Apesar de anualmente o Dia do Trabalhador relembrar avanços dos direitos trabalhistas, quando se trata de remunerar o serviço do cuidado doméstico e familiar ainda se impõem barreiras políticas, sociais e até culturais para validar o papel de quem move a chamada “economia do cuidado”. O termo, que saiu das pesquisas sociológicas e econômicas sobre o trabalho doméstico e reprodutivo, chegou aos debates acerca dos direitos, principalmente de mulheres, que dedicam suas vidas ao cuidado dos filhos e ao gerenciamento de seus lares.
É o caso de Vânia*, que vive em Bragança, interior do Pará. Todos os dias, ela acorda às seis da manhã e sai de casa para a sua primeira jornada, na casa dos pais. Lá, ela prepara o café, limpa todos os cômodos, lava e estende as roupas, organiza as refeições, a feira e cozinha a comida do dia. “Eu não tenho como pedir que me paguem por isso. Eles são idosos e vivem de um salário mínimo para as contas, alimentação e remédios”, explica. Em meio aos serviços, ela também cuida do pai, que vive com sequelas de um AVC e tem Alzheimer. “Todo dia lavo o quarto, limpo a cama, dou banho nele e também a comida”, conta. Quando termina todo o serviço, volta para a própria casa e começa a fazer tudo de novo. É a segunda jornada de cuidados domésticos. Aos 53 anos, ela mora sozinha desde que perdeu o filho que a ajudava financeiramente.
A história dela se junta a de 54 milhões de pessoas no país que, por escolha ou falta de oportunidade, realizam atividades de cuidado com moradores de seu domicílio ou parentes, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNADC, de 2019. São responsabilidades que recaem majoritariamente no colo, nas costas e na mente das mulheres que são 85% das pessoas que fazem esses serviços, segundo a plataforma “Vale do cuidado”, que cruza dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Organização Mundial da Saúde (OMS) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou que 606 milhões de mulheres no mundo relacionam o trabalho de cuidado a não conseguir um emprego fora de casa, enquanto apenas 41 milhões de homens disseram o mesmo. A diferença é maior do que o número de toda a população da América do Sul.
Silva, por exemplo, nunca teve a carteira assinada, nem mesmo quando trabalhou como empregada doméstica na capital, onde morava na casa dos patrões. Atualmente, a ajuda financeira vem dos irmãos e de pessoas conhecidas. “Não consigo mais trabalhar fora porque estou com problema na coluna”, relata. Quando questionada sobre o que mudaria se pudesse receber um salário todo mês, ela resume na palavra “tudo”. “Eu não precisaria mais depender dos outros para pagar minhas contas, pois não gosto disso. Se as mulheres recebessem por esse serviço, daria para pagar as despesas”, conclui.
Se o cuidado é essencial, por que não é reconhecido como trabalho?
Quando uma pessoa prospera na vida profissional, certamente teve o auxílio de mulheres que cuidaram das necessidades básicas, como a manutenção da rotina doméstica, o conforto do lar, alimentação, abastecimento e higiene da casa. Serviços que não entram na lista da comemoração de uma promoção na empresa, um diploma ou destaque do mês. Para Ana Castro, ativista e cofundadora do coletivo “Política é a mãe”, é preciso mudar a lógica da invisibilidade das tarefas do cuidar e colocar a vida no centro. “É uma revolução que deve ser parida agora: quem cuida da manutenção e reprodução da vida precisa ser reconhecida. O que aconteceria se todas as mães e cuidadoras entrassem em greve?”
Para Castro, não podemos acomodar a ideia de que o trabalho doméstico é menor do que trabalhar em um banco, por exemplo. “Já passou da hora de entendermos que quem faz a roda do mundo girar são as pessoas que cuidam. O alto executivo não terá como ir ao trabalho se não estiver alimentado, de roupa limpa, e ter dormido em uma cama com lençol limpo. Por que um trabalho importa mais do que o outro?”, questiona. Articulada pelo “Política é a mãe”, ela faz parte de uma rede de mulheres que reivindicam junto a entidades políticas um salário social para todas as mães e cuidadoras, além da criação de um Sindicato de Mães e Cuidadores, para proteger e instruir essas trabalhadoras.
