O Brasil está com fome: 33 milhões de pessoas não têm o que comer

Erradicação da fome é pacto global; pesquisadora alerta que impactos podem ser irreversíveis para as crianças

Edvan Lessa Publicado em 09.06.2022
O mapa da fome no Brasil: na imagem, os braços de uma criança negra seguram a barriga. A foto está em preto e branco e possui intervenções de rabiscos e colagens coloridas.
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Resumo

Famílias de diferentes regiões do Brasil compartilham histórias atravessadas por fome e outras ausências. Para a FAO, é preciso erradicar a fome e fortalecer políticas públicas.

“Outro dia, lá na favela, sentada no quintal do meu barraquinho, eu pensava: o que vou inventar amanhã para os meus filhos comerem?”. A voz da dona de casa Paula, 29, faz coro com a de milhões de famílias com fome no Brasil e que vêm enfrentando todos os dias alguma dificuldade para se alimentar.

“Sou mulher, guerreira, estou pronta para ajudar as pessoas. O que eu posso fazer, eu faço”, abrevia. Em Alfavela, comunidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, ela é uma das lideranças responsáveis por distribuir cestas básicas e donativos a dezenas de famílias em situação de vulnerabilidade.

Paula tem quatro filhos; dois deles gestados quando a pandemia de covid-19 enfrentava seu pico, um cenário devastador, que colocou em risco a segurança alimentar e o estado nutricional de milhões de pessoas ao redor do mundo.

Quando vai ao mercado, Paula se surpreende com o aumento dos preços de itens que antes costumavam ser distribuídos de graça. Hoje, o coração de galinha custa R$ 40 o quilo; o pé do frango está a R$ 28,80, enquanto osso bovino, a depender da quantidade de carne, chega a R$ 15 o quilo. “Se não dá pra comer uma carne, vamos fazer uma salada, fritar um ovo mexido com cenoura. Vira aquela brincadeira, entendeu? A gente vai criando”, diz.

O revés da insegurança alimentar vivido por Paula hoje foi também experimentado na infância. “Eu fui criada comendo pelanquinha. Uma vez eu estava limpando a gordura boa da gordura ruim, aí eu joguei pro cachorro. Minha irmã caçula foi lá e pegou do cachorro, para ele não comer, porque era dela”, relembra.

Os níveis já elevados de fome entre os brasileiros se agravaram em 2021. Foi a primeira vez que a insegurança alimentar no Brasil supera a média global de 35%. Ela afeta especialmente mulheres, famílias pobres e pessoas entre 30 e 49 anos, grupos que geralmente têm mais filhos. Segundo dados da pesquisa Gallup, analisados pelo Centro de Políticas Sociais do FGV Social, a taxa saltou de 17% em 2014 para 36% no final do ano passado. 

Se não fossem as ONGs, diz Paula, muita gente passaria fome. Uma dessas organizações é a Central Única das Favelas (CUFA), em Campo Grande, que realiza o cadastro de mães nas favelas e ajuda centenas de famílias que necessitam de apoio.

Três décadas de retrocesso

A insegurança alimentar se deflagra quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos nutritivos, como é o caso de Paula. No mundo, estima-se que, em 2020, até 811 milhões de pessoas sofreram com a fome, segundo o documento “O estado da insegurança alimentar e nutrição no mundo (SOFI)”, elaborado pela ONU. Entre as famílias brasileiras, no fim daquele ano, eram 19 milhões convivendo com a fome. Em 2022, seis em cada dez vivem em algum grau de insegurança alimentar. Ao todo, são 125 milhões de brasileiros nessa condição (59 milhões em insegurança leve, 31 milhões em insegurança moderada e 33 milhões em insegurança grave, que significa situação de fome). 

Os dados, publicados neste mês de junho, no 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Penssan, revela que são 14 milhões de pessoas a mais com fome em comparação com a última pesquisa – um crescimento de 7,2% em relação a 2020; entre aqueles em insegurança alimentar grave, o aumento foi de 70%. 

Este é o pior cenário desde que foi criada a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), entre 2003 e 2004: o país jamais havia atingido esse patamar de pessoas vivendo em algum dos três graus de insegurança, o que mostra a gravidade da superposição entre as crises econômica e sanitária em todo o país, com um aumento acentuado da insegurança alimentar em todas as grandes regiões. 

Além disso, apenas 26% das crianças de dois a nove anos no Brasil fazem três refeições por dia, conforme dados obtidos pela Globo News mediante a Lei de Acesso à Informação e divulgados no ano passado.

Estima-se que cada pessoa adulta se alimenta, anualmente, de 1 tonelada de comida e bebida. O que vai para a lixeira, cerca de 60 kg, segundo estudo publicado no Índice de Desperdício de Alimentos 2021, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, poderia alimentar 12 milhões de pessoas em um ano.

