Descolonização: por que estudamos um lado só da história?

Descolonizar os currículos é uma tarefa fundamental para criar ambientes democráticos nas escolas, defendem educadores

Camilla Hoshino Publicado em 26.08.2019
Foto de uma mulher lendo o livro de “Maria Firmina dos Reis”, Úrsula. Na imagem aparece uma biblioteca e a mão de uma mulher segurando o livro.
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Resumo

De acordo com educadores que defendem a descolonização dos currículos, é preciso abandonar a visão eurocêntrica de mundo e buscar outros cursos explicativos para a formação de ambientes democráticos e discursos plurais nas escolas.

Será que as escolas conseguem semear ambientes plurais? A que mapas de linguagens recorrem para explicar o mundo? Como traçam as narrativas que constroem a História e a própria existência humana? Para desconstruir as linhas verticais do saber, a inquietação é inevitável. Mais perguntas do que respostas é o que tem guiado o olhar para a “descolonização dos currículos” nas instituições de ensino no Brasil.

O ponto de partida desse debate é nomeado pela historiadora e doutoranda em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas, Mayana Hellen Nunes: “racismo epistêmico”. Ela explica que enquanto uma ciência europeia se constituiu como a única capaz de produzir saberes para explicar os fenômenos da vida e se tornou dominante, outras formas de produção de conhecimento “não ocidentais” foram marginalizadas, especialmente as de povos colonizados da África, América Latina e Ásia.

“Assim, os currículos passam a ser um dos territórios de enfrentamento e de disputa entre grupos hegemônicos e grupos subalternos, pois com a descolonização do conhecimento, os currículos escolares também serão descolonizados, oportunizando que o ambiente escolar seja muito mais plural e democrático a partir da emergência de leituras de mundo plurais”, afirma.

“Ao descolonizar o conhecimento, os currículos escolares também serão descolonizados, oportunizando um ambiente democrático, com leituras de mundo plurais”

Descolonização e mudança estrutural

Desencantamento, perda de potências, apagamento. Para o pedagogo e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luiz Rufino, falar sobre “descolonização do currículo” exige não apenas uma reflexão sobre as estruturas curriculares, as produções de práticas e saberes mediados por professores, livros didáticos e a própria dinâmica das escolas, mas uma “mudança epistêmica estrutural”.

“Esses elementos não seriam tão marcados pelo projeto colonial se não existisse uma maquinaria mais ampla. Estamos falando de um projeto de dominação de mais de cinco séculos”, afirma. Isso, porque, segundo Rufino, o colonialismo é um projeto não acabado que produz e imprime, de forma violenta, uma remodelação das existências, de modos de ser e de pensar, de interagir e de criar conhecimento e linguagem.

Autor do livro “Pedagogia das Encruzilhadas”, Rufino defende a construção de um projeto de educação libertador, que não aposte em “caminhos retos”. Por isso a encruzilhada não apenas como metáfora norteadora do conhecimento, mas como fonte de sabedoria e aprendizado: de encontro existencial.

“Esse debate emerge da vida comum, do cotidiano das ruas, para reivindicar outras enunciações”, sinaliza o escritor. Também por isso convoca territórios invisibilizados para contribuir com a escola: ruas, praças, terreiros, barracões, rodas de samba e capoeira. Afinal, tudo aquilo que se aprende nas esquinas do mundo pode ajudar a formar o ser humano e produzir uma “reformulação existencial”, como indica Rufino.

“Queremos uma educação como força de libertação, uma experiência fundamentada na diferença”

Lunetas – Como formar crianças e jovens capazes de reconhecer experiências históricas e contribuições dos diferentes povos que formaram o Brasil?
Mayana Helen Nunes – Isso é possível mediante um compromisso real da sociedade e do Estado brasileiro ao formular as políticas públicas no campo da educação básica. Ou seja, é preciso construir leis e práticas que reconheçam o lugar de negros e indígenas na história, na arte, nas ciências, e em todas as áreas do saber. Nesse sentido, a lei 10.639/03 – que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas, públicas e particulares, do Ensino Fundamental até o Ensino Médio – foi um primeiro movimento importante nessa direção, pois abriu caminhos para a construção de uma educação antirracista, além de propor uma ruptura epistemológica que torna possível a emergência desses saberes silenciados.

Há outras políticas importantes?
MHN – Políticas como cotas raciais e sociais, que buscam reparar essa exclusão e desumanização históricas a que negros, indígenas, e populações mais pobres vivenciam, também têm promovido mudanças na educação brasileira, pois quando a Academia se abre para acolher estes sujeitos e suas trajetórias, se torna num espaço transdisciplinar.

Isso é suficiente?
MHN – São iniciativas importantes, mas ainda é preciso mais. Não é possível defender uma mudança nos paradigmas educacionais, se o currículo permanece o mesmo. Para pedagoga e antropóloga Nilma Lino Gomes, a descolonização dos currículos precisa ser compreendida como um ganho de construção democrática, que promova de fato a igualdade de oportunidades para os diferentes segmentos étnico-raciais e sociais. Essas mudanças só se tornam potentes se educadores, gestores educacionais, pais e alunos compreenderem que os conhecimentos dos povos de origem africana e indígenas não são mais “um conteúdo a ser ensinado”, mas representam uma mudança de paradigma na educação e na própria atitude diante do saber, do mundo e do outro.

