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‘Ela já é mocinha’: meninas têm menos tempo para ser criança

Meninas brincam menos: Imagem mostra uma menina negra, de cabelos crespos amarrados, vestido um moleton branco.

“Fala baixo”, “senta direito”, “você já é mocinha”, “arruma esse cabelo, são frases que as meninas escutam desde muito pequenas. As tentativas de encaixá-las em um comportamento padrão geram efeitos que vão além de mantê-las quietas, mas apontam um cenário onde meninas brincam menos que os meninos.

Foi o caso de Alana Costa, que na infância passava as tardes brincando na rua, porém era sempre a primeira a voltar para a casa. “Eu tinha que entrar, dar banho nas minhas irmãs mais novas e depois estar pronta para o jantar”, conta a assistente social. Ela não recorda quando deixou de se entender como criança mas, aos 10 anos, levou uma bronca da mãe por não ter limpado a casa. “Isso foi marcante porque eu ficava muito indignada. Enquanto meu irmão passava mais tempo brincando, me cobravam para cuidar de tudo.”

Essa dinâmica, que fez Alana assumir responsabilidades antes da hora, ainda marca a vida de muitas meninas e encurta a infância de quem só precisava brincar. Meninas são maioria entre quem realiza tarefas domésticas e cuida de outras pessoas — como irmãos mais novos ou idosos —, e isso começa muito cedo.

“Por causa das tarefas domésticas, meninas perdem a experiência plena da infância e a possibilidade de brincar livremente, de arriscar, errar e entenderem que o erro faz parte dos processos da vida.” – Letícia Nunes, psicóloga especialista em psicologia histórico-cultural


Meninas ou cuidadoras?

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, de 2024, mais de 20 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham cuidando da casa e/ou de outras pessoas. Desse total, 58% são meninas, e o tempo gasto chega a 14 horas semanais. Ou seja, elas dedicam, pelo menos, 2 horas por dia com as tarefas domésticas. Como mensurar esse prejuízo para a infância?

A psicóloga Letícia Nunes, especialista em psicologia histórico-cultural, explica que, quando a criança é responsável por cuidados de rotina, a autocobrança tende a aumentar e os limites ficam menos claros. “A carga de responsabilidades no cuidado com o outro é desproporcional. Então, ela pode ter dificuldade em estabelecer limites nas relações interpessoais.”

Alana confirma a consequência: “Isso foi tão reforçado quando eu era menina que, hoje, quando chego do trabalho, não consigo ver a casa bagunçada. Em vez de descansar, vou arrumar tudo.”

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O que há por trás dessa cobrança?

Para a escritora e pesquisadora inglesa Laura Bates, as violências estruturais, como o machismo e a misoginia, impõem às meninas um papel inferior na sociedade. Em entrevista à BBC Radio 4, da Inglaterra, afirmou que esse sistema de desigualdade de gênero ainda está longe de ser superado.

Segundo ela, a radicalização de meninos nasce em padrões de criação familiar e ganha impulso com algoritmos de plataformas digitais. Além disso, citou que diferentes estudos apontam como as atitudes misóginas em relação às mulheres e às meninas se tornaram comuns entre jovens do sexo masculino.

Nesse sentido, Letícia Nunes lembra que relacionar as tarefas de cuidado ao sexo feminino é um estereótipo ainda comum e que soma às exigências que as meninas ouvem desde pequenas, como por exemplo, sentar direito, se arrumar e falar baixo.

“Apesar de parecer inofensivo, são pedidos que direcionam como uma menina deve se portar e atender às expectativas externas, sempre cuidando de si, dos outros, das coisas e da casa”, diz a psicóloga.

A pesquisa “Por ser menina no Brasil”, da ONG Plan International Brasil, concluiu que elas realizam o dobro de tarefas domésticas que os meninos. Por exemplo, 76% das meninas e apenas 12% dos meninos “lavam a louça”; e cuidar dos irmãos é tarefa de 32% das meninas e de 10% dos meninos. Além disso, uma a cada três considerou insuficiente o tempo de brincar durante a semana e 65% disse que o mais importante nas relações com as pessoas é “identificar quando alguém precisa de ajuda”. A pesquisa ouviu 2.589 meninas de seis a 14 anos em cidades das cinco regiões do país, em 2023.