O mundo não tem progredido em direção à meta de garantir acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para todas as pessoas durante todo o ano. Esse é um dado da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) que também traz o diagnóstico de que globalmente não se tem avançado na erradicação de todas as formas de má nutrição.

Luta para não passar fome

A dona de casa Luiza Batista, 49, mora na ocupação Mandela, em Campinas, interior de São Paulo. Em um barraco insalubre, cria a neta Maria Eduarda, 9. 

“Eu sempre criei meus filhos na faxina, sou diarista. A cada dia, eu trabalhava numa casa diferente. Aí depois eu fiquei muito doente”, relata. Os problemas de saúde vieram após ficar exposta a uma forte chuva, segurando a lona do barraco para que ela não fosse levada pelo temporal.

Após a pneumonia, o derrame no pulmão e então a impossibilitada de trabalhar, Luiza tenta receber o Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC/LOAS). “Hoje eu vivo de auxílio emergencial, de alguma ajuda de cesta básica e de dinheiro para comprar um gás”, detalha.

A estudante Luiza tem sete primos, todos netos de Luiza, e nutre a esperança de morar um dia numa casa de alvenaria. “Meu desejo do coração é um dia ter uma casa pra morar com a minha vovó”, sonha.

Em Salvador, Isabel Cristina Santos, 38, cria os quatro filhos caçulas com dificuldade desde que o esposo precisou fechar o depósito de bebidas que mantinha e se tornou ambulante na praia. “Há a dor de uma mãe e um pai que lutam para seus filhos não passarem fome. Tentamos sobreviver com o pouco que ganhamos e com a renda do auxílio”, desabafa.

O bairro onde mora é distante do Centro e, na sua comunidade, moram muitas famílias carentes. “Aqui falta água, a energia tem muita queda; não tem farmácia nem mercados. Faltam muitas coisas e não temos escola perto”, pontua Isabel.

Ao longo dos últimos três anos, a autônoma vendeu rifa e confecções. Hoje, produz material de limpeza e tempero pronto para complementar a renda. “Algumas vezes minha família me ajudou no que pôde, mas o mais triste dessa história é que meus filhos menores não estão na escola porque não há vagas. Não tenho a quem recorrer”, lamenta.

Dentre as crianças, um dos fatores que as expôs à vulnerabilidade alimentar foi a suspensão de alimentação escolar, devido ao fechamento das escolas durante a pandemia. Segundo a FAO, esses programas beneficiam 85 milhões de crianças na América Latina e no Caribe e, para aproximadamente 10 milhões destas, a alimentação escolar é uma das principais fontes de alimentos seguros que recebem diariamente.

A dor da fome

Após sofrer um acidente de moto, o paraense Lindomar, 51, se viu impossibilitado de colocar a comida na mesa da família, sobretudo para as duas netas pequenas. “Eu devo até hoje dois mil reais [no mercado]. Desde fevereiro, [estou] sem ver um centavo. Está ‘pegando’, como se diz, o pão das crianças”, confidencia.

Enquanto aguarda os trâmites para a liberação da aposentadoria, em Belém, está desempregado e, por isso, sem garantia de alimento todos os dias. “O que eu tiver de vender, eu vendo, para os alimentinhos delas. Porque eu posso passar [fome], mas elas não. Uma dor de fome numa criança é triste. Eu passo dois, três dias [sem me alimentar, só] tomo um cafezinho, vou sentindo o baque, mas tenho que aguentar. Eu vou chegar lá”, anseia.

“Quando uma criança passa fome, é problema de todo mundo” – Carolina Maria de Jesus

Com a covid-19, houve aumento da vulnerabilidade dos trabalhos informais e dos preços dos alimentos. O inquérito da VigiSAN mostra que a perda de emprego de algum morador, assim como endividamento da família, são as duas condições que mais impactaram a insegurança alimentar, segundo a Pesquisa de orçamentos familiares, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no período 2017 e 2018.

Por meio do estudo, conforme relata a FAO, se conclui que o aumento do desemprego e a queda da renda também afetaram a qualidade da alimentação dos brasileiros que estão abaixo da linha da pobreza. A participação percentual das despesas com alimentação foi maior, conforme aumentaram os níveis de severidade da insegurança alimentar.

Leidiane Izabelle, 24, ainda busca caminhos para lidar com as dificuldades vividas nos últimos anos. Natural de Belém, no Pará, vive hoje em Blumenau, Santa Catarina.

