A partir do ano que vem, alunos do ensino médio terão mais tempo de aula em disciplinas obrigatórias e menos para as optativas, também chamadas de itinerários formativos. A decisão está na Lei n. 14.945, que oficializa a reforma do ensino médio, sancionada no fim de julho.
A nova divisão agradou principalmente os estudantes que estão de olho no Enem. Isso porque acreditam que os conteúdos da formação básica estejam mais relacionados ao exame. É o caso da estudante Maria Jordana Magalhães Lopes, 15, que cursa o 2º ano do ensino médio, na Escola Estadual Lions Club, em Arapiraca, Alagoas. Maria fará o Enem neste ano, pela primeira vez, como treineira. Para ela, os itinerários têm um impacto negativo: ocupam muito tempo de estudo e inviabilizam que se aprofunde em outras disciplinas. Além disso, em provas como Enem, vestibulares ou concursos, não caem os conteúdos dos itinerários, e é por meio delas que deve construir seu futuro.
Em São Luís, no Maranhão, Carlla Cristina dos Santos Sousa, 18, está no 3º ano e conclui o ensino médio, no Centro de Ensino Humberto de Campos. Ela critica o modelo vigente, afirmando que as disciplinas eletivas trouxeram mais pressão aos estudantes do último ano, ao mesmo tempo em que já encaram uma série de exames e estão em momento de decisão de carreira. “No meio disso, temos de fazer uma disciplina eletiva que não vai me ajudar em nada na prova do Enem.”
A estudante ainda questiona a diminuição da carga horária de disciplinas como sociologia, por exemplo, que a ajudariam na produção da redação da prova. “Tudo isso foi muito desgastante. Por isso, gostei muito da nova proposta do ensino médio, que se parece mais com o que tínhamos anteriormente”, afirma.
Divergências
Para Hugo Silva, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), um dos principais avanços da reestruturação do ensino médio foi o fato de o Enem não cobrar os conteúdos abordados nos itinerários formativos. A exigência estava prevista no texto original da lei, mas foi um dos pontos vetados pelo presidente Lula.
“Esse foi um avanço muito significativo do projeto. Mas, agora, a nossa principal pauta vai ser lutar pelo espanhol como 13ª disciplina e garantir o ensino médio noturno obrigatório nas escolas”, avalia. Ele também defende maior orçamento para o ensino médio brasileiro.
Hoje, a nova lei prevê a oferta facultativa do espanhol. Quanto ao ensino médio noturno, ele deverá ser oferecido em pelo menos uma escola de cada cidade, caso haja demanda.
Para Maria Helena Guimarães de Castro, titular da cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação e Avaliação Educacional, na Universidade de São Paulo (USP), um dos pontos positivos da lei, é a garantia da oferta do ensino técnico, com carga horária de 2.100 horas. Destas, 300 horas poderão ser destinadas aos estudos de conteúdos da BNCC relacionados à formação técnica.
Por outro lado, acredita que a não exigência dos itinerários no Enem é algo “preocupante” para a implementação do novo ensino médio. Dessa forma, segundo ela, “o Enem vai avaliar somente o currículo tradicional. Isso significa que haverá uma desconexão com o novo ensino médio e o formato do Enem. Assim, a mudança pode prejudicar os estudantes que optarem pelos novos itinerários”.
“Tenho uma preocupação grande, porque pode haver implicações negativas, já que dificilmente as escolas deixarão de organizar os currículos sem olhar para o Enem, que só vai cobrar a formação básica”, observa Maria Helena.
Brendha Ervelin de Oliveira, 17, aluna do 3º ano do ensino médio na Escola Estadual Heckel Tavares, em São Paulo, também sente o fato de o Enem não cobrar os conteúdos dos itinerários, que são diferentes de outras matérias. Ela optou pela área de humanas, com atividades que vão de aulas de filosofia a técnicas de oratória. Como exigem maior dedicação e estudo diário, acaba sendo ruim não cair em provas como o Enem, já que estudamos bastante”, lamenta Brendha.
