Mais de 10 mil crianças e adolescentes precisaram deixar suas casas por causa das enchentes que atingiram cidades inteiras no Rio Grande do Sul. Muitas esperaram por resgate em cima de telhados, viram suas escolas ficarem debaixo d’água e tiveram que deixar brinquedos e animais de estimação para trás. Para o Unicef, experiências como um desastre climático podem provocar “estresse tóxico” nesses grupos.
“As crianças estão vivendo situações extremamente traumáticas. Além de perderem suas casas e seus brinquedos, elas não têm mais seus espaços de brincar, pois está tudo destruído. Então, o antídoto para esse estresse tóxico é o brincar”, defendeu o pediatra Daniel Becker em suas redes sociais.
Apesar de não parecer uma necessidade básica em situações de vulnerabilidade, a “pedagogia de emergência” propõe uma intervenção imediata para resgatar o brincar entre as crianças. “Parar de brincar é o primeiro sinal de que uma criança não está bem”, diz Reinaldo Nascimento, pedagogo e terapeuta social. “Mas, quando a gente chega em locais de trauma trazendo brincadeiras, muitas pessoas estranham porque pensam que não é a prioridade. Conforme percebem as mudanças no comportamento das crianças, elas vão entendendo e começam a relaxar.”
Cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, Nascimento coordena equipes formadas por médicos, psicólogos e pedagogos que vão atuar, durante 30 dias, em 16 abrigos em Porto Alegre e cidades gaúchas vizinhas. Além do trabalho com as crianças, ele conta que “também existe um trabalho com os pais, para que saibam como lidar com elas nesse momento em que a vida de todo mundo está bagunçada”. A “emergência” em aplicar essa pedagogia ainda quando as crianças estão em situação vulnerável, como em abrigos, diz Nascimento, é justamente para minimizar os sintomas e os efeitos que o evento traumático pode gerar.
Como serão os trabalhos no RS?
Na pedagogia de emergência, o primeiro passo é reconhecer como o grupo está e do que precisa, explica Reinaldo Nascimento. O principal objetivo é orientar educadores, familiares e demais profissionais a lidarem com crianças e adolescentes abrigados. Então, os voluntários tentam criar um ambiente educacional seguro e sereno. Esse cuidado vai desde iniciar uma conversa, saber ouvir com sensibilidade e até chamar para brincar. Em brincadeiras de roda, por exemplo, é possível observar como as crianças se comportam, se estão atentas, tristes ou irritadas.
“Está certo pensar que as brincadeiras proporcionam alegria e a alegria cura. Mas esse processo também pode trazer as feridas de volta. Ou seja, se o brincar não for com muito carinho, também pode ser traumático”, argumenta Nascimento. “O brincar é algo que toda criança sadia faz. Se ela não está bem, ou não brinca ou brinca daquilo que causa a sua dor.”
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, um quinto das pessoas que vivem em zonas de conflito pode conviver com doenças mentais, como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. Contudo, para Nascimento, que já trabalhou em locais como Iraque e Faixa de Gaza, embora os sintomas possam ser os mesmos, a situação das crianças do sul não lembra a guerra. Isso porque “há uma diferença entre deixar o país em meio a conflitos armados e bombardeios e deixar sua casa e ir para um abrigo por tempo indeterminado”.
“Todo o processo deve envolver uma conversa e uma escuta dos alunos, principalmente dos adolescentes”, diz o pedagogo. Para as crianças maiores, algumas das atividades envolvem música, trabalhos manuais, danças e movimentos. Já para os menores, uma estratégia é trabalhar com desenhos e pinturas para que elas se expressem.
“Corpo, alma e espírito”
As atividades buscam integrar o desenvolvimento físico, intelectual e artístico a partir de três aspectos principais que se conectam:
- O querer: que se relaciona às vontades e aos desejos da criança, considerando seus conhecimentos e suas reações.
- O sentir: são as emoções que a criança apresenta no momento do brincar e as reações de seu corpo.
- O pensar: diz respeito à memória e à cognição, afirmando o conhecimento que a criança já possui.
Durante o dia, os esforços serão com as crianças; de noite, a ideia é continuar as formações com professores e pais. “A intenção é levar informações. O importante é que entendam que não precisa ser um psicólogo e nem saber como tratar as diversas situações com as crianças. Mas demonstrar que estão disponíveis e saber como encaminhar as demandas já faz uma diferença enorme”, defende Nascimento. Segundo ele, como ainda há 75 mil pessoas desabrigadas e mais de 400 escolas não têm previsão de retomar as atividades, o processo inteiro para a reconstrução do estado pode durar até dois anos.
Professores e educadores da rede pública, bem como voluntários de associações e institutos que estão trabalhando nos abrigos atendendo crianças, adolescentes e suas famílias, podem se inscrever para ganhar bolsas integrais para o curso “Educação para a paz“, ministrado por Reinaldo Nascimento, em parceria com a Faculdade Rudolf Steiner. Inspirado nos aprendizados adquiridos em intervenções pelo mundo, o curso traz perspectivas sobre o manejo eficiente de traumas e conflitos a partir de situações reais.
O que é a pedagogia de emergência?
Depois de ajudar crianças abrigadas no Líbano, durante a guerra entre Israel e o Hezbollah, em 2006, o professor alemão Bernd Ruf criou a pedagogia com base na metodologia Waldorf. Essa abordagem propõe a superação de trauma a partir de atividades lúdicas, que resgatam por meio do brincar a alegria das crianças. Ela é aplicada em locais de conflitos e desastres, onde meninos e meninas precisam de mais atenção e acolhimento, sobretudo dos profissionais de educação.