Evasão escolar: quais muros afastam a criança da escola?

Especialistas discutem caminhos possíveis para minimizar os impactos da pandemia em uma geração de crianças e jovens que poderão abandonar as escolas

Laís Barros Martins Publicado em 30.07.2020
Imagem preto e branco de uma menina negra encostando o rosto em uma janela de vidro por onde espia o mundo com as mãos no rosto
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Resumo

Múltiplos fatores atuam num aumento da evasão escolar pós-pandemia, sobretudo na realidade da rede pública, impactando jovens em situações de maior vulnerabilidade. Conheça caminhos para minimizar esse impacto e contribuir para que as crianças permaneçam na escola.

Já são mais de quatro meses de contato limitado ou até mesmo inexistente dos estudantes com o ambiente escolar. A pandemia evidenciou lacunas da evasão escolar no Brasil, que perpassam principalmente os alunos que não estão sendo atendidos pelas políticas públicas de educação ou carecem da mediação promovida por professores. Isso gera uma perda brusca de vínculo com a escola; falta de acesso às tecnologias e à internet, expondo dificuldades de adaptação ao ensino virtual; características do ambiente doméstico que facilitam ou dificultam a aprendizagem de alunos que temem não conseguir mais alcançar a turma, sem contar o medo ainda presente do contágio do novo coronavírus.

O risco da evasão escolar no Brasil, combinado a um conjunto de fatores relacionados a desigualdades econômicas e a vulnerabilidades sociais, deve afetar milhares de crianças e adolescentes que deixarão de atravessar de uma vez por todas os portões da escola, culminando no abandono definitivo dos estudos.

Apesar de 79% dos alunos afirmarem que recebem algum tipo de atividade pedagógica no período de isolamento social, segundo pesquisa Datafolha publicada em 28/7, a preocupação com a possibilidade dos alunos abandonarem os estudos persiste entre 31% das famílias consultadas de estudantes de escolas municipais e estaduais, com idade entre seis e 18 anos. O medo da evasão é agravado pelo aumento da percepção da falta de motivação dos estudantes para as atividades em casa, declarada por 53% dos entrevistados, e da dificuldade na rotina das atividades, que chega a 61%.

De acordo com levantamento realizado pela Conjuve e publicado em 22/6, três em cada 10 jovens confessaram que já consideraram não retornar aos estudos após o fim do isolamento. Dos que pensaram em desistir, 24% estão em idade escolar obrigatória.

“Do nosso ponto de vista, a evasão escolar já está acontecendo quando o ensino remoto não consegue atingir milhões de crianças e adolescentes brasileiros”, comenta Ítalo Dutra, chefe de Educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Uma parceria multissetorial é a solução indicada por Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). “É preciso construir estratégias e agir mais ativamente agora, para não esperar que o estrago seja feito”.

“O risco é maior quanto mais vulnerável é a criança na escola pública, em famílias desestruturadas, que não consegue acompanhar o conteúdo ou que acha que não faz diferença sair da escola”

“Quando as escolas reabrirem”, comenta Ítalo, “não podemos deixar ninguém para trás e fazer a busca ativa de todas as meninas e meninos que não voltarem para a escola, a nossa principal fonte de conhecimento”. Como? “Vamos levantar quais são as crianças que não estão participando, mapear os alunos que não deram retorno e perderam o contato com a escola e, em parceria com as escolas de cada município, visitar suas casas e acompanhar cada realidade na tentativa de garantir que elas voltem para a escola”, explica Luiz Miguel.

A evasão escolar no Brasil e a falta de prioridade para a educação pública têm reflexos imediatos para a infância brasileira e, a longo prazo, pode impactar o futuro do país, acumulando mais jovens e adultos sem condição de mobilidade social, com menos estudo e menos chances de inserção no mercado de trabalho, comprometimento da capacidade crítica e cívica, aumento do analfabetismo e das desigualdades sociais.

“Já tínhamos uma desigualdade brutal entre regiões e também entre as áreas urbanas e rurais, mas a pandemia pode agravar a crise educacional, atingindo de forma mais intensa as populações vulneráveis”, reforça Ítalo.

Por isso, o pedido se direciona às famílias, para que não desistam julgando esse ano letivo perdido. “As crianças precisam manter o vínculo com os aprendizados, ainda que em quantidade menor e com dificuldades de uma nova rotina. As crianças devem seguir aprendendo”.

Falta de estímulo para voltar às aulas

Mesmo antes da pandemia, os principais fatores que levam à exclusão escolar são questões ligadas à oferta de conteúdos descontextualizados da realidades dos estudantes, atraso escolar, falta de valorização dos professores, ausência de acessibilidade para alunos com deficiência, infraestrutura e transporte escolar precários e necessidade de fortalecer políticas públicas. No Brasil, 1,7 milhão de crianças e adolescentes não estão matriculados em escolas, e 6,4 milhões têm dois ou mais anos de atraso escolar, segundo dados do Unicef.