Desde 2021, a Argentina mantém o Programa Integral de Reconhecimento de Tempo de Serviço por Tarefas Assistenciais. A iniciativa permitiu o benefício da aposentadoria de 155 mil mulheres que precisaram sair do mercado de trabalho para se dedicar ao cuidado dos filhos e da casa. O programa confirmou o cuidado materno como “trabalho”, garantindo o direito às mulheres com mais de 60 anos que não puderam completar o tempo suficiente de mercado.
Na Espanha, uma mulher ganhou no tribunal o direito de receber mais de 200 mil euros do ex-marido, em função do trabalho doméstico desempenhado durante os 24 anos em que esteve casada. O resultado é a soma dos salários que deixou de receber durante todo o tempo que se dedicou ao cuidado das duas filhas, da casa e do ex-marido, que não permitia que ela trabalhasse fora.
Por mais políticas públicas e divisão do trabalho
A movimentação social para que os direitos trabalhistas da economia do cuidado sejam reconhecidos é um sinal de avanço quando o assunto é cada vez mais debatido, como no livro “Quem vai fazer essa comida? – Mulheres, trabalho doméstico e alimentação saudável”, da ativista e chef de cozinha Bela Gil. O livro aborda questões sobre alimentação saudável, feminismo e trabalho doméstico sob a luz da divisão de trabalho entre homens e mulheres e o recorte racial. “A gente precisa melhorar bastante a divisão do trabalho entre os gêneros e cobrar do Estado políticas públicas que tirem esse trabalho só do âmbito doméstico”, diz.
No podcast “Ilustríssima conversa”, Gil destacou que o Estado tem a responsabilidade de reconhecer o cuidado como um trabalho. Ao citar o Bolsa Família como a primeira semente para remuneração de quem cuida do lar, ela comenta como as políticas públicas que amparam as crianças são exemplos que beneficiam as mulheres cuidadoras, além de democratizar o acesso à alimentação e aos serviços gerais. “Poderíamos ter mais creches e melhorar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Precisamos de mais restaurantes populares, cozinhas e lavanderias comunitárias”, detalha.
Questões raciais também atravessam quem cuida
Segundo o IPEA, a maior parte das profissionais reconhecidas pelo atual mercado como cuidadoras (babás e cuidadoras de idosos) são mulheres negras e com baixo nível de escolaridade. Muitas sem carteira assinada, sob uma jornada de trabalho intensa e com baixa remuneração. “O cuidado é um trabalho que explora muito mais as mulheres pretas e pobres por causa da nossa história de escravização”, ressalta Gil. Como ativista, ela destaca que, após a abolição, não houve políticas de inserção no mercado de trabalho nem investimento na educação dessas mulheres. Esse cenário, para ela, reforça a ideia de que a opressão continua no mesmo lugar e que as lutas feministas muitas vezes não chegam nos corpos pretos. “Uma mulher branca, bem sucedida, ainda explora a mão, o trabalho e o corpo de uma mulher preta. Isso não foi totalmente transformado na sociedade. Ainda há uma perpetuação da opressão”, destaca.
País dá sinais de avanço
No Brasil, o Projeto de Lei nº 638, de 2019, propõe a inclusão da economia do cuidado no sistema de contas nacionais para que, a partir da avaliação econômica oficial, haja políticas públicas específicas. De acordo com o texto, os serviços contemplados na economia do cuidado consistem: na organização, distribuição e supervisão de tarefas domésticas; preparação de alimentos; limpeza e manutenção da habitação e bens; limpeza e manutenção do vestuário; cuidado, formação e educação das crianças (inclusive traslado ao colégio e ajuda no desenvolvimento de tarefas escolares); cuidado de anciãos e enfermos; realização de compras, pagamentos e trâmites relacionados à casa; reparos no interior da casa; serviços para a comunidade e ajudas não remuneradas a outros lares de parentes, amigos e vizinhos. No momento, o projeto aguarda o parecer da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e demais trâmites.
Outro projeto é o 2.647, de 2021, que prevê a possibilidade de incluir o cuidado doméstico na contribuição para a aposentadoria. Aprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, este PL segue para aprovação de outras comissões.
* Alguns nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas.
A média de cinco horas de amamentação diária durante um ano equivale a 1.825 horas da mãe segurando o bebê no peito. O tempo se aproxima do total de tempo de trabalho em um emprego de período integral, com uma férias ao ano, que soma 1.960 horas.