“Logo no início da pandemia, perdi meu emprego e as coisas ficaram difíceis. Em seguida, meu esposo também ficou sem trabalho e então fomos acumulando dívidas e dificultando a alimentação”, explica. “Foi e ainda continua sendo uma luta diária por alimentação na mesa. Tem dois meses que consegui receber o Auxílio Brasil, que não dá pra quase nada, e por isso eu faço diárias uma vez e outra”, acrescenta.

Recentemente, o esposo foi admitido em outro emprego, mas, com um bebê recém-nascido, as responsabilidades aumentam. “Para mim, a falta de alimentação tem a ver com a falta emprego, com o fato do salário ser tão baixo e o custo de vida estar cada dia mais alto”.

Acúmulo de problemas

Na visão de Denise Oliveira, pesquisadora da Fiocruz Brasília e coordenadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA), as projeções de estudiosos nacionais e internacionais já apontavam para essa situação de agravamento da insegurança alimentar e nutricional. 

De acordo com a FAO, as crises dos sistemas alimentares são, em sua maior parte, afetadas por mais de um fator impulsionador. Conflitos (como a guerra entre Rússia e Ucrânia), clima e a covid-19 – e suas desigualdades – passaram a ser chamados de os três “C” da fome”.O que vemos é uma alta de preços, que é o mais significativo resultado desse momento atual e que acelerou o problema”, indica a pesquisadora.

Denise pontua a relação direta entre os temas alimentação, nutrição e insegurança alimentar e nutricional ao contexto político e social. “No Brasil, o tema ganha força a partir do governo Lula quando ele assume a presidência e diz que a população iria comer três refeições por dia”, recupera a estudiosa. Ela cita programas como o Fome Zero e a recriação do Conselho Federal de Segurança Alimentar como experiências nacionais de alto nível para minimização dos quadros de fome e insegurança alimentar.

“O país vai ter lei e um sistema de segurança alimentar. Quando ocorre a eleição do atual presidente, isso tudo é extinto e se perde uma referência, sobretudo, dentro da governança brasileira. Isso faz com que não haja mais eco e perspectiva de diálogo sobre essa questão”, expõe. Para Denise, o enfraquecimento das políticas públicas atinge diretamente as crianças.

Segundo ela, o país sempre demonstrou indicadores de desnutrição significativos, houve melhora em quadros como o de mortalidade infantil, mas hoje o que se vivencia pode ser chamado de “fome sísmica”, principalmente em áreas urbanas.

Fome de Norte a Sul

“Eu acho que o melhor cenário para criar os nossos filhos hoje seria se tivesse uma baixa no valor dos alimentos, porque está muito alto e a gente já tem bastante dificuldade de ter acesso”, afirma Gislaine Silva, 32, que vive em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Moradora da ocupação Steigleder, ela e a família tiram a renda da reciclagem.

Durante o aumento dos casos da covid-19, ela e o esposo temeram se contaminar e mantiveram-se isolados. “Nós temos seis filhos. As coisas ficaram bem difíceis, mas a gente recebia muita ajuda para alimentação”, adiciona. 

Lares como os de Gislaine, que sobrevivem de programas sociais, estão entre os que mais registram consumo de alimentos ultraprocessados. Um estudo do Unicef apontou que, crianças com idade entre zero e seis anos, de famílias beneficiadas pelo programa Bolsa Família, estão com seu desenvolvimento em risco devido ao alto consumo desse tipo de produto e a insegurança alimentar.

Na avaliação da pesquisadora Denise Oliveira, da Fiocruz, o prognóstico é muito difícil, com consequências que a médio ou longo prazos podem ser irreversíveis, sobretudo para as crianças. A infância é marcada pela capacidade de oferecer a esse ser condições adequadas para ele crescer no seu potencial de vida. Qualquer coisa que interfira nessa fase de desenvolvimento vai ter consequências.

Conforme alerta a FAO, é preciso um conjunto de políticas públicas articuladas e intersetoriais que permitam transformar os sistemas alimentares por meio de soluções sustentáveis e resilientes. “É hora de agir para fortalecer as instituições e suas políticas de alimentação saudável”, conclama o órgão.

Considera-se que, em todo o mundo, seja difícil alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, e é preciso que haja um empenho efetivo para a erradicação da fome, conforme alerta a ONU. “Se o Estado resolvesse intervir agora para reverter essa situação calamitosa, a gente só veria realmente mudança daqui a três ou quatro anos”, pondera Denise.

Enquanto isso, famílias como as de Paula, moradora do Mato Grosso do Sul, e “uma legião de crianças” de Norte a Sul do Brasil tentam contornar a fome com luta e resiliência. “É preciso criatividade para driblar a fome; se você sentar e esperar, não adianta nada”. Embora o poeta Thiago de Mello cante sobre “crianças deserdadas do pão e todavia capazes de sorrir”, sabemos que

“Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome” – Caetano Veloso

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