Revisão do Estatuto do Desarmamento: como isso afeta as crianças?

Facilitar o acesso a armas de fogo resolve o problema da segurança urbana? Qual o impacto dessa medida na vida das famílias e das crianças?

Camilla Hoshino Publicado em 16.11.2018

Resumo

Revisão do Estatuto do Desarmamento: facilitar o acesso às armas de fogo resolve o problema da segurança? Qual o impacto dessa medida na vida das crianças? O Lunetas foi investigar o assunto com ajuda do Instituto Sou da Paz, especialista no tema.

De acordo com o Instituto Sou da Paz, o aumento da circulação de armas favorece o feminicídio , e os acidentes envolvendo crianças e vítimas que reagem a crimes.

Crescimento da violência intrafamiliar , aumento de casos de acidentes com crianças envolvendo armas de fogo, mais vítimas em reações a crimes. Esses serão alguns dos principais impactos na vida das famílias caso o acesso às armas aos cidadãos brasileiros seja facilitado, de acordo com a coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi.

A liberação das armas de fogo como principal medida para o problema de segurança pública no país, que esteve entre as promessas de campanha do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), é uma dentre várias tentativas de flexibilização do Estatuto do Desarmamento.

Apoiado pelos parlamentares que compõem a chamada “Bancada da Bala” – por possuírem vínculos econômicos com indústrias de armas e munições – este será um dos assuntos espinhosos a serem enfrentados pelo Congresso Nacional no próximo período.

“Vemos essa iniciativa com muita preocupação, principalmente porque vai contra evidências científicas”, diz Natália Pollachi.

Sua opinião se apoia em estudos como o Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões Brasileiras, divulgado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2013, que alertou que a difusão de armas de fogo contribui para o aumento das taxas de homicídios nas localidades.

A pesquisa apontou que o aumento de 1% de armas de fogo eleva em 2% a taxa de homicídios. Na época, outro dado ganhou destaque: a difusão de armas não possui efeito sobre a taxa de crimes contra a propriedade, o que significa que a ideia de adquirir arma de fogo para conter roubos ou assaltos não se confirma na realidade.

“A possibilidade de agir com sucesso em momento de crime é pequena. As ocorrências policiais mostram que a cada dez pessoas que tentam reagir, sete são baleadas”

Mais armas, mais mortes

Em meados de 1980, época do livre comércio de armas, a proporção de homicídios com o uso de arma de fogo girava em torno de 40%, índice que só foi interrompido em 2003 com a criação do Estatuto do Desarmamento. Entre 1980 e 2016, 910 mil pessoas foram mortas por armas de fogo no país. (Fonte: Atlas de Violência, 2018). As armas de fogo são responsáveis por cerca de 70% dos homicídios no país.

(Fonte: Mapa da Violência, 2016)

Violência intrafamiliar

Um dos impactos de se facilitar o acesso às armas de fogo tem relação com os atuais números de violência contra mulheres. Segundo o Mapa da Violência 2016, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados no Brasil em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que destes casos 33,2% representavam crimes praticados por parceiros ou ex-parceiros.

Uma informação relevante da pesquisa é que, em 27,1% dos casos, a residência da vítima aparece como local de assassinato. Isso indica que a casa, portanto, é um local de alto risco de homicídio para mulheres.

Panorama da violência contra a mulher no Brasil

Em 2016, o número de mulheres assassinadas no país foi de 4.645, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Jovens negros são as principais vítimas de homicídio ao lado de mulheres.

(Fonte: Atlas da Violência, 2018)

Com base nas taxas de feminicídio no país e considerando mulheres e crianças como sendo os mais vulneráveis dentro dos lares, Natália Pollachi avalia que a presença de armas de fogo pode incidir diretamente na violência intrafamiliar, tornando letais brigas familiares. “Vende-se a ideia de que comprar uma arma é a solução para a sensação de insegurança, quando na verdade ela escala a gravidade”, defende Pollachi.

“O que era um roubo, vira tiroteio. O que era uma discussão em casa, termina em feminicídio”, afirma.

Como é feito o controle de armas?

A regulamentação da posse e restrição ao acesso de armas no Brasil aconteceu com a Política de Controle de Armas, implementada em 2003 a partir da aprovação do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003). Ao lado disso, uma ampla ação do Governo Federal buscou estimular o desarmamento, incentivando a entrega voluntária de armas de fogo em troca de indenizações que variavam conforme o tipo e calibre da arma.