Formação geral dos estudantes
Júlia Brezolini Moreira, 16, e Maria Eduarda Guerra, 16, alunas do 2º ano do ensino médio do Colégio Stocco, da rede particular de Santo André, no ABC paulista, estão satisfeitas com a reestruturação das jornadas, tendo em vista a preparação para os vestibulares. “Os itinerários são importantes para nossa formação. Mas eles acabam tomando um tempo muito grande da carga horária, afetando um pouco as ‘matérias normais’ da escola”, afirma Julia.
Mas Maria Eduarda conta que teve dificuldades em escolher os itinerários, porque faltava identificação com os temas disponíveis em sua escola. “Aumentar as cargas horárias das matérias básicas pode ajudar a vida de muita gente que também não se identifica com os itinerários. Eles são muito específicos, como toxicologia ou ciências forenses”, diz. Essa realidade é diferente da escola pública, que não tem opções.
Esther Ideriha, 15, até gosta do itinerário formativo sobre debates contemporâneos. No entanto, acredita que as aulas das disciplinas mais clássicas podem ajudá-la mais a “passar no Enem”. Aluna do 1º ano do ensino médio do Colégio Adventista, da rede particular de Várzea Grande, no Mato Grosso, Esther diz, ainda, que as mudanças contínuas do governo federal deixam o ambiente escolar confuso.
“As mudanças são implementadas de repente e as escolas não estão sabendo administrar e organizar a divisão da carga horária para, de fato, funcionar.” Segundo ela, “é preciso se desacostumar com algo já em andamento para se adaptar ao novo modelo”. Consequentemente, isso gera sobrecarga para os alunos, reclama.
Ocimar Munhoz Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), aprovou a retomada das 2.400 horas para as disciplinas de formação geral básica. “A educação básica tem de oferecer formação geral aos estudantes, independentemente de ele querer seguir em uma profissão ou de dar continuidade aos estudos. São conhecimentos poderosos que ajudam os alunos a entender melhor o mundo.”
Embora não seja contra a possibilidade dos aprofundamentos no ensino médio e considerar iniciativas como clubes esportivos, de dança, música, teatro ou leitura dentro da escola bem-vindas, Ocimar diz que isso não pode ocorrer em detrimento dessa formação nem restringir o tempo destinado às aulas.
Trajetória do novo ensino médio
A discussão sobre um novo modelo de ensino médio começou há, pelo menos, duas décadas no Brasil. Em 2013, o projeto de lei 6.840 previa alterar a Lei de Diretrizes e Bases, para estabelecer ensino em tempo integral e organizar o currículo por áreas de conhecimento.
Em 2016, a medida provisória 746, publicizada como “a maior mudança ocorrida na educação brasileira nos últimos anos”, defendia que isso reduziria o número de reprovações e o abandono escolar. No entanto, na época, a ideia enfrentou resistência de estudantes que ocuparam mais de mil escolas. E a crítica de que a proposta foi estabelecida sem debate com a comunidade escolar e a sociedade civil se mantém até hoje.
Em 2017, a reformulação virou a Lei 13.415, segundo a qual o novo ensino médio seria implementado de maneira escalonada, até 2024. A mudança começou então em 2022, com o primeiro ano do ensino médio, passando para o segundo em 2023, e completando o ciclo em 2024, com o terceiro ano. Contudo, o MEC suspendeu, no início de abril, esse cronograma e manteve apenas o processo de consulta pública.
O que muda?
As disciplinas obrigatórias e as do campo das ciências da natureza e ciências humanas articuladas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) passarão a ocupar 2.400 horas da carga horária total. Elas serão obrigatórias para todos os anos do ensino médio. Já os itinerários formativos, ocuparão 600 horas do currículo para aprofundamento de uma das quatro áreas do conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza ou ciências humanas ou sociais aplicadas. A ampliação da carga horária para 3.000 horas é 25% superior do que as 2.400 horas do modelo anterior.