Exaustas e desempregadas: as mães após um ano de pandemia

Mulheres deixaram seus empregos para cuidar da casa e dos filhos, gerando um retrocesso de 30 anos na participação feminina no mercado de trabalho brasileiro

Alice de Souza Publicado em 09.03.2021
Foto em preto e branco de uma mulher, com semblante muito cansado, com um bebê no colo
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Resumo

Metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém na pandemia. A soma de responsabilidades, além da falta de amparo social, levou muitas delas ao desemprego. Quem conseguiu manter a vida profissional, por outro lado, está exausta e com medo.

Antes do parto da segunda filha, a editora de projetos Jessica Marzo, de São Paulo (SP), tomou a decisão consciente de deixar seu trabalho durante o primeiro ano de vida da menina e ser mãe em tempo integral até o começo de 2020. Quando estava pronta para voltar à profissão, adaptando a pequena à escola e sonhando com novos projetos, chegou a pandemia. Passados os 365 dias dos primeiros casos de Covid-19 no Brasil, Jessica está cansada, irritada, frustrada e desempregada. Ela não é a única. 

A pandemia obrigou sete milhões de mulheres, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), a sair do mercado de trabalho ainda em março de 2020. A crise sanitária provocada pela Covid-19 gerou um retrocesso de mais de uma década em avanços na participação feminina no mercado de trabalho na América Latina e no Caribe, segundo o relatório especial da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). 

No Brasil, a taxa de mulheres no mercado de trabalho é a menor dos últimos 30 anos.

Estar sem um trabalho formal, além de comprometer a renda familiar, não significou descanso. Se antes da pandemia, as mulheres já dedicavam 78% a mais de tempo às tarefas de cuidado do que os homens, nesse ano que passou a mudança na dinâmica dos lares, o isolamento domiciliar e a exclusão dos postos de trabalho amplificou essa situação. Ainda em 2020, a pesquisa “Sem Parar – o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, realizada pela Gênero e Número e a Semprevida Organização Feminista (SOF), prenunciou a sobrecarga de responsabilidade delas.

Metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém na pandemia. “A gente já vivia em uma sociedade que, ao privatizar a responsabilidade do cuidado às mulheres, principalmente no interior de suas casas, não dá conta do cuidado de todas as pessoas. A pandemia escancarou isso”, explica a socióloga e integrante da SOF Tica Moreno. Uma pesquisa da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) mostrou que, entre as pessoas que se consideram responsáveis pelas tarefas domésticas na pandemia, as mulheres foram as que mais assumiram a limpeza da casa, as refeições e o acompanhamento escolar dos filhos.

Isso escancara outra nuance. A pandemia potencializou, sobretudo, a vulnerabilidade das mulheres mães. Um estudo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) mostrou que quase 84% das mães sentiram maior sobrecarga em cuidar dos filhos durante a pandemia. Entre aquelas responsáveis por crianças, idosos ou pessoas com deficiência, três em cada quatro afirmaram que aumentou a necessidade de monitoramento e companhia para um terceiro, segundo a SOF. Elas passaram a ficar sempre atentas. 

A ideia da jornada tripla que já recai sobre elas – cuidar da casa, dos filhos e do trabalho – se transformou em uma jornada contínua na pandemia, um trabalho que só cessa durante o sono (ou nem isso) e não é remunerado, como mostra o relatório da consultoria Meiacincodez

O saldo, depois de um ano, são mulheres exaustas, estressadas e com medo.

“Já havia dados anteriores a este momento mostrando que as mães fazem parte da população mais vulnerável e que mais fica desempregada em qualquer crise sanitária”, explica Thais Fabris, consultora especializada em comunicação com mulheres da Meiacincodez.

Sem possibilidade de retorno ao trabalho

“Quando começou a pandemia, achei que seria uma ótima oportunidade para me conectar comigo mesma, com minha família, a vida, o planeta.”

“Cheguei ao último dia do ano e vejo uma mãe irritada à décima potência, uma profissional frustrada, uma companheira distante, uma cidadã querendo morar numa ilha deserta”

O desabafo de Jessica em uma rede social, no dia 31 de dezembro de 2020, era quase um pedido de socorro, depois de estar em casa, ao longo  dos 10 meses anteriores, com as filhas de 2 e 5 anos, sem poder voltar a trabalhar.

O marido faz home office o dia todo. As crianças passaram a maior parte do ano sem ir para a escola. As avós não podiam ser visitadas. “Não consegui voltar a trabalhar, pois tenho que cuidar das minhas filhas. No segundo semestre, até arrumei um projeto, mas precisei recusar, pois elas ficam muito tempo comigo.” 

Quando começou a pandemia, achei que seria uma ótima oportunidade para me conectar comigo mesma, com minha família, a…

Publicado por Jessica Marzo em Quinta-feira, 31 de dezembro de 2020 

 

Jessica faz parte dos 36% de mães que deixaram de procurar emprego durante a pandemia, segundo pesquisa do CineMaterna e da Noz Pesquisa e Inteligência. Nesse tempo, precisou aprender a conciliar a educação de duas crianças em diferentes idades de aprendizado e crescimento. O desafio de ficar em casa, acumulando a maior parte das tarefas domésticas e do cuidado com as meninas, além do cansaço, trouxe a frustração. “Eu estava bem animada para voltar a trabalhar, depois de me dedicar a elas. Fiquei muito tempo remoendo isso e ainda estou super ansiosa”, conta.