*Mayana Hellen Nunes, é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas; Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (2014), atuando principalmente nos temas: gênero, sexualidade, mídia, violência em relações de gênero, mercado do sexo, trânsitos e marcadores sociais da diferença. É formada em História pela Universidade Federal do Maranhão (2009) e integra o Grupo de Estudos em Gênero, Memória e Identidade (UFMA).

Transformar o corpo e a linguagem

“Como olhar de forma mais democrática, mais generosa, com mais cuidado com as esferas ecológicas e também a partir de uma dimensão mais brincante das nossas existências?” As perguntas seguem orientando os caminhos da (des)construção do saber e leva Rufino sugerir uma ruptura do ponto de vista da própria linguagem. “Aprender a pensar a vida com tudo aquilo que é imbuído de vida.” Uma aposta: de forma poética e potente.

Não gosto de palavra acostumada.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
(“O Livro sobre o Nada”, Manoel de Barros) 

Para Manoel de Barros, a pedra, o sol, os musgos e o cheiro do amanhecer foram motor de uma construção poética que hoje aquece muitas existências sem, no entanto, ser validada pelo conhecimento dito “científico”. Para Luiz Rufino, essa seria uma pedagogia cuja força motriz nasce de outra cosmovisão, assentada na figura de Exu, índice de força e ignição para a transformação, tanto na cultura Iorubá como na afrobrasileira.

“A interdição de Exu como signo explicativo de mundo reflete a estratégia colonial de produzir aniquilamento no campo da linguagem”

Não se trata de religião, ressalta o escritor. De acordo com ele, a dominação colonizadora também impôs uma gramática que reduz saberes múltiplos ao campo da religião e produz um maniqueísmo que anula a diversidade. Prova disso é a associação do senso comum da figura de Exu com o diabo.  “Por que pensar o mundo a partir do bem e do mal?”

“Por que não conseguimos construir discursos e possibilidades de imaginação a partir de outros cursos explicativos?”, questiona

Na opinião do educador, assim como a dominação opera no campo da linguagem, ela produziu e segue produzindo outras formas de ataque e violência: racismo, patriarcalismo, escravismo, tortura, encarceramento e controle do corpo. Muitas vezes, ela acontece de forma sutil, impressa nos currículos por meio de um “rito” que nega o corpo: turnos inteiros sentados em cadeiras, recreios vigiados de vinte minutos, lógicas voltadas para o trabalho e produtividade. “Tudo isso é normatizador do ponto de vista da experiência, uma educação tradicional escolar completamente formatada e que induz a perda de potência”, diz.

Formação de educadores

Para uma descolonização, há um pressuposto: revisar os currículos da educação básica, mas antes disso, revisar os próprios currículos que preparam profissionais da educação no Ensino Superior. A historiadora Mayana Nunes interpreta que a “colonialidade do saber” faz com que os alunos dos cursos de licenciatura aprendam uma visão única de conhecimento e de mundo, baseada na perspectiva eurocêntrica. A mesma que exclui e marginaliza as populações negras e indígenas.

Propor uma revisão, no entanto, não significa apagar o conhecimento europeu ou substituí-lo, de acordo com ela, mas possibilitar que outros conhecimentos estejam no currículo escolar, contemplando diversos olhares sobre o mundo.

“Oportunidades de fazer essa reflexão são essenciais na desconstrução de estereótipos, preconceitos e no estabelecimento de relações de empatia e reciprocidade na escola.”

Pedagogia como ação inacabada
“Um dos exercícios que faço em sala de aula é perguntar aos estudantes o que vem à cabeça quando pensamos em Idade Média. As respostas costumam ser ‘feudalismo’, ‘a figura do rei’, ‘Deus’, ‘centralidade religiosa’. Aqui percebemos que há uma narrativa que prevalece. Mas onde estavam os tupinambás na Idade Média? Por que essas populações são excluídas deste imaginário? Uma das dificuldades de se trabalhar com formação é que as pessoas estão sempre buscando soluções de como resolver, ‘o que fazer’, ‘como fazer’. Mas a ação pedagógica é fundamentalmente política, porque é uma ação inacabada. É preciso estar por inteiro o tempo todo, pois grande parte da força de libertação da educação está naquilo que não se percebe, que ocorre no cotidiano e é miúdo. Então, vale ressaltar que pedagogia não é sinônimo de metodologia. Pedagogias são investimentos políticos que implicam exercícios teóricos e metodológicos para pensar os atos.” (Relato do pedagogo e doutor em Educação, Luiz Rufino. Ele é autor do livro “Pedagogia das Encruzilhadas“, “Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas“, e “Flecha no tempo“)

Para Mayana Nunes, o relato de Rufino é exemplo de um dos desafios da formação: o professor se perceber como um mediador e construtor de conhecimentos, e não apenas como alguém que está ali para reproduzir um conhecimento pronto e estático. Afinal, quem quer que esteja em sala de aula ou outros contextos educacionais sabe que o quanto de encruzilhada tem o ato de educar-aprender e o quanto de ginga ele exige, de ambas as partes.

É essa ginga que, às vezes, faz falta. “Temos sensação de que estamos ensinando quando temos o controle de tudo. Mas é ao contrário, educação é estado de caos, polifonia, múltiplas vozes, jogo, brincadeira”, diz Rufino. Descolonização dos saberes é, antes de tudo, lançar-se na difícil empreitada de desfazer certezas para brincar com as possibilidades.

“Todos nós vivemos experiências educativas a todo o momento. Por que não brincar com essas possibilidades nas escolas?”

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