Reconhecer que cada pessoa tem necessidades específicas é o ponto de partida para o desenvolvimento de políticas que garantam a inclusão
Conversamos com famílias e especialistas para conhecer diferentes experiências e trajetórias de desenvolvimento e aprendizagem de crianças com Down.
Karina Gouvea tem 38 anos e leva uma vida cultural agitada: congressos, viagens e namoro. Desde os 16, conquista sua independência e já trabalhou em vários lugares. Hoje atua na parte de assistência administrativa de uma empresa multinacional. “Entrego malotes, correspondências e materiais de escritório”, conta.
Aos três anos de idade, Karina foi diagnosticada com síndrome de Down. A família optou por uma escola regular, junto com os outros dois irmãos. Foi assim até concluir o ensino médio e depois cursos profissionalizantes. A mãe, Gislene Gouvea, afirma que a escolha do colégio foi pensando na autonomia e adaptação para os outros espaços sociais ou “a toca dos leões”, como ela descreve.
“Tive muita dificuldade em matemática, mas gostava de português, história e física”, relembra Karina. Durante o colégio, além de um curto período de fonoterapia, ela contou com a ajuda de uma professora auxiliar no contraturno, que ficava disponível para todos os alunos. O gosto pela arte, também entre suas disciplinas favoritas quando criança, coloriu sua imaginação e influenciou a participação posteriormente em aulas de dança, fotografia, pintura e teatro.
“As grandes conquistas estão relacionadas aos estímulos que recebem desde cedo e o tripé fundamental é a família, a escola e a terapia”, garante a fonoaudióloga Christiane Caruzzo. Há vinte anos trabalhando com terapia e autismo, ela relata que as crianças, em geral, reagem de maneiras diferentes aos estímulos, por isso é importante levar em conta a individualidade de cada um.
Em relação às crianças com síndrome de Down, a fonoaudióloga aponta algumas características que podem afetar o desenvolvimento cognitivo, entre elas a apraxia da fala, uma dificuldade de programação e planejamento dos movimentos motores. Além disso, a memorização de curto prazo. “É importante trabalhar de forma lenta, repetida e com elementos concretos”, afirma.
Seu filho Henrique, de sete anos, tem síndrome de Down e frequenta o primeiro ano do ensino fundamental. Com ele, ela utiliza o trabalho manual, com auxílio de letrinhas de madeira para a formação de palavras. “Na educação infantil eles acompanham as crianças do ensino regular, mas no ensino fundamental o atraso fica mais evidente”, observa.
Mesmo com o trabalho e as pesquisas no Brasil sendo recentes, segundo ela, alguns métodos interessantes podem ser destacados no processo de alfabetização: método dos dedinhos, multigestos e a utilização de aplicativos, que estimulam não apenas linguagem auditiva, mas sobretudo a visão.
Pensando no desenvolvimento de capacidades desde o nascimento, o Movimento Down, em parceria com mães e especialistas, criou o Guia de Estimulação para Crianças com síndrome de Down, uma dica para os primeiros anos de vida.
Na opinião da especialista em políticas de educação e fundadora do Movimento Down, Maria Antônia Goulart, o maior ou menor acesso a essas terapias faz diferença para que a criança desenvolva algumas habilidades, como de motricidade e linguagem, que impactam diretamente na aprendizagem.
“Mas esses serviços ainda são pouco oferecidos no (SUS) Sistema Único de Saúde , o que significa, na prática, que crianças que têm melhores condições financeiras acabam tendo mais condições de avançar no seu desenvolvimento”, aponta.
Amante dos livros que ganha desde a infância, Tamile Ritzmann Fronczak sonha em ser professora. Aos 23 anos, ela cursa o segundo semestre de Pedagogia na Universidade Positivo, em Curitiba. Uma vez por semana, faz estágio de observação em uma escola infantil.
Com miopia e após uma cirurgia no coração, a estudante teve o apoio de vários profissionais e atividades para ter bons resultados quando criança: educadora visual, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, psicopedagoga, além de estimulação aquática e programas de enriquecimento instrumental.