Houve momentos de respirar fundo e tentar conversar com as amigas, mas até isso tem sido difícil. O ponto de síntese desse cansaço veio quando uma amiga perguntou o que Jessica gostaria de presente de aniversário e ela, sem pestanejar, disse que queria uma semana em um lugar isolado, em silêncio. “Eu já havia passado do limite de exaustão. Agora, meu marido bloqueia dois horários na agenda dele para ficar com as meninas e eu ter tempo só para mim.”

O impacto na renda familiar

Para Jessica, apesar de tudo, a impossibilidade de ter emprego não veio acompanhada de perda de renda e, nesse caso, ela pode se sentir privilegiada. Para algumas mulheres, a insegurança financeira chegou com o desemprego. 

Mãe de gêmeos, Carolina Soares, de Campinas (SP), estava desempregada desde a época da gravidez, em 2019. Fazia alguns bicos e, como morava com a avó, tinha garantia de comida na mesa. Mas, desde novembro, ela vive só com as crianças e precisa de ajuda financeira do pai para sobreviver e alimentar os filhos. “Estou me virando com tudo o que posso, vou começar a vender brigadeiro nas ruas para ter algum dinheiro”, conta. 

A sobrecarga gerou ansiedade, um sintoma relatado por 26,76% das mães entrevistadas pela UFMS. De acordo com a pesquisa da SOF e da Gênero e Número, a maioria das mulheres afirma que a pandemia colocou a sustentação da casa em risco. No caso das mães, somente 10% das entrevistadas pela Noz e o CineMaterna não tiveram alteração na vida profissional, enquanto 28% delas perderam até 75% da renda familiar. 

 

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Arquivo pessoal

Carolina Soares, com os gêmeos Eros e Arthur, de 2 anos: “Estou me virando com tudo que posso”

As perdas são ainda maiores entre as mulheres negras, que somam 58% das desempregadas, segundo a pesquisa da SOF. “As mulheres negras já ocupam os postos mais precarizados, informais e sem direitos”, lembra Tica. De acordo com um estudo do ID_BR, 43% das mulheres negras arcam com as despesas dos filhos sozinhas, o que gera medo inclusive pela insegurança alimentar das crianças, tornando a pandemia ainda mais estressante.

“Algumas mulheres de classes A e B conseguiram não dispensar a babá ou empregada doméstica, enquanto para as de classe C e D isso é impossível. Enquanto umas deixaram de comprar delivery e roupa, outras deixaram de comprar comida”, comenta Thais Fabris.

A artesã Mariane Batista, de Recife (PE), está inserida na cadeia do trabalho autônomo. Mulher negra e ativista, mãe solo de três filhos, ela tinha como única rede de apoio a mãe, uma técnica de enfermagem. Com a chegada da pandemia, precisou se isolar com os filhos, de 4, 9 e 10 anos.

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Arquivo pessoal

Mariane Batista, com os filhos Guian, 4, Lara, 9 e Luna, 10: “Estou exausta e com medo”

 “A vida sempre foi muito corrida por causa das três crianças, mas o fato de eles terem a rotina escolar ajudava”, diz. Sem as feiras de artesanato para vender, Mariane intensificou o trabalho nas redes sociais para tentar manter a renda. Foi difícil, mas ela afirma ter conseguido. “Por muitas vezes, me vi cansadíssima e com medo por não saber como as coisas vão ficar. A incerteza faz com que a exaustão seja mais mental do que física”, desabafa.

Trabalhar em casa na pandemia vem sendo um exercício diário de paciência. “As crianças ficam bastante estressadas, principalmente o caçula. A sorte é que as mais velhas me ajudam bastante”, conta. 

“Para a mulher preta, o ‘corre’ sempre foi o mesmo. A gente sempre está com as crias, buscando pão e leite, precisando sobreviver. A pandemia só intensificou a situação”

Para Tica, qualquer mudança nessa realidade depende de repensar a privatização do cuidado. “A pandemia escancarou a crise do cuidado. Pelo discurso econômico usado neste momento, ignora-se novamente esta questão, fingindo que isso não faz parte do debate.”

“É um mecanismo permanente de invisibilização dessas mães”, conclui.

Saúde mental das mães durante a pandemia

  • 83,82% sentiram maior sobrecarga em cuidar dos filhos durante a pandemia
  • 25,18% das mães apresentaram sintomas depressivos
  • 26,76% das mães apresentaram sintomas de ansiedade
  • 22,63% das mães apresentaram sintomas de estresse
  • 39,05% das mães apresentaram sintomas de estresse pós-traumáticos

Fatores associados aos sintomas depressivos

  • Ficar desempregada durante a pandemia
  • Sentir-se mais sobrecarregada no cuidado com os filhos
  • Tomar medicamentos de uso contínuo

Fonte: Pesquisa Saúde mental de mulheres com filhos crianças e adolescentes durante a pandemia de Covid-19 (UFMS)

 

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