Uma pesquisa realizada pela Fundação Roberto Marinho (FRM) em parceira com a instituição Plano CDE, antes da pandemia, ouviu 1.510 alunos brasileiros de 14 a 19 anos, de escolas públicas e pertencentes às classe C, D e E. Os principais resultados relacionados à evasão escolar no Brasil indicam que alunos com baixo rendimento escolar têm o dobro de chances de abandonarem os estudos; falta de acolhimento na escola aumenta em 50% as chances de abandono escolar e, para 45% dos alunos que já interromperam os estudos, a escola não os acolheu quando tiveram problemas pessoais.

  • 23% já pensaram ou já abandonaram a escola em algum momento da aprendizagem
  • 5 em cada 10 jovens que abandonaram a escola por algum período, mas regressaram, não foram procurados por ninguém para retornar à escola
  • 46% dos que abandonaram de vez a escola não foram procurados por ninguém quando começaram a faltar nas aulas

Como é o acesso à educação dentro de casa?

Embora alguns educadores apostem que não haverá volta às aulas este ano, mesmo que já exista um movimento para retomar as atividades presenciais combinadas ao ensino remoto a partir de agosto em alguns Estados ou que se estude transformar os anos letivos de 2020 e 2021 em um ciclo único, as redes públicas de ensino do país têm se mobilizado para seguir com o mínimo de prejuízos na aprendizagem de seus estudantes, apesar da pandemia.

Os alunos Gabriel (8), que está no 3º ano do Ensino Fundamental 1, e Lucas (5), que cursa o Infantil, ambos em escolas públicas, em Fortaleza (CE), estão sem aulas on-line, mas montaram um cantinho em casa com cadeiras, mesa, quadro branco, pincéis e uma pequena estante com seus materiais, para que eles possam estudar”, frisa a mãe Sara Rebeca Aguiar. Para ela, apesar de seguirem os roteiros de estudos e as atividades enviadas pela escola, a partir do monitoramento constante da prefeitura, “os conteúdos não são prioridade. Vivemos um tempo único de ensinamentos mais importantes do que os que trazem os livros didáticos.

“Tenho tentado fazer com que meus filhos enxerguem poesias na rotina e percebam os grandes aprendizados que há em tudo isso”

A partir das condições praticadas de ensino remoto pela escola de seus filhos, Sara considera que as aulas não foram suficientes, “de jeito nenhum”. Apesar disso, ela teme o retorno presencial. “Reconheço as inúmeras variáveis negativas que recaem sobre a rotina de crianças que estão fora da escola, mas, diante do perigo iminente a que fica exposta toda a comunidade, voltar para quê?”, questiona.

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Arquivo pessoal

Sara com os filhos Gabriel e Lucas, alunos da escola pública de Fortaleza (CE)

Reflexos emocionais no desenvolvimento infantil

Também precisa de atenção os impactos que uma crise sanitária traz para a infância. As crianças perderam o convívio direto com educadores e colegas, diminuindo de forma drástica seu repertório relacional capaz de estimular a vivência de novas expressões emocionais e de competências sociais, fatores fundamentais para o desenvolvimento infantil.

“Ninguém volta de uma pandemia para a sala de aula como se nada tivesse acontecido. Quando se considera o fim de uma condição emocional impactante, como a que temos vivido, é preciso readaptação. As crianças sentem medo, angústia, tristeza. Como estabelecer afetos sem contatos, como propõe a retomada?”, questiona Sara.

Para o pós-pandemia, prevê-se aulas com mais participação e escolas mais acolhedoras, com mais espaço para conversar, tirar dúvidas e compartilhar sentimentos, sobretudo considerando-se variações nas competências acadêmicas e experiências pessoais adquiridas durante o isolamento social, relacionadas a fatores como saúde, luto, crise financeira, desemprego, entre outros.

Contudo, para Sara, não se sabe qual conteúdo é melhor para estes tempos em que ninguém vai conseguir completar currículo”, pondera.

“O foco agora deve ser o fortalecimento emocional, o olhar para a cooperação e a solidariedade, para um movimento de respeito e cuidado de si e do outro, com empatia”

Por isso, privilegiar um sistema educacional que promova o conhecimento em diálogo com a vida, como estabelece a Base Nacional Comum Curricular, é uma das reinvenções necessárias, junto a protocolos que guiem as intervenções de acolhimento emocional dos alunos e a realização de oficinas e formações frequentes com psicólogos, por exemplo.

Luiz Miguel, presidente da Undime, também aponta um movimento de valorização da educação e da figura do professor. “A família é decisiva para que seu vínculo com a escola permaneça”, comenta. “A valorização do professor não pode ser só reação imediata, mas uma relação que precisa ser cultivada e se traduzir em forma de parceria”, defende.

Condições iguais para todas as crianças
O retorno às aulas será mais difícil para alunos que já tinham dificuldade mesmo antes da pandemia. As soluções que têm sido oferecidas pelas escolas neste período muitas vezes não dão conta de apoiar crianças com deficiência, que já precisavam de estratégias diferenciadas, interrompendo seu processo de aprendizagem e provocando possibilidades de evasão ainda maiores.