Mas se houve um fator indispensável para trabalhar a comunicação, de acordo com sua mãe, Maria Teresinha, foi a oportunidade de convívio. Ela lembra que a filha teve dificuldade de locomoção, mas que os colegas ajudavam Tamile a chegar ao parquinho da escola. Enquanto ela começava a andar, os colegas aprendiam o significado da solidariedade.
“Precisamos desmistificar a deficiência, pois todos nós temos necessidades diferentes em algum momento da vida”, diz Teresinha
Para a mãe, a estimulação precoce e a oferta de experiências diversificadas ao longo da vida de Tamile também foram a base para para construir uma leitura do mundo após sua alfabetização. “A alfabetização está relacionada ao processo de reconhecer os símbolos e as estruturas, enquanto o letramento é a capacidade de utilizar esses símbolos para uma comunicação com o mundo”, afirma Teresinha, que começa a aprender os conceitos com a própria filha.
Em casa, quando criança, Tamile tinha a tarefa de fazer a lista de compras semanal, observando o que estava faltando na geladeira e copiando o nome dos produtos. “Se ela não colocava na lista, nós não comprávamos, então ela sentia a responsabilidade daquilo”. Além disso, os pais desenhavam mapas com sinalização quando saíam de casa, para ela aprender a se localizar desde cedo.
Hoje, a universidade se adaptou para atender as necessidades específicas da aluna, disponibilizando uma professora auxiliar e reduzindo a carga horária, para garantir o apoio no contraturno. Todas as janelas da semana estão preenchidas e, nesse meio tempo, já leu uma obra inteira do pedagogo e filósofo Paulo Freire. E as palavras que Tamile escolheu para escrever as páginas da própria vida, também parecem ser aquelas destacadas no livro do autor admirado por ela: educação e autonomia.
Panorama da Síndrome de Down no Brasil De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde, 2013, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 0,8% da população têm algum tipo de deficiência intelectual. Deste total, 54% tem um grau intenso ou muito intenso de limitação. Apesar disso, ainda não se sabe o número exato de brasileiros com síndrome de Down. Neste caso, é utilizada a estimativa da Organização Mundial de Saúde de que, no mundo, uma em cada setecentas crianças nasce com síndrome de Down. O Movimento Down organiza uma campanha pela notificação dos nascimentos, chamada “Notificar Importa!”.
Reconhecer que cada pessoa tem necessidades específicas é o ponto de partida para o desenvolvimento de políticas que garantam a inclusão. E, sendo a escola um dos primeiros espaços de aprendizagem coletiva, ela se torna um ambiente indispensável para que crianças desafiem suas dificuldades e demonstrem habilidades.
“A educação inclusiva é aquela realizada em sala de aula regular ou comum, que atende a toda diversidade, incluindo alunos sem deficiência”
“A premissa é a de que pessoas diferentes aprendem melhor juntas, em estratégias colaborativas”, explica Maria Antônia Goulart, fundadora do Movimento Down e especialista em políticas de educação.
No caso de estudantes com deficiência, esse direito é expresso na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2006. Em 2008, surge a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, criada pelo Ministério da Educação, para se adaptar às novas legislações. Somente em 2015, entra em vigor a Lei Brasileira de Inclusão (LBI).
Apesar da garantia pelo Estado de uma estrutura adequada para o acolhimento de pessoas com deficiência nas escolas, que inclui transporte acessível, atendimento educacional especializado, diversidade de instrumentos de avaliação, entre outros elementos, apresentados na Cartilha Escola para Todos, elaborada pelo Movimento Down, não se pode padronizar os métodos de aprendizagem aplicado às crianças que têm síndrome de Down, segundo Maria Antônia Goulart.
