ECA 30 anos: pandemia expõe desafios na proteção da infância

Com o aumento da violência doméstica e das desigualdades sociais em 2020, como garantir os direitos de crianças e adolescentes no Brasil?

Camilla Hoshino Publicado em 23.07.2020
ECA e a violência doméstica:Imagem em preto e branco de uma menina que aparece cobrindo o rosto com as mãos, outra menina a consola
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Resumo

O balanço de aniversário dos 30 anos do ECA em meio à pandemia de Covid-19 revela um aumento das formas de violência contra crianças e adolescentes, expondo a contradição dos atores que operam ora como agentes de proteção, ora como violadores.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos de história em meio à pandemia de Covid-19. Enquanto especialistas garantem que os avanços na elaboração dos direitos da infância no Brasil são motivo de comemoração, também destacam desafios para a aplicação das garantias previstas na legislação, entre eles o fato de a família e o Estado, dois dos principais atores de proteção, serem também violadores.

“Com o chegada da pandemia, o muro do silêncio que já era característica da violência doméstica ficou ainda mais alto”, afirma a diretora de Enfrentamento de Violações aos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Maria Leolina Cunha. Ela relata que as denúncias gerais, por meio do Disque 100, aumentaram 85% no início do isolamento domiciliar em comparação aos dados de março de 2019. Apesar de a porcentagem relativa de denúncias de crianças e adolescentes apresentar declínio, tudo indica que a violência atual contra este grupo seja maior, principalmente em virtude do confinamento.

Dados do Disque 100
Em 2019, foram registrados 86,8 mil casos de violações de direitos das crianças e adolescentes por meio do Disque Direitos Humanos. Entre eles, 11% (17 mil ocorrências) se referem à violência sexual. Isso significa um aumento de 14% em relação aos números de 2018 contabilizados pelo mesmo canal. 

De acordo com o levantamento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, em 73% dos casos esse tipo de violência acontece na casa da própria vítima ou do suspeito, e em 40% é cometida pelo pai ou padrasto. Em 87% dos registros, o suspeito é do sexo masculino. Enquanto isso, 46% das vítimas é adolescente, entre 12 e 17 anos, do sexo feminino. 

Como explica o coordenador do Núcleo da Infância e Juventude (NUDIJ) da Defensoria Pública do Paraná, Bruno Müller, deve haver subnotificação, já que o hospital e a escola costumam ser os principais mediadores dos relatos de violência intrafamiliar. Isto é, com a sobrecarga do sistema público de saúde e o fechamento das escolas, as crianças passam a ter ainda mais dificuldade de comunicar episódios de violência, seja como vítimas ou testemunhas.

“A pandemia trouxe situações excepcionais, mas nós continuamos com as ferramentas comuns”, diz Müller. Uma maneira possível de alcançar as crianças, segundo ele, são canais de comunicação entre alunos e professores por meio das plataformas digitais, que devem ser entendidas como espaço de convívio e não apenas como transmissoras de conteúdo. Apesar disso, considerando a restrição de acesso à internet no Brasil, ele defende a manutenção e a adaptação do conselho tutelar como serviço essencial, pois é uma via direta de contato com as casas e as famílias nos bairros e nas comunidades.

Violência intrafamiliar
O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a proteção de crianças e adolescentes contra qualquer tipo de violência, seja física, psicológica ou sexual, proibindo práticas como castigos físicos, tratamento degradante e maus-tratos.

Para Maria Leolina Cunha, o enfrentamento da violência física, que configura 21% das denúncias por meio do Disque 100, passa pela desconstrução da ideia de que o Estado não deve ser responsável por aquilo que ocorre no âmbito privado. “Além disso, é preciso que as famílias quebrem os mitos da própria criação que são reproduzidos na história dos filhos, como acreditar que a violência é uma forma de castigo que educa”, diz.

Ela explica que as situações de violência intrafamiliar são fenômenos repetitivos e graduais, podendo ser evitados a partir das denúncias feitas pelos atores da rede de proteção da infância, mas que ainda é necessário um trabalho de capacitação para a identificação dos sinais de agressão.