Uma ação para unir instituições, órgãos públicos e sociedade na busca de novas estratégias para atender às demandas individuais, a partir de avaliações diagnósticas frequentes, formação de pequenos grupos, uso de tecnologias, oferta de reforço escolar e a possibilidade de uma aprendizagem personalizada são alternativas para considerar o ritmo e o nível de cada estudante e acelerar processos positivos que beneficiem a educação de todas as crianças. Luiz Miguel, da Undime, defende um tratamento equânime. “O processo inclusivo precisa prever a mesma atenção e as mesmas garantias a todo e qualquer aluno, respeitando as limitações e os cuidados especiais que a criança com deficiência demanda”, pontua.

Os impactos do abandono escolar

O custo social total que o Brasil tem com a evasão escolar foi calculado por um estudo da Fundação Roberto Marinho em parceria com o Insper. O país perde R$ 372 mil a cada jovem que não conclui a educação básica (pré-escola, fundamental e médio), somando uma perda total da evasão escolar de aproximadamente R$ 214 bilhões por ano, custo que supera o PIB per capita de uma década.

O custo de oferecer educação básica completa é da ordem de R$ 90 mil por estudante, sendo o custo da evasão por jovem superior a quatro vezes o valor de garantir a sua educação básica. Ou seja, o jovem fora da escola custa mais ao país do que garantir toda a sua vida escolar e mantê-lo estudando.

Além disso, impactos financeiros da pandemia e a crise econômica que é um de seus efeitos devem obrigar jovens brasileiros a ajudar nas despesas da casa e no sustento das famílias, acessando mais cedo o mercado de trabalho e consequentemente abandonando os estudos. A Visão Mundial, como é conhecida no Brasil a agência humanitária World Vision, alerta que milhões de crianças serão forçadas ao trabalho infantil, à fome, à mendicância e à violência. O levantamento foi feito em 24 países da América Latina, África e Ásia.

Como combater a evasão escolar no Brasil?

Para identificar os jovens que estão longe dos estudos e tentar aplacar a evasão escolar evitando que as taxas sejam desastrosas, foi criada a plataforma on-line e gratuita Busca Ativa Escolar, que deve ajudar principalmente as escolas públicas na matrícula ou rematrícula, para entender por que o aluno não voltou e promover as condições para que ele permaneça na escola. A ferramenta já está presente em mais de 3.100 municípios, em 16 estados.

Para Maria Lucia Salgado, professora da rede municipal e pesquisadora, “as tentativas mais recentes de diálogo entre os equipamentos de atendimento à população foram muito positivas. Quando vimos assistência social, saúde, educação e planejamento trabalhando conjuntamente, percebemos o quanto a população se mantém mais próxima à escola”.

Além de ser um direito constitucional, não um privilégio, a educação é importante propulsora do desenvolvimento do país. Embora o Brasil venha aumentando significativamente a sua despesa com educação nas últimas décadas, os indicadores de proficiência e o nível de aprendizado avançaram pouco, o que reforça a necessidade de aperfeiçoar políticas públicas, como o novo Fundeb, que garante o financiamento da educação básica brasileira, sem o qual “dificilmente vamos conseguir recursos para a educação ano que vem”, alerta Luiz Miguel, da Undime.

“Uma das questões fundamentais para evitar a evasão escolar no Brasil é buscar sintonia entre o sentido dado pelo Estado à educação e à escola, e o sentido dado pelas famílias, motivando que as crianças e jovens estudem. Contudo, esses sentidos dependem bastante da oferta de postos de trabalho, acesso à cultura e outras formas de inserção das crianças e jovens para além da escola. Um projeto de diminuição das desigualdades por meio de distribuição de renda seria o ideal”, indica Maria Lucia.

Caminhos estão sendo discutidos entre governos, secretarias e sociedade civil para combater a evasão escolar no Brasil pós-pandemia. Entre as propostas, estão:

  • Levantar formas de aferir a qualidade e cobertura do atendimento a distância durante o período de isolamento ou de retorno híbrido (aulas presenciais e não-presenciais).
  • Estabelecer medidas para recuperar os conteúdos previstos, com especial atenção aos alunos de maior vulnerabilidade social.
  • Enfatizar estratégias para acompanhar e estimular o engajamento dos estudantes.
  • Recolher feedbacks pela escola junto a estudantes e pais sobre o processo de aprendizagem e as relações educacionais existentes.
  • Esforço de engajamento dos alunos nas atividades escolares, com especial acompanhamento dos estudantes com maior propensão a evadir.
  • Oferecer às famílias que sofreram perda de renda apoio financeiro para as despesas relacionadas à escola, como alimentação e transporte, para que esses alunos tenham condições de voltar a estudar.

“Para aqueles cujo padrão social já atingiu níveis mais altos, a escolarização representa o preparo para ocupar postos garantidos pelo poder econômico de suas famílias, mas, para as classes populares, a esperança de que a escolarização promova ascensão social ou mesmo cultural, acredito que nunca foi tão escassa”, completa Maria Lucia.

“Em função da desigualdade social e concentração de renda há muitas educações em disputa

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