“O importante é estar atento às características do estudante, ao seu estilo de aprendizagem e oferecer os recursos necessários de forma personalizada a partir do seu perfil e não da síndrome”, defende. Ela reforça que, embora algumas questões sejam comum nas crianças com síndrome de Down de forma mais ampla, como a hipotonia (redução do tono muscular), experiências que ganham sucesso são as que identificam as características da criança, elaboram o Plano de Desenvolvimento Individualizado e ajustam as estratégias e os materiais pedagógicos a essas necessidades.
Conheça seus direitos É dever do Estado garantir “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (Constituição Federal, art. 208). “Qualquer escola, pública ou particular, que negar matrícula a um aluno com deficiência comete crime punível com reclusão de um a quatro anos”. (Artigo 8º da Lei 7.853/89)
A coordenadora de Desenvolvimento Institucional do Movimento Down, Bianca Ramos, afirma que, por vários motivos, o desenvolvimento da capacidade oral e, consequentemente, o processo de alfabetização podem ser afetados.
É o caso de sua irmã Karolina, de 16 anos, em que a escola busca valorizar potências para pensar em boas estratégias de aprendizagem. Além de terapia e apoio pedagógico suplementar, a família discute com professores um equilíbrio entre as atividades de apoio, a alfabetização e aquelas compartilhadas com a turma regular.
“A construção com a escola, em diálogo com os demais profissionais que a apoiam, também é uma tarefa diária e que envolve bastante tensionamento”, diz Bianca.
“A família tem um papel central na articulação e na tomada de decisão, mas nem sempre tem todas as informações necessárias para isso”
(FONTE: Movimento DOWN)
“É sempre um prazer ser campeão”, diz o atleta Juan Rodrigues do Nascimento Silva, de 27 anos, que conhece bem o gostinho da vitória. Após superar problemas respiratórios e dificuldades motoras na infância, em virtude da síndrome de Down, Juan integra atualmente a seleção brasileira de futebol e também a de natação para atletas com essa necessidade específica. Sua rotina envolve treinos de segunda a sábado.
Augustinho Meireles tem orgulho das conquistas do filho e a certeza de que o incentivo é a palavra-chave para o desenvolvimento de pessoas com Down. Vice-presidente da Associação Paradesportiva JR, que incentiva a prática de esporte e o desenvolvimento de atletas com Deficiência Intelectual (DI), ele avalia como o esporte mudou a vida de Juan e dos outros 90 alunos da JR. “A gente percebe a evolução deles na parte da fala, do pensamento, das atividades em grupo e também na conquista da independência”.
Mas a atenção desde o momento do nascimento foi indispensável. Com um mês, Juan já recebia o auxílio de fonoaudiólogos da Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Ele entrou na escola com nove anos, mas a necessidade de acompanhamento dos pais e de profissionais não permitiu que ele ficasse mais do que três anos dedicado ao ensino regular. “Hoje a lei garante a inclusão, mas naquela época era mais difícil”, lembra o pai.
A família, que optou por dar liberdade a Juan e deixar que ele expressasse suas aptidões, logo percebeu o amor pela música e pelo esporte. Hoje, sem completar alfabetização, Juan tem vontade de aprender a ler e a escrever, mas não acha que ir para a escola seja o caminho. “Ele tem uma trajetória de escolhas próprias e está voltando a se interessar pelos estudos. Nós vamos ajudar”, afirma Augustinho.
“Quando eu era pequeno eu nadei na Apae e foi isso que mudou para mim. Depois comecei a nadar com a JR. Hoje estou competindo natação fora do país”, conta o atleta, que já disputou na Grécia, Itália, México, entre outros lugares.
E se de um lado Juan esbarra nas letras, de outro sua saúde e seu treino estão em dia. Por enquanto esse é o equilíbrio que permite o atleta seguir em frente com a expectativa e o pensamento de um vencedor: “Rumo ao mundial do Canadá em 2018”.
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O que é a síndrome de Down? A Síndrome de Down não é uma doença. Ela acontece quando uma pessoa nasce com um cromossomo a mais em cada célula do corpo. As pessoas com síndrome de Down, ao invés de duas cópias do cromossomo 21, têm 3. (Fonte: Ministério da Saúde)