Quando não cuidamos das meninas, surgem outras violências

Alana Costa, que também é pesquisadora sobre as violências contra crianças e adolescentes, observou que as meninas são a maioria entre as vítimas de abuso sexual e psicológico atendidas nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Em seu estudo em curso pelo Programa de Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia, da Universidade Federal do Pará, ela constatou que, além dos traumas, essas meninas precisam assumir papéis de responsáveis muito cedo e sem suporte.

“Quando chegam na adolescência e começam a namorar, muitas vezes entram em relacionamentos abusivos em que o namorado é um homem de idade mais avançada do que a dela”, conta.

Alana diz que não são situações isoladas. “Durante a minha pesquisa, identifiquei casos de adolescentes que engravidaram em contextos de abuso ou de namoro e que precisaram assumir a maternidade e deixar de estudar”. Por isso, recomenda observar o quanto é precoce a interrupção da infância das meninas.

“Tudo isso carrega um peso muito forte pois, em vez de serem cuidadas, protegidas e incentivadas a viver a própria infância e adolescência, as meninas acabam assumindo cedo demais responsabilidades de adultos.” – Alana Costa, pesquisadora e assistente social

Os números do SUS (Sistema Único de Saúde) ajudam a dimensionar o problema. De acordo com o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC), 1 em cada 7 bebês nasce de mãe adolescente.

Já um levantamento de 2025 da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), aponta que, entre 2020 e 2022, mais de 1 milhão de adolescentes tiveram filhos e mais de 49 mil tinham entre 10 e 14 anos — faixa etária em que a gestação configura, por lei, evidência de estupro de vulnerável.

“O corpo feminino é sexualizado desde a infância. Isso obriga as meninas a desenvolverem uma consciência social e de si mesmas precocemente. Elas, então, adotam uma postura mais ‘madura’ e vigilante”, pondera a psicóloga Letícia Nunes.

Quebrando o ciclo

Letícia e Alana concordam que o primeiro passo para combater as violências contra as meninas começa em casa, nos combinados do dia a dia. “As famílias podem estabelecer a distribuição mais justa e igualitária das tarefas domésticas sempre adequadas à idade e à autonomia dos filhos, e não ao gênero”, argumenta Letícia.

Além disso, a psicóloga recomenda que os responsáveis participem das brincadeiras e cuidem das meninas. “É importante incentivar a diversão e a experimentação, acolhendo possíveis manifestações de autocobrança excessiva.”

Quebrar os ciclos violentos durante a criação também é um ponto de partida, segundo Alana. “Tenho dois filhos, um menino de 16, e uma menina de 15. Tento inserir os dois nos afazeres domésticos de maneira igual”, conta.

Para ela, a prioridade é a proteção absoluta das crianças. Por isso, a importância de denunciar casos de violências e abusos ao Disque 100 ou ao conselho tutelar de cada cidade.

O que fazer na prática? 

Dentro de casa:

  • Distribuir as tarefas domésticas pela idade e autonomia, e não pelo gênero
  • Incentivar as brincadeiras e a diversão
  • Acolher as manifestações de autocobrança excessiva

Fora de casa:

  • Incluir as meninas em todas as brincadeiras
  • Denunciar situações de trabalho infantil doméstico, violências e abusos sexuais ou psicológico

Onde? 

  • Disque 100
  • Conselho tutelar 
  • Delegacia da Criança e Adolescente

Apesar das questões estruturais que existem fora de casa, para as duas profissionais, a construção e a manutenção de um lar seguro para a infância é uma forma de resistência e de empoderamento das meninas. “Que elas tenham o tempo delas de ser meninas e brincar o quanto puderem”, finaliza Alana.

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