30 anos do ECA e a escuta especializada

Uma das conquistas que se destacou nas últimas décadas foi a Lei 13.431, de 2017, que determinou a implantação da Escuta Especializada e do Depoimento Especial para crianças e adolescentes que sofreram abusos ou testemunharam atos de violência. Itamar Gonçalves, especialista em Violência Doméstica contra crianças e adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP) e gerente de advocacy da Childhood Brasil, esclarece que essa legislação estabeleceu um sistema de garantias e de proteção no momento das denúncias de crime e em todas as fases do processo judicial. “A partir disso, as regiões passaram a oferecer fluxos de acolhimento integrados e especializados”, aponta. Um dos objetivos da lei é evitar que crianças tenham que relatar inúmeras vezes a violência ocorrida. Mas assim como as demais garantias previstas, ela precisa de metodologias de aplicação.

Por esse motivo, no dia 15 de julho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou o lançamento do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, experiência que vinha sendo aplicada em alguns tribunais de justiça pelo país. De acordo com Gonçalves, trata-se de um conjunto de normas e procedimentos sobre como crianças serão ouvidas, contrapondo o modelo adultocêntrico de interrogatório, geralmente focado na coleta de evidências contra os agressores e não na proteção às vítimas. O protocolo prevê a capacitação de servidores, incluindo juízes, e busca respeitar os estágios de desenvolvimento das crianças, evitando ainda mais danos à criança. Segundo ele, 

“A proteção precisa funcionar de forma integrada. Não é possível desconsiderar raça, gênero e os povos mais vulneráveis nesse sistema de garantias”

Pandemia expõe as desigualdades

A violência pode assumir muitas facetas, entre elas, o defensor público Bruno Müller destaca a violação de direitos por parte do Estado, que inclui a incapacidade de prover serviços básicos. “Com a pandemia, há um aumento das desigualdades: famílias pobres não conseguem cumprir orientação de lavar as mãos com sabão e a falta da escola impacta diretamente na garantia da segurança alimentar, por exemplo”. Nesse ponto, o cruzamento dos fatores de vulnerabilidade acaba refletindo a base negra da pirâmide social através dos índices de evasão escolar, do perfil de jovens em situação marginalizada por conta de abandono familiar ou daqueles que são alvejados pela violência.

Se uma das conquistas do ECA nesses 30 anos foi a redução de mortalidade infantil, que permitiu a sobrevivência de 827 mil crianças na primeira infância, entre 1996 e 2017, ainda não há garantias de que essa mesma população chegue à idade adulta. No mesmo período, 191 mil crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram vítimas de homicídio no Brasil, de acordo com dados do DataSUS, publicados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Em 2015, como recorda Rosana Vega, chefe de proteção à criança do Unicef, o número de meninos vítimas de homicídio no Brasil já era maior do que o número do total de meninos mortos na Síria (7,6 mil), a maioria em decorrência da guerra naquele ano. “Assim como temos um pacto na lei da escuta, poderíamos ter um pacto pela redução da violência letal”, propõe.

Cerca de 27 milhões de crianças e adolescentes ainda sofrem privação de pelo menos um de seus direitos fundamentais, quase 2 milhões estão fora da escola e o número de homicídios na faixa etária de 10 a 19 anos mais do que dobrou entre 1990 e 2017 (Unicef). 

Os estudos do Unicef mostram que os homicídios se concentram em áreas da cidade privadas de acesso à saúde, assistência social, cultura, lazer e expostas à violência armada. Os mais atingidos são meninos negros e pobres, que representavam 82,9% das vítimas em 2017. “O impacto da violência urbana produz não apenas vítimas letais, mas muitas outras que convivem com padrões repetitivos de violência e têm o desenvolvimento prejudicado”, ressalta Rosana Vega.

Como denunciar?
O Disque 100, ou Disque Direitos Humanos, é um serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, da SPDCA/SDH. Trata-se de um canal de comunicação da sociedade civil com o poder público, que possibilita conhecer e avaliar a dimensão da violência contra os direitos humanos e o sistema de proteção, bem como orientar a elaboração de políticas públicas.

* Os depoimentos presentes nesta reportagem são do debate “Prevenção e enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes”, durante o Congresso Digital 30 anos do ECA, organizado pelo Conselho Nacional de Justiça, no dia 13 de julho. Ainda foi consultado o coordenador do Núcleo da Infância e Juventude (NUDIJ) da Defensoria Pública do Paraná, Bruno Müller.

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