disney é a floresta amazônica, é a praia de rio, é a pororoca, é estar em uma samaumeira, que é uma árvore sagrada, e ter esse conhecimento é algo que é tão ancestral quanto poderoso.
Como estar perto da natureza impacta suas relações? Qual a visão que você pretende passar para o seu filho e o que ele pensa sobre o assunto?
GA – Aconteceu uma coisa muito linda esses dias. Eu apoio, em Belém, a “ONG Noolhar”, que faz um trabalho em relação ao meio ambiente, reciclagem e arte através do lixo, da preservação da floresta. Um dos líderes dessa fundação, o Marcos, estava doente e fez a passagem. Como a gente lançou o clipe de “Amor pra recordar”, a esposa dele, a Patrícia, me mandou uma mensagem muito emocionada dizendo que essa música estava ajudando-a a superar o luto e a recordar esse amor, que vai ficar para sempre. Então, ela me mandou um vídeo do meu filho com 5 anos de idade, na colônia de férias que eles promovem todos os anos. Tem uma parte que ele diz que é um agente da preservação, que já tinha participado da colônia no ano anterior, e que estava ali para ajudar outras crianças a preservarem a natureza. Eu fiquei tão emocionada de ver que a gente está fazendo a coisa certa, porque falamos para nossas crianças para elas preservarem a floresta, para reciclarem o lixo, mas a gente precisa levá-las para um parque, para um lugar onde tenha verde, para pisar na terra. Uma criança que tem a chance de nascer na Amazônia, de nadar com os botos, de tomar banho de igarapé, vai trazer gravado no DNA essa experiência.
Como a religiosidade afeta sua música e seu modo de enxergar a maternidade?
GA – Para além da religiosidade, eu me fio na fé. A fé independe da religião. Se não fosse a fé no poder do Altíssimo, na divindade que habita em mim e que habita em todos nós, entendendo que essa película que nos envolve é una, e nos faz ser uno, que não está aqui só para trazer a sacralidade para a humanidade, mas envolve a natureza. A gente, seres humanos nessa cadeia alimentar, sempre se acha o mais importante e muitas pessoas não entendem a importância da natureza, de tudo que existe nesse planeta: dos rios, das montanhas, das florestas, dos animais, dos minerais, do ar. Eu entendo muito a fé como esse combustível que me faz sair de Belém do Pará, de uma periferia onde absorvi tanto conhecimento cultural genuíno, de estilos musicais, e de toda uma musicalidade que trago comigo. Trazer nesse novo álbum a Amazônia que quer se apresentar e trazer uma reflexão de como vai ser essa floresta daqui a uns 50 anos. Como vamos pensar em incluir essa Amazônia no futuro? É a fé que me move a realizar tudo isso.
Como era a Gaby nos tempos de infância e como ela veria a Gaby de hoje? Você tem realizado os sonhos da sua criança interior?
GA – Quando criança eu tinha um desejo enorme de me tornar artista. Desde muito cedo, eu sempre flertei com a dramaturgia, com a música, sempre tive muito interesse pelas cores, sempre me expressei através dos meus desenhos, figurino e tinha sonhos vívidos de palco e tecnologia. Eu imaginava um palco giratório. Era algo que estava muito impregnado no meu desejo, mas nunca imaginei que iria me tornar algo além dos meus sonhos. Tudo que eu gostaria era ter tido representatividade quando eu era criança. Não tinha nenhuma artista na televisão que tivesse a cor da minha pele, que fosse colorida e radiante, que tivesse um corpo diferente. Eram pouquíssimas cantoras, artistas, atrizes que eu olhava e me identificava. Hoje, poder ser representatividade para as crianças é algo que me deixa muito feliz. Espero que as próximas gerações não sintam mais essa falta de representatividade. Que bom que eu consegui me tornar [uma artista] para além dos meus sonhos.
Do que você sente saudades da sua infância?
GA – De ser criança mesmo. Eu tenho muito contato com minha criança interior, busco muito manter essa infância dentro de mim. Estou tendo a oportunidade de fazer um trabalho agora como técnica no The Voice Kids, em que busco deixar a minha criança se divertir e brincar. Também nesse jeito de me colocar como artista, nos meus looks, nas minhas identidades visuais, eu sempre deixo tudo ser lúdico, colorido, e isso me faz muito querer ser criança sempre. Sinto muita saudade dos meus avós, quando eu ia passar férias escolares com eles, no meio da floresta, e a vida era só acordar, passar o dia inteiro tomando banho no rio. Não tinha energia elétrica, e a gente andava de canoa e eu tive essa experiência real e profunda de ser uma criança ribeirinha. Eu sinto muita falta também da minha floresta.
Quem são os amores que a Gaby faz questão de recordar e ter sempre por perto? Por quê?
GA – Os meus maiores amores, que eu sempre quero recordar, são minhas antecessoras. Penso muito na minha mãe, nas minhas avós – Raimunda e Marieta – porque elas foram mulheres muito importantes para minha vida, e o amor da minha família, minha irmã Gabriele; meu irmão, Gabriel; os meus filhos, Davi, Adriele, Ana Vitória; meu marido; e o amor de todas as pessoas que se identificam, apoiam e são impactadas positivamente pelo meu trabalho. Eu tenho uma legião de semeadores, de pessoas que me levam e que fazem com que minha voz chegue longe. Esses amores são muito preciosos para mim. E o amor do Altíssimo, o meu maior amor e o amor que mais me alimenta.
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Por que você escolheu falar destas conexões entre luto, maternidade e sobre um amor que nunca se vai de verdade agora? Qual foi a grande inspiração para escrever esta nova música e que mensagem você quer passar às mulheres com “Amor pra recordar”?
GA – Muitas pessoas me perguntam se eu fiz essa música e esse clipe para a gente ritualizar o luto, mas minha inspiração não foi a pandemia. Eu perdi minha mãe em 2015 e foi a maior ruptura da minha vida até agora. Sempre tive pavor de perder minha mãe. Lembro de, criança, tocar no peito dela para ver se estava respirando, enquanto ela estava dormindo, com medo de que ela não acordasse. Queria muito prestar uma homenagem a ela, mas queria falar do amor de um modo geral, pois todo mundo já amou, já foi amado. Queria também falar dessa mulher ribeirinha, pois nós brasileiros conhecemos pouco essa realidade. Queria homenagear essa rede de mulheres que se forma, essa rede de apoio que me criou, quando minha mãe precisava trabalhar, e eu ficava com minhas tias e elas se apoiavam, iam se revezando nesse amor, nessa criação. Essa é uma coisa muito das mulheres indígenas também, das mulheres africanas. A criança na tribo pertence a todos. Ela não é só daquela mãe. Queria prestar homenagem a todas essas mulheres e que a gente conseguisse fazer arte, expressar arte através da emoção. Os meus clipes são muito imagéticos, tem muito figurino, muito efeito, muito tudo que não tem nesse. Esse clipe é diferenciado, está pegando as pessoas pela emoção e estou muito feliz com a reação do público, recebo uma enxurrada de mensagens todos os dias, dessa onda espontânea das pessoas irem se compartilhando. É uma homenagem à mulher brasileira. Essa mulher periférica, que cria seus filhos e que não permite o amor deixar de recordar.
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A árvore sagrada samaumeira é um dos símbolos que aparecem no clipe “Amor pra recordar”, de Gaby Amarantos e Liniker. Confira: