Independente do espaço, a escalada de discursos de ódio entre crianças e jovens mostra que os pequenos não estão imunes à violência política
Crianças e adolescentes não estão imunes à polarização política e à propagação de discursos de ódio: educá-las politicamente e para a paz envolve saber o que sentem sobre assuntos que as cercam e que adultos não as usem como porta-vozes para suas opiniões.
Todos somos seres políticos mesmo antes de nascer. Isso porque fatores como o acesso à saúde, educação, lazer e/ou mobilidade são atravessados pela política. Incentivar a participação das crianças no debate político, observando as particularidades do desenvolvimento de cada uma, precisa ser feito de modo saudável e respeitoso em um cenário de polarização: a violência política escalou e as crianças estão no meio do furacão.
Num cenário onde atos de violência verbal e física marcaram o período eleitoral, o que fazer quando as crianças proferem discursos de ódio em prol da defesa de uma ideia, dentro de casa, em espaços públicos ou na escola? Como garantir a livre manifestação de ideias, sem que haja violência política e discursos de ódio?
Para Luana Tolentino, professora de história da educação básica e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o primeiro passo para incentivar a educação política de crianças é “informá-las que as decisões políticas determinam a qualidade da educação, o acesso aos direitos – inclusive o direito de ser criança, de viver essa etapa da vida com segurança e dignidade”, diz. Já para Claudia Mascarenhas, psicóloga, psicanalista e doutoranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), perguntar o que elas sentem sobre determinado assunto é essencial para compreender como elas enxergam os acontecimentos políticos à sua volta.
“Não cabe que um adulto coloque palavras na boca das crianças ou que as use como porta-vozes de algo que eles gostariam de dizer”
A especialista comenta ainda que “a importância de ensinar a saber perder é a importância de enxergar o outro.” Segundo ela, é necessário lembrar que aquele que perde também continua no jogo político – ninguém é excluído da sociedade após o voto e é necessário manter o diálogo, escutando e discordando, para construir ambientes de paz e respeito ao próximo.
Quando a propagação de discursos de ódio feitos por crianças toma o dia a dia, Luana Tolentino reforça que “a fala ou qualquer tipo de expressão não podem ferir a existência e a dignidade humana”. Se a situação sair do controle, é necessária a mediação e intervenção de pais, educadores e demais responsáveis que cuidam da criança para evitar a escalada da intolerância. É necessário lembrar que ser conivente com discursos preconceituosos, racistas, xenofóbicos e sexistas é mais uma violência direcionada às vítimas, por isso, também é essencial incentivar uma educação que oriente a sociedade pelo respeito às diferenças.
Caso uma criança seja vítima de violência política – como tem se noticiado brigas entre colegas em sala de aula, por exemplo -, a educadora explica que o acolhimento parte do repúdio público: as escolas devem explicitar quais são os seus princípios e agir efetivamente quando esses casos ocorrem. As vítimas, incluindo as famílias, precisam saber que não estão desamparadas e quais ações serão adotadas para coibir e punir atos de violência.
Quando situações que envolvem discurso de ódio ou violência por parte de crianças ou adolescentes ocorrem em ambiente escolar, Pedro Hartung, diretor de políticas e direitos no Instituto Alana, recomenda métodos de mediação e justiça restaurativa. Na mediação, se busca uma alternativa à formalidade do processo judicial; caso haja atos infracionais, é possível recorrer à justiça restaurativa, procedimento previsto em lei que envolve a responsabilização do agressor, porém com um processo muito mais cuidadoso que permite aos envolvidos falarem o que sentem a fim de entender os efeitos gerados para cada um.
Hartung reforça que as ações combinadas por meio deste processo restaurativo não envolvem apenas o agressor, mas também “família, diretor da escola e outros colegas, sendo considerado um processo mais humano porque olha para as emoções das pessoas envolvidas”. Vale ressaltar que, em qualquer situação de violência, a família pode levar o caso para autoridades competentes, fazer um boletim de ocorrência ou recorrer ao Conselho Tutelar, porém, como espaço pedagógico, a escola pode “encontrar caminhos mais efetivos para a mediação de conflitos”, finaliza.
“Em um país plurirracial, multicultural e com dimensões continentais, os papéis fundamentais da escola são de incentivar diariamente o reconhecimento, a celebração da diversidade e o respeito mútuo. Os educadores podem incentivar a cultura de paz por meio da formação inicial e continuada, por recursos pedagógicos, pelas maneiras que percebem a vida e o mundo, colocando-se como defensores intransigentes da democracia, da justiça, da equidade, da inclusão, do bem-viver, do direito de ser e existir de todos e todas”, aponta Luana Tolentino.
A semana após as eleições foi marcada por ameaças a alunos, amizades terminando por causa de política e brigas e agressões no ambiente escolar. A construção de uma escola que promove debates políticos de maneira ativa, respeitosa e que oferece suporte aos alunos passa por um processo de desconstrução do chamado “ensino ideologizante”, analisa Claudia Mascarenhas. “Começaram a acusar as escolas de fazer a cabeça das crianças com ideologia e elas ficaram acanhadas de falar sobre política brasileira e democracia. Esse encurralamento promovido pelo fascismo tem dificultado abordar esses temas na sala de aula”, diz.
Para a psicóloga, a escola não pode se isentar do debate político, pois é o espaço justamente do diálogo, da escuta e da segurança, opina. Em contrapartida, a violência que ocorre no ambiente escolar está fortemente associada “à falta de espaços de escuta, de fala e de liberdade para as crianças expressarem seus medos e dúvidas”. Para ela, o medo de perder um aluno não pode fazer com que colegas briguem e a escola não faça nada, sendo imprescindível chamar crianças e adolescentes para o diálogo, sem reprimi-los ou agredi-los de volta, enfrentando o assunto apenas como um educador pode enfrentar.
“A escola é um espaço fundamental para o exercício da democracia.”
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Em um dos episódios recentes, Luana Rafaela, de 12 anos, foi morta a tiros por comemorar o resultado das eleições. A tragédia mostra como a política atinge diretamente as crianças e como a escalada da violência política pode causar danos irreversíveis na vida de comunidades inteiras.