“Hoje, para possuir uma arma no Brasil, é preciso ter acima de 25 anos e solicitar autorização à Polícia Federal”

Os passos são: apresentar a documentação, preencher formulário justificando a necessidade, comprovar aptidão psicológica, trabalho como autônomo ou carteira assinada, além de comprovar antecedentes criminais negativos. Vale lembrar que a renovação da licença é obrigatória, a cada cinco anos.

No entanto, o programa de Jair Bolsonaro está alinhado com outras propostas que circulam no Congresso, entre elas o PL 3722, apresentado em 2012 pelo deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC) e que trata da aquisição, posse e circulação de armas de fogo e munições a partir da revisão do Estatuto do Desarmamento. O que isso significa?

Quais as mudanças com a revisão do Estatuto do Desarmamento?

–> 1. Redução de 25 anos para 21 a idade mínima exigida;
–> 2. Fim da exigência de comprovação de necessidade por parte do requerente da posse de arma;
–> 3. Retirada de impedimentos para que pessoas que respondam a inquérito policial ou processo criminal possam comprar arma de fogo;
–> 3. Exigências passam a ser apresentação de comprovante de residência, emprego, antecedentes criminais negativos e capacidade técnica e psicológica para manejo;
–> 4. Eliminação da obrigação de renovação da licença a cada cinco anos, passando para posse definitiva.

Em repúdio ao PL, o Instituto Sou da Paz publicou em 2014 uma Carta Aberta assinada por organizações que debatem Segurança Pública e Direitos Humanos, secretários de estado, chefes de polícia, intelectuais públicos, pesquisadores e especialistas. “ É inconcebível que uma lei surgida de uma grande mobilização da sociedade civil, precedida por 3 anos de intensos debates e que se tornou um modelo de lei de controle de armas em vários países, seja ameaçada desta forma”, diz o texto.

Armas trazem segurança?

O principal argumento do grupo favorável à revisão do Estatuto: diante do atual índice de criminalidade e violência, “o cidadão tem direito de se armar para se defender”, postura que converge com a ideia de “guerra ao crime” que tem sido a tônica da política de segurança no Brasil há décadas. Esse argumento considera informações apresentadas pelos mesmos estudos citados acima, como o fato do país ter superado em 2016 a taxa 30 homicídios a cada 100 mil habitantes (contra 26,6 em 2006).

No entanto, Natália Pollachi apresenta um olhar apurado sobre a leitura destes dados em defesa da legislação atual: “É difícil olhar para o Brasil de forma genérica, pois a média nacional esconde o que é a realidade de cada região. Há estados que conseguiram um controle significativo da taxa de homicídios, como o caso de São Paulo.” Neses locais, segundo ela, os próprios secretários de segurança defendem que o Estatuto do Desarmamento foi essencial para desacelerar a escalada das mortes violentas.

A coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz também reforçou que, a maior circulação de armas nas casas, pode contribuir para o aumento de casos de acidentes envolvendo crianças e adolescentes, pelo fácil acesso ao objeto.
“Alguém que está armado 24 horas, coloca a família em risco. E se a arma está dentro de casa, guardada em local seguro, desmuniciada para proteger as crianças, então qual a possibilidade de acessá-la para reagir a um crime?”, questiona.

Além do PL 3722/2012, outras medidas tratam do tema, como o Projeto de Decreto Legislativo nº 175/2017, no Senado Federal, que convoca um plebiscito sobre a revogação do Estatuto do Desarmamento. Segundo informações do Portal Senado, por não haver consenso entre parlamentares e pela grande quantidade de renovação dos cargos na Casa em 2019, as mudanças no Estatuto devem ser discutidas e votadas apenas em 2019.

O outro lado

Em entrevista ao Nexo, o presidente do Movimento Viva Brasil e coautor do livro “Mentiram para Mim sobre o Desarmamento”, Bene Barbosa, opina que, com a flexibilização da legislação, a possibilidade de haver pessoas armadas dispostas a reagir pode se tornar um inibidor da criminalidade.

Barbosa cita o relatório das Nações Unidas “Global Study on Homicides”, de 2011, para sugerir que não há como estabelecer uma relação direta entre armas e violência. Em sua opinião, a lei deve ser revista e caminhar para um caráter mais liberal, com função fiscalizadora e controladora, mas não proibitiva como a que vigora. Para ele, a legislação atual é discriminatória, elitista e nega a pessoas mais pobres e com menos estudos a possibilidade de adquirir uma arma.

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