Mesmo com uma legislação avançada, fazemos parte de uma sociedade que permite chamar uma criança de assassina, mesmo após sofrer as piores formas de violência
Mesmo com uma legislação tão avançada, Juliana Prates reflete sobre como fracassamos ao não proteger efetivamente as crianças e adolescentes vítimas de violência. ‘É muito provável que o ECA não seria promulgado se estivesse em debate em pleno ano de 2020’.
Conheci a música “Eu não pedi pra nascer”, do Facção Central, por um grupo de crianças e adolescentes em situação de rua, durante a realização de uma pesquisa. Eles cantavam essa música como quem entoava um hino, um grito de alerta e de socorro. Nunca consegui ouvir sem me sentir impactada, até violentada, eu diria. Mas, volta e meia, essas estrofes surgem na minha cabeça e não me deixam em paz (ainda bem, pois não quero perder a capacidade de me indignar). Esse tem sido um ano em que essa música não sai dos meus ouvidos, principalmente o tom das vozes infantis que cantam em coro esse refrão.
“O seu papel devia ser cuidar de mim, cuidar de mim…
Não me espancar, torturar, machucar, me bater
Eu não pedi pra nascer”
Esse não é um texto que pretende discutir sobre o direito de aborto em caso de estupro, pois essa questão está definida desde a legislação de 1940. Esse texto objetiva abordar o tema do cuidado, da proteção integral estabelecida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse instrumento legal que completou 30 anos de existência, que é (ou deveria ser) motivo de orgulho para o povo brasileiro, tem sido amplamente celebrado em 2020. O ECA vem para efetivar e operacionalizar o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que diz:
A enorme celebração em torno do ECA deve-se ao seu conteúdo, mas também ao modo colaborativo como foi constituído, integrando anseios da sociedade civil, dos movimentos sociais, de juristas e acadêmicos. Garantir o artigo 227 e promulgar o Estatuto da Criança e do Adolescente significou a efetivação de um projeto de nação que entende que cuidar da infância e das crianças nos torna melhores em todos os sentidos.
O ECA buscou garantir que todo menino e menina nascido em nosso país fosse considerado um sujeito de direitos, e que lutaríamos enquanto Estado e sociedade para que, junto com as famílias, nossas crianças tivessem seus direitos assegurados. O Estatuto representa um sopro de esperança em um país que saía de um longo período de ditadura. Foram muitos ganhos e avanços nesses 30 anos, mas a sensação que tenho agora é de que não somos dignos, como nação, de ter uma legislação tão avançada.
Com tristeza percebo que é muito provável que o ECA não seria promulgado se estivesse em debate em pleno ano de 2020. Uma sociedade e um Estado que permitem que uma criança seja chamada de assassina, após sofrer pelo menos quatro anos das piores formas de violência, não são merecedores de uma legislação dessa ordem.
Fracassamos, enquanto nação, quando uma criança vítima de violência é obrigada a entrar em um hospital dentro de um porta-malas de um carro para ter o direito de ser protegida.
Falhamos quando a discussão não é sobre os horrores causados pela nossa negligência coletiva, mas sobre a disputa entre duas perspectivas ideológicas. O país deveria estar em luto, não apenas pelos mais de 105 mil mortos decorrentes da pandemia, mas porque deixamos de cumprir o nosso papel.
Que as vozes dessas crianças nos dizendo que “o seu papel devia ser cuidar de mim, cuidar de mim” ecoem em nossas cabeças e nos façam lembrar porque escolhemos, em um certo momento da nossa história, que a prioridade absoluta de uma nação deveria ser as crianças e os adolescentes.
Que a nossa indignação e dor se volte para garantir a punição dos agressores e que nossa solidariedade seja direcionada para as muitas crianças e adolescentes vítimas de alguma forma de violência nesse momento em nosso país. Que possamos agradecer aos profissionais e todos aqueles que lutaram e que continuam lutando pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes.
Comunicar erroPor fim, que possamos pedir desculpas a mais uma criança por termos falhado em protegê-la.
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao lazer e à profissionalização, à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.